Filosofia do Direito

A Falácia de Alguns Postulados Acerca do Direito

 Atahualpa Fernandez*

Marly Fernandez **

 

 

 

1. O postulado do caráter ideológico do direito e da supressão da (pretendida) objetividade jurídica

 

Falso: Todo conceito de direito está constituído por três elementos: a legalidade conforme o ordenamento, eficácia social e correção material ou justiça. A falta de qualquer um destes elementos descaracteriza um fenômeno como jurídico. Assim que o desempenho da tarefa de interpretação e aplicação da norma jurídica aplicável aos conflitos de interesses implica na necessidade de interpretar e decidir de tal modo que os textos normativos, tomados como uma unidade aberta aos valores comunitários, acabe por determinar a realização do justo concreto. Em um Estado Democrático de Direito, alicerçado em uma Constituição comprometida com a dignidade do homem, a atividade interpretativa deve manter-se dentro de determinados limites objetivos, fora dos quais não parece razoável falar de interpretação, senão de “ativismo judicial”.

 

 Significa dizer com isso, se bem entendido, que se afigura inoportuna a livre criação do direito, a rebelião do juiz contra a lei ou o que os juristas alemães denominaram de interpretação ilimitada da norma. Não é verdade que as normas jurídicas admitam uma interpretação ilimitada, como tão pouco que esteja aberta ao que certos juristas italianos chamaram há vinte anos (com mais êxito no Brasil que em seu próprio país, por certo) de uso alternativo do direito, que pretendeu, em última análise, justificar qualquer interpretação desde criterios ideológicos.

 

Decerto que se a lei (essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano) não é mais o único instrumento útil para a regulação social, não menos certo é que segue sendo um meio ou  instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas, corroídas pelo empirismo e subjetivismo relativista, um dos valores fundamentais do direito: a segurança jurídica.

 

Daí que não pode depender o sentido e alcance da norma (constitucional ou infra-constitucional) do talante pessoal de seus intérpretes, em especial de magistrados pretendidamente redentores ou iluminados, autoinvestidos como representantes de qualquer ideologia, doutrina ou tradição histórica. A objetividade do direito, sem a qual não cumpriria nenhum de seus fins, descansa necessariamente sobre a objetividade e a racionalidade na interpretação e aplicação da norma jurídica.

 

E torná-la possível vem a ser, justamente, um dos primeiros objetivos da tarefa concreta do jurista de realizar historicamente a verdadeira intenção do direito (isto é, a de, negativamente, impedir o homem do esquecimento de sí próprio e, positivamente, a de afirmá-lo no seu ser e, assim, no seu incondicional valor) e que é projetada em um determinado contexto econômico, político e social segundo as necessidades humanas de cada época, isto é, de plasmar e realizar historicamente as expectativas normativas e culturais de uma comunidade de indivíduos (ante a qual a qualidade de seu discurso será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza humana) que, como estratégias sócio-adaptativas, sirvam para iluminar, fundamentar e constituir determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente  ética.

 

Essa, aliás, a razão pela qual o princípio da segurança jurídica, que assegura a previsibilidade das normas como ordenadoras das condutas humanas, leva também à manutenção da preeminência da lei na atual sociedade de massa (no sentido dado por Ortega y Gasset).

 

 Contudo, da circunstância de que os cidadãos têm o direito de saber que uma conduta lhes compromete na medida em que o direito vá a qualificá-la como tal, não parece legítimo que se possa deduzir que o juiz deva ser um orgão “cego” e “acéfalo” no processo de interpretação e aplicação da Constituição e das leis ou que se deva autoinvestir da suposta virtude que faz dos juízes “les bouches qui prononcent les paroles de la loi, des êtres imanimés qui n´em peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (Montesquieu).

