Teoria do Direito

Teoria pura do direito – Kelsen

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. Coimbra: Sucessor, 1979.

 

Direito e Natureza – A norma jurídica

 

1.         Se analisarmos qualquer um dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o direito podemos distinguir dois elementos: “primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, […] uma manifestação externa da conduta humana; segundo, a sua significação jurídica […]”. (p. 18)

2.         Os atos de vontade têm dois significados: o objetivo e o subjetivo. O objetivo é o que o ato quer dizer em relação ao direito. Possui significação jurídica.

3.         Já o subjetivo é aquele que o indivíduo, “atuando racionalmente, põe o ato, liga a este um determinado sentido que se exprime por qualquer modo e é entendido pelos outros”. (p. 19)

4.         As normas jurídicas são “mandamentos e, como tais, comando, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência”. (p. 111) Não são instruções (ensinamentos), pois o “direito prescreve, confere poder ou competência – não ‘ensina’ nada”. (p. 111)

5.         As proposições jurídicas, diferentemente das normas, “são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido da ordem – jurídica nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas”. (p. 111)

6.         O conhecimento jurídico tem por missão conhecer o direito e descrevê-lo.

7.         A autoridade jurídica, que é representada pelos órgãos da comunidade jurídica, tem por missão produzir o direito para que ele possa ser então conhecido e descrito pela ciência jurídica.

8.          “Nenhum jurista pode negar a distinção essencial que existe entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentário jurídico a essa lei […]. A distinção revela-se no fato de as proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descreveram o direito e que não atribuem a ninguém quaisquer deveres ou direito, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica […], que atribuem deveres e direitos aos sujeitos jurídicos, não são verídicas ou inverídicas, mas válidas ou inválidas […].” (p. 114)

9.          “Dada que as normas jurídicas como prescrições, isto é, enquanto comando, permissões, atribuições de competência, não podem ser verdadeiras nem falsas […].” (p. 115)

10.       “O que transforma […] [um] fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua faticidade, […], mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui.” (p.20)

11.       “A norma funciona como um esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), é o resultado de uma interpretação especifica, a saber, de uma interpretação normativa.” (p. 20)

12.       “O direito […] é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.” (p. 21)

13.       “Com o termo norma quer-se significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.” (p. 21)

14.       “Neste ponto importa salientar que a norma, como sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é […] diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade que ela constitui o sentido é um ser.” (p. 22)

15.       O pressuposto fundante da validade objetiva das normas é a norma fundamental.

16.       “Com a palavra vigência designamos a existência específica de uma norma.” (p. 28)

17.       “É errôneo caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como ‘vontade’ ou ‘comando’ – do legislador ou do Estado – quando por ‘vontade’ ou ‘comando’ se entenda o ato de vontade psíquica.” (p. 29)

18.       “Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-se e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada.” (p. 29-30)

19.       “Uma norma é considerada objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos em certa medida.” (p. 30)

20.       “O domínio pessoal de validade refere-se ao elemento pessoal da conduta fixada pela norma.” (p. 34) Este pode ser limitado ou ilimitado (norma que vale para todos os homens, ou só para um determinado grupo de homens).

21.       Já o domínio material da validade refere-se ao aspecto da conduta humana que é normado: econômico, religioso, político, etc. É sempre ilimitado, pois pode regular sob qualquer indivíduo a ele subordinado.

22.       “A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva e por uma forma negativa. A conduta humana é regulada positivamente por um ordenamento jurídico, […], quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato (quando prescrita a omissão de um ato, esse ato é proibido).” (p. 35) A conduta humana também é regulada positivamente quando é conferido poder ou competência a um indivíduo, pelo ordenamento, para produzir normas.

23.             “Negativamente regulada por um ordenamento normativo é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma outra norma proibitiva […].” (p. 36) Assim, só é proibido o que está na lei.

24.       “O juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor positivo. Significa que a conduta real é ‘boa’.” (p 37-38)

25.       “Uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas, é uma ordem social. A moral e o direito são ordens sociais deste tipo.” (p. 48)

26.       “Vista de uma perspectiva psico-sociológica, a função de qualquer ordem social consiste em obter uma determinada conduta por parte daquele que a esta ordem está subordinado, fazer com que essa pessoa omita determinadas ações consideradas como socialmente […] prejudiciais, e, pelo contrario realize determinadas ações consideradas socialmente úteis.” (p. 48-49)

27.       “O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta como um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo […].” (p. 49)

28.       Uma conduta apenas pode ser considerada como prescrita, na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção. A conduta prescrita não é a conduta devida, pois devida é a sanção. O ser-prescrita significa que o contrário desta conduta é pressuposto do ser-devida da sanção.

