Precatórios e Juros Legais
Ives Gandra da Silva Martins*
Tive a oportunidade de ler, neste fim de semana, três pareceres de eminentes juristas brasileiros sobre o artigo 78 do ADCT, que violentou cláusula pétrea da Constituição segundo a qual a indenização por desapropriação deve ser justa e prévia, perpetrando o segundo “calote temporal”, ao permitir o pagamento dos precatórios relativo a débitos de natureza não alimentar, em 10 anos, nos moldes do art. 33 do mesmo ADCT.
Embora o artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal esteja assim redigido:
“Art. 60. …..
§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
………..
IV – os direitos e garantias individuais”,
e o inciso XXIV do artigo 5º tenha a seguinte redação:
“XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição” (grifos meus),
– o que torna o artigo 78 do ADCT manifestamente inconstitucional, por resultar de emenda que macula norma imodificável da Lei Suprema – têm os Tribunais, numa desconfortável tolerância exegética, aceitado como válido o inconstitucional preceito.
O “caput” do artigo 78 está assim redigido:
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 30, de 2000)” (grifos meus).
A norma constitucional, claramente, faz menção a valor real e juros legais, neste denominado “calote temporal”, que transforma a indenização prévia e justa, em posterior e injusta.
O Professor Rui Geraldo Camargo Viana, em excelente parecer, afirma que:
“Em consequência, os “juros legais” são os fixados em sentença com trânsito em julgado, os moratórios, os compensatórios e os convencionais, com ou sem taxa estipulada. Assim, estará assegurado o respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e à proteção constitucional dos bens do credor” (p. 47).
No mesmo sentido, em objetiva manifestação, o Professor Nelson Nery Junior esclarece, com a proficiência de sempre, que:
“Essa previsão tem sua “ratio essendi” na proteção dos direitos do credor, que não pode ficar sem o pagamento e, ainda, deixar de receber os juros devidos pelo atraso concedido pela norma constitucional transitória, pois haveria enriquecimento ilícito do poder público em detrimento do direito do credor. Ademais, a lei não contém palavras inúteis. Se previu o pagamento em dez parcelas anuais, acrescido dos “juros legais”, o intérprete deve tirar operatividade desse comando” (p. 38).
Por fim, o notável mestre Arruda Alvim adverte que:
“Acresce ter presente, ademais, que o próprio texto do art. 78, do ADCT, refere-se textualmente à que o pagamento se dará pelo VALOR REAL, acrescido de JUROS LEGAIS [e, portanto, ao que consta do título executivo, e aí, naturalmente, incluem-se os moratórios, objeto de contratação e da decisão acobertada pela cojsa julgada, bem como os índices]” (p. 39).
Nada me parece mais escorreito do que o entendimento hospedado pelos três pronunciamentos de reconhecidas autoridades sobre a matéria. A fumaça do bom direito é tão presente, na hipótese comentada, que a ela me parece aplicável irônica observação feita pelo então Ministro Francisco Rezek, em sessão a que assisti, quando, ao conceder medida cautelar em caso de escancarada violação à lei maior, declarou ser o “fumus boni juris” tão intenso, que sequer conseguia vislumbrar o rosto de seus pares, do outro lado da mesa do Pretório Excelso.
Espero que interpretações convenientes e coniventes não venham macular, ainda mais, direito, tão claramente consagrado na lei suprema e tão pisoteado pelas autoridades dos três Poderes.
* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br
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