 

De fato, a importância da lei em uma sociedade onde a miséria e o desprezo pela dignidade humana ainda convivem com o desperdício da riqueza produzida pelo trabalho social, a par de conviver com a preeminência das normas constitucionais, faz com que o papel do juiz, já não mais neutro, seja o de um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da  história e traduzí-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência. Contudo, isso não significa, evidentemente, uma atividade “alternativa” à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima e devida efetividade.

 

 

2. O postulado da eliminação da suposta neutralidade política dos juízes e do destaque da subjetividade da tarefa interpretativa

 

Falso: Aos destinatários das normas jurídicas não lhes interessa as opiniões pessoais dos que atuam como juízes, senão somente as suas respectivas capacidades para expressar as normas que a sociedade a si mesma se põe e pelas quais ilumina e fundamenta a solidariedade de sua ética convivência, depurando e afinando seu alcance e sentido e, na mesma medida, garantindo sua eficácia última. De fato, o grande problema da época contemporânea já não é tanto o da convicção ideológica, das preferências pessoais, do subjetivismo inconsistente ou das convicções íntimas do juiz, enquanto mediador.

 

É o de que o cidadão (ou se se preferir, do cidadão enquanto tal, como indivíduo plenamente livre, dono ou senhor de si mesmo – segundo a célebre fórmula do direito romano, recuperada pelo republicanismo moderno), destinatário do provimento, do ato imperativo do Estado, que no processo jurisdicional é manifestado pela decisão, possa participar de sua formação e de eficazes (adequados e acessíveis) medidas de controle, com as mesmas garantias e em simétrica igualdade de oportunidades,  podendo compreender por que, como, de quê forma e com que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos, para impor obrigações e assegurar o cumprimento de deveres. Em síntese, é tornar efetiva a famosa “eterna vigilância cidadã” republicana, que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte dos magistrados rompa os vínculos da igualdade cidadã e degrade a res publica a imperium. 

 

Assim que o principal problema, hoje, reside na necessidade de estabelecer critérios metodológicos com o objetivo de chegar à pretendida noção de racionalidade, de correção da decisão prática ou de compromisso ético relativamente à aplicação das normas jurídicas. Em termos mais simples, o de como se pode obter a racionalidade ou o controle de toda possível decisão jurídica, isto é, de como limitar a atividade interpretativa sem dissimular ou jugular a iniludível subjetividade que a caracteriza.

 

A adoção de um adequado processo de realização do direito, em seu aspecto metodológico, obriga o jurista-intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infraconstitucionais a concretizar, de tal forma que se deva sempre considerar as normas não como instrumentos de dominação de uma classe dominante, mas sim como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios e valores, sob pena de destruição da tendencial unidade axiológico-normativa do ordenamento jurídico.

Carecem de legitimidade as decisões que desconsiderem as normas jurídicas e imponham argumentos de “justiça” tirados de convicções pessoais do operador do direito, de comandos emergentes da mera interpretação pessoal ou ideológica. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos.

 

 

3. O postulado de um novo paradigma teórico do direito e o problema da interdisciplinaridade.

 

Falso: O movimento gerado por algumas teorias críticas do direito serviu menos como paradigma teórico e mais como orientação para prática profissional de operadores do direito (juízes, advogados, membros do ministério público, etc.). De fato, os emperdenidos defensores desse tipo  movimento  não chegaram a elaborar um modelo de ciência do direito que pudesse se afastar dos paradigmas dogmáticos. Pelo contrário, conformaram-se com acusar o sistema jurídico e criticar a legalidade instituída, ainda que pretendessem dar plena eficácia aos direitos fundamentais albergados na Constituição. Tampouco chegaram a propor qualquer base filosófica ou modelo metodológico coerente que se afastasse dos modelos positivistas tradicionais e direcionassem, de forma racional e objetiva, as “novas” diretrizes interpretativas propostas.

