Direito Internacional

O lobby do bem

O lobby do bem

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

O termo “lobby” — oriundo da prática dos lobistas aguardarem autoridades no salão do hotel — não desperta, no Brasil, boas associações de idéias. Sugere interesses escusos, permutas inconfessável. E se o lobista, então, trás consigo uma maleta, nem se fala!

 

No entanto, o lobby, em temas mais complexos, é algo quase inevitável e mesmo necessário quando o alto funcionário, ou parlamentar — esse, o alvo preferencial do lobista — tem pouco conhecimento de um assunto que pode, se transformado em lei, se revelar um astuto sanguessuga do dinheiro público ou privado ou mais um exemplo do pitoresco fenômeno sociológico brasileiro: o da lei que “não pegou”.

 

Não se diga que o lobista é uma figura sempre dispensável porque o parlamentar designado para estudar o assunto poderia perfeitamente obter todos os esclarecimentos necessários com a leitura de livros, revistas e relatórios. Parlamentares são homens muito ocupados e é quase certo que não lerão dezenas ou centenas de páginas, por vezes tremendamente áridas, para formar convicção. Mesmo que leiam, podem não penetrar na essência da questão, notadamente nas repercussões mais remota da modificação legislativa. E quando transferem essa tarefa para seus assessores correm o risco de serem mal ou tendenciosamente informados. Qual a garantia de que o assessor é um estudioso infalível e sem preconceitos no esmiuçar o tema? E, de qualquer forma, “representante do povo” é ele, deputado ou senador, não o assessor.

 

Havendo um contato pessoal, com perguntas e respostas — o bom lobista tem a obrigação de ser um profundo conhecedor do tema — o parlamentar pode, a todo momento, interrompê-lo com pedido de esclarecimento. A economia de tempo é enorme. Dizia-se, no tempo da realeza, que os príncipes sabiam de tudo sem nunca terem estudado nada. E, não satisfeito por ter ouvido apenas um lado da questão, o parlamentar pode solicitar informações de alguém interessado em sustentar opinião contrária à do lobista, sendo prontamente atendido porque raríssima é a lei que não tira algo de um setor para benefício de outro.

 

Nos Estados Unidos da América do Norte o lobista não é encarado com a desconfiança existente no Brasil. É uma “profissão”, ou atividade normal, geralmente exercida por especialistas profundamente conhecedores da matéria debatida, tanto no aspecto teórico quanto prático. Essa maior tolerância ao lobby advém da pujante economia daquele país, dos investimentos em larga escala que procuram evitar, ao máximo, erros legislativos fatais. Na economia de escala, se os acertos trazem grandes lucros, os erros acarretam perdas arrasadoras. Assim — pensam os parlamentares americanos que decidem — é recomendável uma certa modéstia intelectual e ouvir aqueles que realmente entendem do assunto, antes de elaborar a lei. No Brasil, como a repercussão do erro legislativo é menor — porque a escala de investimentos também o é —, o lobby é visto mais como instrumento de pressão do que de esclarecimento. Se a lei sair com erro, pensa-se, apenas “não pegará”. Um engano, porque o grupo que “empurrou” a lei pode exigir o seu cumprimento até que ela seja revogada.

 

O lobby, obviamente, existe também no Executivo, nos ministérios, autarquias, e órgãos de relevância semelhante, mas no presente texto cuidaremos apenas no lobby atuante no Congresso Nacional. O Poder Executivo exerce, às claras, privilegiado lobby sobre o Congresso — mantém salas permanentes para isso —, mas essa prática é considerada normal, uma troca de pontos de vistas, ou interesses, no quadro geral da harmonia dos poderes.

 

A preocupação de disciplinar o lobby já existe no Brasil, há mais de uma década. O Senador Marcos Maciel, político discreto, culto e respeitado, apresentou proposta de regulação da atividade do lobista, sugerindo exigência de crachás, relatórios dos políticos que com eles tratam, e outras detalhadas medidas de vigilância, mas a reação dos parlamentares não tem sido muito animada — talvez pela exigência de muitas minúcias e relatos explicativos — tanto assim que até agora não temos lei a respeito.

 

De minha parte, se parlamentar fosse, também não sentiria entusiasmo ante tais exigências, bem intencionadas mas trabalhosas. Quem gosta de elaborar relatórios? Além do mais, o desejo, difuso, de influenciar na legislação é inevitável na democracia. Por vezes, pode ser recomendável. Não deve ser dificultada por providências burocráticas. Não há porque exigir de um cidadão, não lobista por profissão, que se inscreva como tal e que porte crachá. Se a finalidade de crachás e relatórios é a de evitar o pagamento de subornos, ou doações discutíveis, estas poderiam existir mesmo com crachás e inúmeras relatórios, porque o papel aceita tudo.

 

Vou relatar, aqui — a guisa de curiosidade —, minha pequena experiência de “lobista” amador, “free lancer”, em assuntos relacionados com a justiça, da qual já fiz parte. Acredite quem quiser, porque quase sempre o lobby é discreto.