29.       “Uma ordem normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ordem coercitiva.” (p. 51)

30.       Não há ordens sociais desprovidas de sanções, pois, até as leis morais – que aparentemente não aplicam o princípio da retaliação – as empregam. No entanto, as sanções morais não se configuram da mesma maneira das da ordem jurídica.

31.       “As sanções estabelecidas numa ordem social têm, ora um caráter transcendente, ora um caráter socialmente imanente. Sanções transcendentes são aquelas que segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana.” (p. 53)

32.       Já as sanções imanentes “são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade […].” (p. 54-55)

33.       O direito é uma ordem coativa no sentido de que as ordens sociais reagem contra as situações consideradas indesejáveis com um ato de coação que é um mal aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessário empregando até a força física.

34.       E é como ordem coativa que o direito se distingue das demais ordens sociais.

35.       É a ordem jurídica que, taxativamente, determina as condições sob as quais a coação física deverá ser aplicada e os indivíduos que devem aplicar.

36.       A segurança coletiva existe quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação, como força física, deve ser exercida, e os indivíduos pelos quais deve ser exercida, protegendo, assim, os indivíduos que lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte dos outros indivíduos.

37.       Os atos coercitivos que não têm caráter de sanção caracterizam-se por tentar prevenir um ato ilícito, antecipando-se ao acontecimento dele ao agir.

38.       “O conceito de sanção pode ser estendido a todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa não se queira exprimir senão que a ordem jurídica, através desses atos, reage contra uma situação de fato socialmente indesejável e, através dessa reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato.” (p. 71)

39.       “Visto que uma determinada conduta humana ou é proibida ou o não é, e que, se não é proibida, deve ser considerada como permitida pela ordem jurídica, toda e qualquer conduta de um indivíduo submetido à ordem jurídica pode considerar-se regulada – num sentido positivo ou negativo – pela mesma ordem jurídica.” (p. 72)

40.       “Na medida em que a conduta de um indivíduo é permitida – no sentido negativo – pela ordem jurídica, porque esta a não proíbe, o individuo é juridicamente livre.” (p. 72)

41.       O que distingue a comunidade jurídica de um bando de salteadores é que apesar de ambos possuírem caráter coercitivo, atribuímos somente à ordem do direito um sentido objetivo de uma norma vinculada ao destinatário. Ou seja, interpreta-se o comando de um e não o de outro como norma.

42.       A chamada norma fundamental é onde está o fundamento de todas as normas e situações de um ordenamento jurídico. Somente sob a suposição desta, podemos fundamentar o material empírico como direito. Ela é a origem das demais normas, aquela que direta ou indiretamente autoriza os poderes normativos subseqüentes.

43.       Porém a norma fundamental não é uma norma posta (positivada). A teoria pura do direito trabalha com essa norma num campo hipotético. Sob a suposição de que ela vale, vale também o ordenamento jurídico que ela autoriza.

 

 

Direito e Ciência – Ciência do Direito

 

1.          “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo […], não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.” (p. 17)

2.          “Como teoria, quer […] conhecer seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como ele deve ser feito. É ciência jurídica e não política do direito.” (p. 17)

3.         O objeto da ciência jurídica é o direito, a norma jurídica. A conduta humana é só secundária, a partir do momento em que é conteúdo de determinada norma (pressuposto ou conseqüência).

4.          “A ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica como determinado através de uma norma jurídica.” (p. 109)

5.         Ciência normativa é aquela limitada às normas jurídicas de um sistema ou ordenamento. A ciência jurídica é normativa

6.         Já a ciência causal é aquela que emprega o principio da causalidade para o entendimento da conduta humana.

7.         As ciências sociais podem ou não ser diferentes das ciências naturais. Se partem do princípio da imputação (segundo o qual os elementos de um sistema são ligados por um dever-ser, uma norma posta por autoridade competente, um ato humano sob a forma de lei) – como o Direito -, são diferentes das ciências naturais, que entende que a natureza configura certa ordem de coisas na qual os elementos são ligados por uma relação de causa e efeito. Já ciências sociais como a Psicologia e a Sociologia também são informadas pelo princípio da causalidade, analisando regularidades no comportamento humano.

8.         Os atos da conduta humana se relacionam entre si e com outros fatos “não apenas segundo o princípio da causalidade, isto é, como causa e efeito, mas também segundo um outro princípio”. (p. 118) Este, é um principio ordenador, pelo qual a sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si, separando a ciência jurídica, como ciência social, da ciência da natureza.