 

Por outro lado, ainda que surgido sob o manto de uma concepção social marxista (o “proletariado” parece ser um de seus principais propulsores), o conjunro desse movimento acabou por recolher seus fundamentos de outros movimentos críticos setorias, tais como: a epistemologia crítica de Popper e Bachelard, a filosofia fenomenológica de Husserl, a sociología crítica de Weber, a psicanálise freudiana, a filosofia marxista e a teoria crítica da sociedade dos pensadores da escola de Frankfurt.

 

Essa miscelânia de concepções filosóficas díspares impediu que esse movimento adotasse uma postura filosófica e epistemológica uniforme e coerente. Depois, a pretensa interdisciplinaridade proposta por esse movimento vem sendo posta em causa pelos novos avanços provenientes da psicologia evolucionista, da neurociência cognitiva, da genética comportamental e da ciência cognitiva.

 

Dito de outro modo, uma nova realidade inter e multidisciplinar – a qual, dito seja de passo, permanecem, em sua miopia, inadvertidamente  alheios uma boa parte dos cientistas sociais e, em especial, em sua quase totalidade, os operadores do direito –  não somente vem pondo em cheque uma grande porção  dos logros teóricos tradicionais das ciências sociais normativas – nestas incluída, claro está, a ciência jurídica -, como , e muito particularmente, vem possibilitando uma revisão das bases ontológicas e metodológicas do fenômeno jurídico a partir de uma concepção mais empírica e robusta acerca da natureza humana.

 

Trata-se, em síntese, de uma perspectiva interdisciplinar cuja  idéia básica consiste em  propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, uma explicação verticalmente integrada dos fenômenos. Nas palavras de Jerome Barkow , essas explicações (“verticalmente integradas”) que, em ciências humanas, são simultaneamente cruciais e raras, querem significar que o que é exigido é sempre um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise  e que sejam todas mutuamente compatíveis.

 

Coloca-se como exigência que qualquer explicação sociológica ou filosófica da ética seja compatível com as teorias  psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis tanto com a ciência cognitiva,  a neurociência cognitiva , a psicologia evolucionista como com a biologia da evolução (sobretudo na doutrina jurídica, onde cada autor , quase que completamente alheio aos estudos que se efetuam em outros campos distintos do direito, aborda um tema comum a partir de um ponto de vista disciplinar e teórico específico, ademais de exclusivamente jurídico).

 

Por certo que essa postura interdisciplinar não exige que digam todos as mesmas coisas, mas que digam coisas compatíveis entre si e com outras áreas de conhecimento, ou que, pelo menos, tornem explícitas as incompatibilidades. Depois, da mesma forma como em filosofia não se trata de estabelecer uma orientação analítica e uma orientação hermenêutica opostas entre si senão de um “ir e vir” de uma a outra mutuamente enriquecedora, o mesmo sucede na epistemologia, na qual o conhecimento hermenêutico não “se opõe ao” senão que “se compõe do” conhecimento metodológico-científico – quer dizer, é parte dele – segundo uma relação complexa (de continuidade-descontinuidade) entre ciências  humanas e ciências naturais. Assim que, sem lugar a dúvidas,  somente através de um diálogo com as chamadas ciências “duras” como a filosofia, e também as ciências humanas, lograrão elaborar uma reflexão mais fecunda sobre a verdade, a natureza humana, o direito e a ética.

 

Por fim, esse diálogo (perspectiva ou postura) interdisciplinar pressupõe simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento –para usar a expressão de Edgar Morin : o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los. Somente outra estrutura de pensamento (porque –como alguma vez se disse – o principal órgão da visão é o pensamento, isto é, de que vemos o mundo com nossas idéias) pode permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

 

 

4. O postulado da dimensão histórica e social do direito exacerbada por um relativismo jurídico de corte pós-moderno

 