 

Assim procedi porque — como acontece com inúmeros juízes —, sentia que, sem alterar a lei, o juiz age como o homem da lenda, condenado a empurrar, colina acima, uma enorme pedra esférica, sem dispor de um calço que a impeça de rolar de volta. Sem uma legislação processual mais eficaz o juiz sente-se, por vezes, “usado” por uma das partes. Daí, a necessidade de mexer no foco do problema, por vezes uma casa de marimbondo: a lei. E posso, aqui, de público, depor em favor dos parlamentares, pois sempre se mostraram interessados em ouvir, bastando a simples condição de magistrado, na ativa ou aposentado (não percebi diferença de tratamento e atenção). Penso que boa parte de nossos problemas atuais é conseqüência de um passado de comunicação deficiente entre magistrados e parlamentares. Hoje, essa aproximação está bem melhor. Todavia, se o magistrado procura o parlamentar apenas pleiteando vantagens e privilégios para a classe, é quase certo que terá uma recepção fria.

 

Lobby individual de magistrados deve, suponho, ter ocorrido diversas vezes, pelo menos alguns anos atrás. Hoje isso seria mais problemático porque há um tal enxame de propostas que existe o risco de colisão entre elas, se transformadas em lei. De qualquer forma, tais magistrados tentavam ser os “lobistas do bem”, ou pelo menos daquilo que consideravam como tal.

 

O “lobismo” individual pode, em tese, gozar da vantagem da total independência, expressando opiniões nem sempre coincidentes com aquelas sustentadas por comissões. Comissões significam inúmeros olhos analisando o mesmo objeto — algo positivo e que faz presumir um grande equilíbrio e acerto em suas conclusões. Todavia, a necessidade de manter uma agradável convivência entre seus membros obriga a transigências e gentilezas que podem, por vezes, resultar em “empates”, em medidas paliativas que pouco enfrentam o dilema mais sério de toda reforma: ter que desagradar alguém. A necessidade, sempre recomendável, da diplomacia, de conceder um pouco, de não desagradar, de conseguir um consenso, pode, por vezes, redundar em medidas pouco eficazes. A tradição popular — embora pitoresca e superficial — diz que “muitos cozinheiros estragam a sopa”. Ou que “o cavalo é um animal bonito e rápido porque foi criado por uma só pessoa, Deus; enquanto que o camelo foi criado por uma comissão”. Daí, a conveniência de se manter aberto, fácil, sem “crachás” e relatórios, um “respiradouro natural”, um canal de acesso aos parlamentares, o “lobby” individual de qualquer cidadão, seja de que profissão for, seja ou não “importante”.

 

Em fins de 1980, ou início do ano seguinte, quando titular da 10ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, procurei o deputado federal Freitas Nobre, cearense como eu. O escritório dele, na rua Álvares Machado, era bem próximo do Fórum João Mendes Júnior. Identificando-me apenas como juiz local — mesmo porque não dispunha de outros títulos — perguntei se lhe seria difícil apresentar um projeto de lei instituindo a correção monetária nas cobranças de dinheiro entre particulares. Àquela época, somente o crédito fiscal — e, salvo engano, o trabalhista —, é que poderia ser corrigido monetariamente, o que estimulava bastante a parte devedora a criar incidentes — algo perfeitamente compreensível — que resultassem em demora do processo. E mesmo não havendo incidentes artificiais, a inflação então existente, de dois dígitos, corroia enormemente o poder aquisitivo da quantia mencionada na petição inicial, o que não só prejudicava o credor como desmoralizava a justiça.

 

Mostrei ao deputado o texto com a proposta de redação e ele, gostando da idéia, fez, na hora, e também depois, algumas alterações, até mesmo ampliando a “severidade” da norma. Na minha sugestão eu, timidamente — imaginando imensas barreiras erguidas pelos influentes representantes do devedores —, propunha que a correção incidiria após a citação. E no texto legal (Lei 6.899/81) saiu que a correção ocorreria a partir do ajuizamento. Quanto aos títulos de crédito, a atualização monetária ocorreria a partir do vencimento.

 

Dou esse exemplo para mostrar o quão receptivos estão — ou estavam? — alguns parlamentares em receber, para exame, propostas de alterações legislativas, mesmo se o “lobista” informal não apresentava um peito coberto de medalhas. Agora, o que me pareceu estranhável é que o referido parlamentar — homem honrado, vi-o não prometendo emprego público a uma senhora que o pedia para um filho — não parecia muito interessado em difundir que o projeto da lei da correção monetária tinha sido apresentado por ele. Uma lei dessas mais faz perder votos do que ganhá-los, pois o número de eleitores devedores supera, de muito, o número de eleitores credores. A conclusão, melancólica, que tirei é que, no Brasil, paradoxalmente, as coisas boas, as medidas importantes, têm que tramitar com algum segredo, porque, do contrário, não passam. E observo que o digno parlamentar não foi reeleito. Espero que sua injusta não-reeleição — era um homem inteligente, corajoso e somente preocupado com o bem do país — não tenha nada que ver com o fato de ter instituído a correção monetária nas condenações judiciais.

