Relações Internacionais

Vinte Anos de Crise, de Edward Hallet Carr

O objetivo precede e condiciona o pensamento, logo não é surpresa descobrir que, quando a mente humana começa a exercitar-se em algum campo novo,
ocorre um estágio inicial em que o elemento do desejo ou objetivo é extremamente forte, e a inclinação para a análise de fatos ou de meios é fraca ou
inexistente. Hobhose aponta como característica dos “povos mais primitivos” que “a prova da verdade de uma ideia não enteja ainda separada da qualidade
que a torna agradável”. O mesmo pareceria extremamente verdadeiro acerca do estágio primitivo, ou “utópico”, das ciências políticas. Durante esse
estágio, os pesquisadores prestarão pouca atenção aos “fatos” existentes ou à análise de causa e efeito, mas devotar-se-ão integralmente à elaboração
de projetos visionários para a consecução dos fins que têm em vista – projetos cuja simplicidade e perfeição lhes garantem uma atração fácil e
universal. É somente quando esses projetos se desmoronam, e o desejo e objetivo mostram-se incapazes de, por si sós, atingirem o fim desejado, que os
pesquisadores relutantemente pedirão auxílio à análise, e o estudo, emergindo de seu período infantil e utópico, estabelecerá seu direito de ser visto
como ciência.

Foi nos séculos quinto e quarto a.C. que surgiram as primeiras tentativas sérias registradas de se criar uma ciência da política. Da mesma
forma que ninguém jamais conseguiu fabricar outro nem laboratório, ninguém jamais conseguiu viver numa república de Platão, ou num mundo de mercado
universal livre, ou numa comunidade cooperativa de Fourier. A ciência política internacional se encontra em estágio inicial, no qual o desejo prevalece
sobre o pensamento. O fim tem parecido tão importante, que a análise crítica dos meios propostos tem sido frequentemente classificada de destrutiva e
inútil.

O curso dos acontecimentos, a partir de 1931, revelou claramente a inadequação da aspiração pura como base de uma ciência política
internacional, e tornou possível, pela primeira vez, desencadear um sério raciocínio crítico e analítico sobre os problemas internacionais.

O impacto do raciocínio sobre o desejo, que, no desenvolvimento de uma ciência, segue-se ao colapso de seus primeiros projetos visionários,
e marca o fim de seu período especificamente utópico, é normalmente chamado de realismo. No campo da ação, o realismo tende a enfatizar o poder
irresistível das forças existentes e o caráter inevitável das tendências existentes, e a insistir e, que a mais sabedoria reside em aceitar essas
forças e tendências, e adaptar-se a elas. Tal atitude, embora defendida em nome do pensamento “objetivo”, pode facilmente ser levada a um extremo em
que resulte a esterilização do pensamento e a negação da ação. Mas há um estágio em que o realismo é o corretivo necessário da exuberância da utopia,
assim como em outros períodos a utopia foi invocada para contra-atacar a esterilidade do realismo.

“É uma eterna disputa”, como argumenta Sorel, “entre os que imaginam o mundo de modo a adaptá-lo à sua política, e os que elaboram sua
política de modo a adaptá-la às realidades de mundo”. Para o realista, a filosofia, nas famosas palavras de Hegel no prefácio de sua Filosofia do
Direito, “sempre chega tarde demais” para mudar o mundo.

O utópico, fixando seus olhos no futuro, pensa em termos de criatividade espontânea; o realista, enraizado no passado, pensa em termos de
causalidade. Toda ação humana sadia. E, portanto todo pensamento sadio, deve estabelecer em equilíbrio entre utopia e realidade, entre livre arbítrio e
determinismo. O realista completo, aceitando incondicionalmente a sequencia dos acontecimentos, se priva da possibilidade de modificar a realidade. O
utópico completo, rejeitando a sequência causal, se priva da possibilidade de entender a realidade que está tentando transformar, ou os processos pelos
quais ela poderia ser transformada. O vício característico do utópico é a ingenuidade; o do realista, a esterilidade.

Enquanto o utópico trata o objetivo como único fato básico, o realista corre o risco de tratar o objetivo meramente como produto mecânico
de outros fatos. E isso fica realmente evidente quando pensamos em utopismo e realismo dentro das Relações Internacionais. A antítese entre o mundo dos
valores e o mundo da natureza, já implícita da dicotomia objetivo-fato, está profundamente arraigada na consciência humana e no pensamento político.

A que crise se refere E. H. Carr? Os Vinte Anos de Crise referem-se à crise política e econômica do século XIX. Certamente o
assassinato de Francisco Ferdinando, da Áustria, revela-se insuficiente até mesmo para explicar o início do conflito e tampouco a corrida armamentista
podia ser considerada suficiente para explicar o envolvimento de tantas nações na guerra. A Alemanha foi considerada “culpada” e pensou-se que uma
punição exemplar do Kaiser e a exigência de pagamento de reparações pesadas, poderiam ser um alerta a todas as nações aventureiras, que pretendessem
desenvolver políticas expansionistas. Rapidamente, no entanto, também seriam suficientes para trazer a paz e a estabilidade ao meio internacional. Além
disso, as negociações que resultam nos termos do Tratado de Versailles se afiguraram muito mais uma continuação das práticas políticas das grandes
potências europeias, desenvolvidas desde a Guerra Franco Prussiana de 1871. Todo otimismo que cercou a iniciativa de Wilson pela criação da Liga das
Nações foi, gradativamente, substituído por dúvidas e apreensões que se estenderam pela década de 30 até desaguarem na Segunda Guerra Mundial.

Esse é ambiente analisado por Carr, mas como se apresenta o mundo hoje? O longo período de crescimento vivido pelos países depois da
Segunda Guerra, que culminou com o colapso do bloco socialista, tem alimentado sentimentos alternados de otimismo e pessimismo. Talvez fosse oportuno
refletir sobre uma das lições contidas no Vinte Anos de Crise: é preciso equilibrar o idealismo com uma boa dose de realismo.

Gisele Witte

Acadêmica de Direito da UFSC

Estagiária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar e referenciar este artigo:
WITTE, Gisele. Vinte Anos de Crise, de Edward Hallet Carr. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/relacoes-internacionais/vinte-anos-de-crise-de-edward-hallet-carr/ Acesso em: 29 mar. 2024