Falso: Uma dilatada linha intelectual que arrancando dos sofistas e passando por Hobbes e Nietzsche desemboca em certa pós-modernidade pretendidamente radical sustenta que as sociedades humanas vivem permanentemente em situações extremas, e que não há possibilidade de deliberação racional de modo algum, aqui incluído o direito. O intento de emparelhar democracia, direito e relativismo levou a reduzir à mera liturgia elementos hoje considerados como “fulcrais” de todo o Estado de Direito: a vigência de direitos indisponíveis e constitutivos do indivíduo mesmo como âmbito de vontade soberana, de direitos que habilitam publicamente a existência dos cidadãos e que tratam de evitar que o abuso de autoridade por parte dos atores sociais rompa os vínculos da igualdade cidadã. De fato, o relativismo cultural, histórico e jurídico parecem não resistir à idéia de que existe uma natureza humana cujo núcleo invariável constitui o fundamento de toda a unidade ético-cultural.

 

Nesse sentido:

 

1. deve-se rejeitar o relativismo cultural e jurídico, que afirma que a direito é uma invenção puramente cultural, uma verdade serviçal (dependente do acordo ou o desacordo humanos e de que não passa de uma expressão do poder dominante), que varia arbitrariamente de uma cultura para outra de acordo com as variações de poder, porque enquanto se possa reconhecer a importância do poder e os costumes no desenvolvimento jurídico, parece razoável crer (e insistir) que há algo de indisponível  e universal no direito que, de uma  forma ou outra,  limita a variabilidade das práticas jurídicas;

 

2. deve-se rejeitar o relativismo historicista, que afirma que o direito é puramente uma invenção histórica que varia radicalmente de uma época histórica para outra, porque enquanto se possa reconhecer a importância das tradições jurídicas, parece razoável crer (e insistir) que a natureza humana constitui uma base imutável através da história humana;

 

3. deve-se rejeitar o relativismo cético e solipsista, que afirma que não há padrões objetivos de julgamento jurídico, além dos impulsos e da subjetividade de indivíduos únicos, porque enquanto se possa reconhecer a importância  da diversidade individual, parece razoável crer (e insistir) na possibilidade de se estabelecer critérios objetivos e de controle de racionalidade em todo processo de interpretação e aplicação do direito;

 

4. deve-se rejeitar o fundamentalismo ideológico de determinadas teorias críticas do direito, que afirma que o direito é mero instrumento de dominação da classe dominante, porque  enquanto se possa reconhecer que alguns interesses dominantes podem reforçar algumas tendências do direito, parece razoável crer (e insistir) que o direito está fundado, ademais de na legalidade conforme o ordenamento e na eficácia social, em uma pretensão de correção material (de justiça) que existe independentemente de qualquer poder derivado dos interesses de uma classe dominante.

 

Em resumo, parece razoável admitir que já não cabe objetar (séria e licitamente) contra estes critérios, com desmedido e míope entusiasmo, os argumentos  e os discursos jurídicos que agora primam pelo mais insano e inconsistente relativismo e pluralismo jurídico. Tais discursos  desprezam a evidência de que, por estar a nossa mente  modelada através da seleção natural e com uma estrutura domínio-específica  homogênea  para todos os seres humanos, a diversidade  interpretativa, jurídica e cultural não pode ser indefinida, senão limitadamente diversa no tempo e no espaço.

 

Por fim, o “episódio” pós-moderno, tão apreciado pelos movimentos críticos e que provoca secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica, tende ao extremo e se caracteriza por ser a antítese polar extrema da Ilustração: a verdade é sempre relativa e pessoal. Cada indivíduo cria seu próprio mundo interior mediante a aceitação ou o rechaço de signos linguísticos que cambiam sem cessar. Não existe um ponto privilegiado, nem um norte ou critério, que guiem o comportamento humano. E uma vez que o direito não é mais que outra maneira de ver o mundo, não existe nenhum modelo a partir do qual se possa construir coerentemente seu sentido, e a partir do qual seja possível extrair o significado profundo dos valores jurídicos da solução pacífica de conflitos e da cooperação social. Só existe a oportunidade ilimitada dos indivíduos para inventar interpretações, hipóteses e comentários de uma realidade que ele mesmo (e somente ele) constrói – a idéia de que tudo é “construído” pertence a essa família.