 

Um outro exemplo da receptividade de alguns parlamentares: já aposentado como desembargador, assistia, na hora do almoço, alguns anos atrás, um programa de televisão, “Record em Notícia”, conduzido pela jornalista Maria Lydia. Fazia parte da mesa, naquele dia, um deputado federal do “centrão”, hoje também falecido, que esbravejava contra a lentidão da justiça em julgar um caso de lei de imprensa em que ele figurava como vítima e autor. Temia a prescrição da ação, que se anunciava, se o processo não andasse mais depressa. Ouvindo suas queixas, disse-lhe, por carta, que para o processo criminal andar mais depressa seria necessário que a lei estabelecesse que as intimações aos advogados ocorresse pelo Diário Oficial, como já ocorria na área cível, dispensando a intimação pelo oficial de justiça. Pois bem: em menos de um mês — acordo de lideranças — entrou em vigor uma lei determinando que as intimações dos advogados, nas causas penais, ocorresse pela imprensa. Sei que medidas como essa não agradaram os criminalistas, mas a imensa quantidade de ações penais que terminavam com a prescrição penal não contribuía para prestigiar a nossa justiça. Não obstante a simpatia natural que tenho pelos criminalistas — todos os que conheci eram pessoas inteligentes, bons psicólogos, sensíveis, apreciadores da literatura, com algo mais “humano” que os especialistas de outras áreas — um excesso de impunidade, resultante da prescrição abundante, desmoraliza a justiça.

 

Poderia citar aqui um outro exemplo de “lobismo” anônimo e informal, de intenção moralizadora, mas que a prudência me aconselha a não detalhar demais porque não ando protegido por segurança que me defenderia contra golpes de guarda-chuva. O deputado, dessa vez estadual, que acolheu e apresentou a sugestão, depois contou-me que se arrependeu, tal era a quantidade de senhoras indignadas que afluíam a seu escritório de deputado, reclamando contra a lei proposta por ele — em tese moralizadora, protetora do tesouro estadual —, mas que as pegara desprevenidas. A justiça, sabiamente, acolheu depois, parcialmente, os reclamos das filhas solteiras de funcionários falecidos, estabelecendo que a restrição a seus direitos só valeria para os casos futuros. Cumpre dizer — seria coincidência? — que esse deputado também não foi reeleito, o que levaria Maquiavel, vivendo hoje, a dizer que “lei que concede benefícios traz votos certos, ao passo que a lei que cancela privilégios pode, no máximo, trazer algum vago reconhecimento, mas não votos.”

 

Nem sempre, porém, o “lobista amador” consegue convencer os parlamentares. Se, ingenuamente, espalhar a sua intenção e ela contrariar interesses fortes, a idéia será rejeitada. Haverá tempo para a arregimentação em contrário. Foi o que ocorreu com a “sucumbência recursal”, assim resumida: em todo recurso cível, totalmente improvido, o recorrente será condenado a pagar autônomos honorários advocatícios à parte contrária, a menos que o tribunal “ad quem” isente o recorrente da nova verba honorária. Isso, por considerar, o tribunal, que o caso merecia um reexame, tendo vista sua complexidade, em matéria de fato ou de direito. Seria uma forma de desestimular, “no bolso” — sem necessidade de chamar ninguém de “litigante de má-fé” — a prática usual de eternizar os processos mediante sucessivos recursos. Um projeto nesse sentido foi rejeitado, após longa espera, vários anos atrás, mas é possível que essa sugestão tenha agora alguma chance de prosperar.

 

Muitos advogados percebem, hoje, que a prática generalizada de recorrer apenas para ganhar tempo — exigência do cliente devedor — levou a um tal congestionamento dos tribunais que o próprio exercício da advocacia tornou-se desanimador. Como explicar ao cliente, quando credor, por que os processos não terminam? Advogados competentes, cada vez mais, dedicam-se ao magistério. A imensa produção livresca brasileira, na área do direito — desconheço país com igual produção — talvez se explique pelo fato de os processos não terminarem. Os advogados, necessitando descarregar suas energias intelectuais enquanto esperam os resultados dos sucessivos recursos, escrevem livros e ensinam. É, também, uma terapia, e útil aos leitores.

 

Finalizando, os exemplos acima, e possivelmente outros, de diferentes “lobistas” anônimos, mostram que um parlamento realmente democrático deve permanecer aberto, sem formalidades, às sugestões de qualquer cidadão. Este pode errar, é evidente, mas pode também eventualmente acertar. O “lobismo” informal é uma forma de mesclar o democracia representativa com a democracia direta.

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. O lobby do bem. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/olobbydobem/ Acesso em: 28 mar. 2024