9.          “Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação”. (p. 119)

10.       A proposição jurídica liga entre si dois elementos. Nela não se diz, consoante a lei natural, “quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser, mesmo quando B porventura, efetivamente não seja”. (p. 120)

11.       “O dever-ser jurídico, isto é, a cópula que na proposição jurídica liga pressuposto e conseqüência, abrange as três significações: a de um ser-prescrito, a de um ser-competente (ser autorizado) e de um ser-(positivamente)-permitido das conseqüências.” (p. 121)

12.       O dever-ser tem, na proposição jurídica, um caráter simplesmente descritivo.

13.       Na medida em que a ciência jurídica em geral tem que dar resposta à questão de saber se uma conduta concreta é conforme ou contrária ao direito, a sua resposta apenas pode ser uma afirmação sobre se essa conduta prescrita ou proibida, cabe ou não na competência de quem a realiza, é ou não permitida – independentemente do fato de o autor da afirmação considerar tal conduta como boa ou má moralmente, independentemente de ela merecer a sua aprovação ou desaprovação.

14.       Está, na base da interpretação da natureza pelos homens primitivos, uma regra que determina toda a vida social dos primitivos, a regra da retribuição (retaliação). Esta compreende tanto pena quanto prêmio.

15.       “O passo decisivo nesta transição de uma interpretação normativa para uma interpretação causal da natureza, do principio da imputação para o princípio da causalidade, reside no fato de o homem se tornar consciente de que as relações entre as coisas – diferentemente das relações entre os homens – são determinadas independentemente da vontade humana ou supra-humana ou, o que vem dar no mesmo, não são determinadas por normas, de que o comportamento das coisa não é prescrito ou permitido por qualquer autoridade.” (p. 131)

16.       A ciência social causal se dirige à conduta humana segundo o princípio da causalidade, se processando no domínio da natureza, as ciências sociais normativas se dirigem à conduta recíproca dos homens segundo o princípio da imputação. (normas positivas).

17.       “A sociedade, como objeto da uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros.” (p. 133)

18.       “As leis naturais, formuladas pela ciência da natureza, devem orientar-se pelos fatos.” (p. 135)

19.       “Os fatos das ações e omissões humanas, porém devem orientar-se pelas que à ciência jurídica compete descrever.” (p. 135)

20.       “Por isso, as proposições que descrevem o direito têm de ser asserções normativas ou de dever-ser.” (p. 135)

21.       “A distinção entre a causalidade e a imputação reside em que – como já notamos – a relação entre o pressuposto, como causa, e a conseqüência, como efeito, que é expressa na lei natural, não é produzida, tal como a relação entre pressuposto e conseqüência que se estabelece numa lei moral ou jurídica, através de uma norma posta pelos homens, mas é independente de toda invenção desta espécie.” (p. 137-138) “Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo o efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito […] é interminável.” (p. 138) Já o número de séries imputável é limitado.

22. “‘Imputação’ designa uma relação normativa. É esta relação […] que é expressa na palavra ‘dever-ser’, sempre que esta é usada numa lei moral ou jurídica.” (p. 138)

23.       Pessoa imputável é aquela que é responsável pelos seus atos, seus atos podem ser punidos. Uma conseqüência é imputável pelo fato, mas não produzida por ele como sua causa.

24.       A ciência jurídica trata a imputação como recompensa ou punição pela conduta estabelecida em uma ordem normativa.

25.       “Dizer que o homem, como parte da natureza, não é livre, significa que a sua conduta, considerada como fato natural, é, por força de uma lei da natureza, causada por outros fatos, isto é, tem de ser vista como efeito destes fatos e, portanto, como determinada por eles.” (p. 139)

26.       “Mas, por outro lado, dizer que o homem, como personalidade moral ou jurídica, é ‘livre’ e, portanto, responsável tem significação completamente diferente. Quando um homem é moral ou juridicamente responsabilizado pela sua conduta moral ou imoral, jurídica ou antijurídica, num sentido de aprovação ou desaprovação, isto é, quando a conduta humana é interpretada, segundo uma lei moral jurídica, como ato meritório, como pecado ou como ato ilícito, […], esta imputação encontra seu ponto terminal na conduta do homem interpretada como ato meritório, pecado ou ilícito.” (p. 139)

27.       “A questão moral ou jurídica da imputação põe-se assim: quem é responsável pela conduta em apreço? E esta questão significa: quem deve por ela ser premiado, fazer penitência ou ser punido? São a recompensa e a penitência e a pena que são imputadas, como conseqüências específicas, a um específico pressuposto. E o pressuposto é a conduta que representa o mérito, o pecado ou o crime.” (p. 140)

28.       Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
AMPAS,. Teoria pura do direito – Kelsen. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/teoria-do-direito/teoriapuradodir/ Acesso em: 29 mar. 2024