 

Ora, se o fundamento da ética e do direito é a suposição de que as pessoas têm  preferências, desejos e necessidades – e que, por sua vez,  gozam de plena autoridade  sobre o que são estes desejos, necessidades e preferências –, a negação de um sentido fixo do direito e a consequente negação da possibilidade de se aceder a métodos universalmente válidos de pensamento objetivo pode ser um instrumento útil para, uma vez deformado,  justificar  qualquer atrocidade  e, como tal, servir para atender  a  finalidades potencialmente  perniciosas (neste particular, não se pode esquecer que as primeiras investidas do regime nazista com relação ao ordenamento jurídico alemão foram precisamente de corte “crítico” e “alternativista”).

 

 

5. O postulado da indeterminação do direito e da “crise” da lei

 

Falso: É certo que as sociedades atuais, plurais e complexas, já não mais parecem aceitar lhanamente novos códigos gerais e globalizadores como os que alimentaram em seus dias os grandes dogmas do positivismo jurídico. Hoje, não só se fala abertamente de descodificação, inclusive com relação às matérias típicas dos códigos clássicos, como também as leis tendem a limitar-se, com frequência, a regulamentações fragmentárias e ocasionais e, por vezes, a formular disposições ou princípios muito gerais, confiando logo à interpretação e aplicação pelos operadores do direito a precisão casuística de seus enunciados.

 

O desgaste que vem sofrendo a generalidade e a abstração da lei em virtude do que se convencionou denominar de “pulverização” do direito legislativo  produzida pela multiplicação de leis de caráter setorial e temporal, demonstra claramente a pressão de interesses corporativos, dando lugar a um tratamento normativo diferenciado e, em igual medida, provocando a explosão de legislações cambiantes, com a consequente crise dos mencionados princípios de generalidade e abstração. E a suposta consequência produzida por esse fenômeno é a de que a lei é, cada vez mais, transação e compromisso, tanto mais quanto a negociação se estende a forças numerosas e com interesses heterogêneos: cada um dos  agentes sociais, quando acredita haver alcançado força suficiente para orientar em seu próprio interesse os termos do “acordo”, busca a aprovação de novas leis que sancionem a nova relação de forças; se produz, assim, a cada vez mais marcada contratualização dos conteúdos da lei.

 

De fato, a atual experiência legislativa nos situa muito longe da racionalidade do legislador e da imagem da lei como ordenação abstrata, geral e permanente, como quadro estável cuja finalidade é distribuir direitos e deveres gerais e sobre o qual a sociedade vive a continuação de seu próprio dinamismo. É indiscutível, portanto, que a realidade dessas leis se ajusta mal ao esquema ilustrado e revolucionário da lex universales.

 

Sem embargo, e em que pese todas essas circunstâncias, não parece razoável admitir como apropriadas as considerações  articuladas por alguns setores do movimento crítico do direito. Se é certo que a legislação atual tende a ocasionalidade e a confusão, não menos certa é a constatação de que isso não nos permite deduzir que as sociedades modernas pretendam remeter aos magistrados os problemas últimos de seu livre – e por vezes defeituoso  – ajuste social. Por muito que se ressalte a crise da lei nas sociedades atuais, tal crise não chega de modo algum a deslocar a lei do seu papel central e, até o momento, insubstituível. Parecem ser o melhor mecanismo de organização social em grande escala  que nossa lamentável espécie descobriu até o presente e podem ser adaptadas a características eternas da psicologia humana.

