Criminologia

A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal – Andrade

A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal – Andrade

 

 

Matheus Lolli Pazeto *

 

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

 

 

  • Introdução

 

Essa obra trata da Dogmática Jurídico-Penal ou Penal, concebida como um dos paradigmas científicos que entegra o projeto e a trajetória da modernidade no marco cultural onde o paradigma se originou no século XIX (a Europa continental) e naquele para o qual foi posteriormente transnacionalizado (como a América Latina) e permanece até hoje em vigor. E seu eixo de gravitação radica na análise das funções cumpridas e não cumpridas pela Dogmática no âmbito do moderno sistema da justiça penal (ou sistema penal).

 

Consolidando-se historicamente na Europa continental desde a segunda metade do século XIX como um dedobramente disciplinar da Dogmática Jurídica, ela é assim concebida, pelos penalistas que protagonizaram e compartilham do seu paradigma, como “a” Ciência do Direito Penal que, tendo por objeto o Direito Penal positivo vigente em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna, tem uma função essencialmente prática: racionalizar a aplicação do Direito Penal, A esta função que consideramos oficialmente declarada e perseguida pelo paradigma denominaremos de função instrumental ravionalizadora/garantidora. Deste modo, a Dogmática, em sua função técnico-jurídica do Direito Penal, partindo da interpretação das normas penais produzidas pelo legislador, teria a função de garantir a maior uniformização e previsibilidade possível das decisões judiciais e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária do Direito Penal.

 

Revisitar as promessas da Dogmática Penal significa então indagar: mas, em que medida têm sido cumpridas as funções declaradas por ela na trajetória da modernidade? Tem A Dogmática penal conseguido garantir os Direitos Humanos individuais contra a violência punitiva? Tem sido possível controlar o delito com igualdade e segurança jurídica? Encontra congruência na práxis do sistema penal o discurso garantidor secular em nome do qual a Dogmática Penal fala e pretende legitimar o seu próprio ideal de Ciência? E é pelo cumprimento da função racionalizadora/garantidora declarada que se explica sua marcada vigência histórica ou ela potencializa e cumpre funções distintas das prometidas?

 

Tais são as questões centrais que a autora tenta responder nesta obra, cujas respostas implicam exercer o chamado “controle funcional” da Dogmática Penal.

 

 

  • Capítulo I – O Moderno Saber Penal

 

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    1. Introdução

 

A Dogmática Jurídica se identifica com a idéia de Ciência do Direito que, tendo por objeto o Direito Positivo vigente em um dado tempo e espaço, tem por função ser útil à aplicação do Direito. Porém, segundo Thomas Kuhn, inexiste “a” Ciência como atividade unívoca para todas as épocas e sociedades, uma vez que o entendimento sobre o que é fazer Ciência é sempre relativo a um consenso ou conjunto de compromissos teóricos básicos existentes num dado grupo humano: a comunidade científica. É sempre definido pela existência  de um “paradigma”, o que relativiza a definição do que é científico.

 

Nesse capítulo, então, a autora pretende consolidar historicamente a Dogmática Jurídico-Penal e sua relação com a Criminologia, isso porque a consolidação do paradigma dogmático na Ciência Penal ocorre paralela ao surgimento e afirmação do primeiro paradigma de Criminologia, o paradigma etiológico.

 

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    1. A Escola Clássica

 

A Escola Clássica se originou no marco histórico do Iluminismo, cobrindo um período de quase cem anos, que vai de meados do século XVIII a meados do século XIX. A obra “Dos Delitos e das Penas” de Beccaria (1764) constitui o marco mais autorizado do início da Escola e a expressão mais fidedigna do seu primeiro período; da mesma forma que a obra “Programa do Curso de Direito Criminal” de Carrara (1859) constitui o marco mais importante da culminação daquele segundo período e do pleno desenvolvimento da própria Escola Clássica.

 

Tal Escola empreenderá uma vigorosa racionalização do poder punitivo em nome, precisamente, da necessidade de garantir o indivíduo contra toda intervenção estatal arbitrária. Daí por que a denominação de “garantismo” seja talvez a que melhor espelhe o seu projeto racionalizador. A Escola Clássica é, então, tributária do método racionalista, lógico-abstrato ou dedutivo de análise do seu objeto, o qual condiciona, associado aos seus demais pressupostos, a sua produção jusfilosófica.