 

Daí que as normas jurídicas  não são simplesmente um conjunto institucional de regras escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão (determinante e/ou moral) para o atuar dos indivíduos, que expressam ideologías dominantes ou que as pessoas se limitam a seguir. Em vez disso, as normas representam à formalização de regras de condutas sociais, sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com frequência,  não somente ignoradas ou desobedecidas (pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente  aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça) senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio da “força brura” . E uma prática social que não pretendesse nada mais que o poder ou a força não seria um sistema jurídico .

 

Nesse sentido, a justiça ou a moral encontram-se necessariamente vinculadas com o direito (Alexy): os valores da solução pacífica de conflitos e a cooperação social não podem ser realizados sem o direito, e ambos devem ser realizados, porque os direitos estariam  em perigo se os conflitos sociais se resolvessem pela pura força, e porque a justiça e o bem estar geral não são possíveis sem cooperação social.

 

Com efeito, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor acerca do justo e do injusto (acerca de questões morais relativas à correção na distribuição e compensação), tornar a ação coletiva possível – e parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que  as normas sejam compartidas pelos membros da comunidade .

 

    Por outro lado, qualquer outra alternativa à lei não seria admitida, de modo algum, pelas sociedades atuais, porque com ela se volatizaria, justamente, a democracia e nos encontraríamos reinstalando, em realidade, um verdadeiro governo despótico de uma minoria que não tardaria em buscar e encontrar uma fundamentação política correlativa que pretendesse outorgar-lhe legitimidade. Se vê claramente que, frente a qualquer outra alternativa, a democracia necessita inexcusavelmente da lei e que não pode abdicar da responsabilidade central que lhe cabe, precisamente (reafirmando assim seu fundamento histórico moderno) enquanto que a lei ainda é o instrumento  necessário (embora não suficiente) da liberdade, tanto por sua origem na vontade geral como por sua efetividade como pauta igual e comum para todos os cidadãos, à que todos podem invocar  e na qual todos devem poder encontrar a justiça (material) que a sociedade se lhes deve.

 

A verdadeira alternativa ao recurso utilizado pelo legislador para afrontar e contornar os problemas sociais, de justiça e de segurança jurídica, portanto, não parece ser a de reinventar o “juiz sacerdote” (preso a alguma ideologia, dogma ou doutrina sem consistência teórica e/ou incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos de um papel), senão a de habilitar os julgadores a assumir, de forma virtuosa, inflexível e qualificada a responsabilidade que lhes cabe e cuja tarefa seja a de afirmar indistintamente os direitos e deveres de toda a pessoa humana, projetando na e através da legalidade vigente os princípios e valores fundamentais do direito; isto é, de habilitar-lhes ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais para, com a iniludível prudência e talento de desenhador que caracteriza o ato de julgar, impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

 

Daí porque o papel do operador do direito (particularmente dos juízes) deverá seguir estando vinculado à Constituição e à lei – que nunca podem ser livres de contexto, senão que devem ter em conta seu “lugar na vida” e sempre “em situação” –, em nome das quais fala e das quais – e não de nenhuma outra fonte “mágica”, “alternativa” ou de qualquer subjetivismo camuflado de teoria – extrai unicamente a justiça e a legitimidade de suas decisões.

 

É certo que ante uma legislação fragmentada, casuística e cambiante, com enunciados que caem com frequência em desuso por desajustes sistemáticos e/ou sociais, o papel do magistrado se realça. Mas este realce do papel do juiz não poderá jamais pretender levar-lhe a uma independência com respeito à Constituição ou à lei; lhe levará, certamente, a um uso mais apurado, sofisticado e refinado dos valores, princípios e regras jurídicas, sempre e em tudo condizente com a finalidade de atender ao imperativo ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano, isto é, com a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade, de forma livre, igualitária e fraterna – quero dizer, justa.

 

 

* Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular/Unama (licenciado); Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

 

** Doutora em Filosofía Moral (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana)

 

Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. A Falácia de Alguns Postulados Acerca do Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/afalacia/ Acesso em: 28 mar. 2024