 

Segundo os Clássicos, a justiça penal vigente atentava, em todos os sentidos, contra a necessária certeza do Direito e a segurança individual. Eles baseavam suas idéias na teoria do contrato social, devido a isso, como primeira conseqüência do poder punitivo contratualmente fundado, Beccaria deduz a exigência de Legalidade, algo que Feuerbach consubstanciou, mais tarde, na fórmula nullun crimen nulla poena sine lege. Segundo eles, apenas o legislador poderia estabelecer leis penais, as quais indicariam, por si só, as penas de cada delito. Como segunda conseqüência, as leis deveriam ser gerais e escritas em linguagem comum e como terceira conseqüência, a pena deve ter como função prevenir o delito.

 

A Escola Clássica ocupou-se ainda em circunscrever do modo mais claro possível as diversas figuras de crime, para que não houvesse a esse respeito incertezas sobre o significado penal da ação humana. Segundo Carrara, crime é a infração da Lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso. O classicismo penal não se deteve na análise da pessoa do criminoso, porque nele não visualizou nenhuma anormalidade em relação aos demais homens. Portanto, no centro das análises da Escola Clássica não está o autor, mas sim o fato: a objetividade do fato-crime.

 

O Direito Penal Estava então construído, após três quartos de século de doutrina, como uma técnica jurídica extremamente avançada, vista como uma espécie de álgebra, em que o raciocínio abstrato se mantinha em primeiro plano e segundo o qual o delito permanecia, antes de tudo, uma entidade jurídica, objetivamente considerada como tal. È contra esse sistema que reagiria o movimento de idéias do final do século XIX.

 

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    1. A Escola Positiva

 

A Escola Positiva surge na Itália no século XIX, na década de 70, sob o predomínio de uma concepção positivista de Ciência e declínio do jusnaturalismo. Neste horizonte histórico e sob novos pressupostos ideológicos e teóricos, a crítica do positivismo ao classicismo é centrada em duas grandes dicotomias: individual x social e razão x realidade (racionalismo x empirismo).

 

A Escola Positiva assumia, então, a tarefa de resgatar o “social” e os direitos da sociedade e, ao contrário da Escola Clássica, de diminuir os delitos, e não mais as penas. O método utilizado era o método científico, experimental ou empírico-indutivo de análise de seu objeto, que condiciona, associado aos seus demais pressupostos, a sua produção científica.

 

A Escola Positiva considerava crime o fato natural e social, praticado pelo homem e causalmente determinado, que expressa a conduta anti-social de uma dada personalidade perigosa do delinqüente. Diferentes foram as respostas dadas por Lombroso e Ferri a respeito da causa do crime.

 

A primeira célebre resposta foi dada pelo médico italiano Lombroso, em seu “O Homem Delinqüente” publicada em 1876, em cuja obra sustenta a tese do criminoso nato. A causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo orgânico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime, Lombroso, valendo-se do método de investigação e analise das ciências naturais (observação e experimentação) procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não-criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, que sugeriu, inclusive, a denominação “criminoso nato”. A obra lombrosiana marca o nascimento da Criminologia como Ciência causal-explicativa.

 

A segunda resposta veio de Ferri, considerado o maior expoente da Escola Positiva. Desenvolvendo a antropologia lambrosiana e orientando-se por uma perspectiva sociológica, admitiu uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime: individuais (psíquicas e orgânicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da delinqüência. Ferri deu origem à Sociologia Criminal que representa o desenvolvimento da Criminologia etiológica. Segundo Ferri, o crime é o resultado previsível determinado por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, físicos e sociais que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como “socialmente perigosos”. O criminoso, ao contrário da Escola Clássica, passa a ser o objeto de estudos central da Escola Positiva. Quanto à responsabilidade penal, Ferri afirma que ela deriva da responsabilidade social, pois, vivendo em sociedade, o homem recebe dela as vantagens da proteção e do auxílio telectual e moral. Portanto deve também suportar-lhe as restrições e respectivas sanções, que asseguram o mínimo de disciplina social, sem o que não é possível nenhuma consorcio civilizado. E quanto à pena, a Escola Positiva a considera um meio de defesa social, na defesa da sociedade contra a criminalidade. Ferri preconizava os chamados “substitutivos penais”, vistos como um conjunto de providências consistentes em reformas práticas destinadas a atuar na eliminação ou atenuação das suas causas. Porém, como a prevenção (indireta e direta) não pode impedir que os crimes cometam, sobrevem a necessidade da repressão.

 

É neste momento que entra em cena Garofalo, insistindo no aspecto jurídico das inovações necessárias na Justiça Penal e projetando as concepções criminológicas do positivismo para o Direito Penal. Formula o conceito de “temibilidade do delinqüente”, significando a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade do mal previsto que há que se temer por parte dele, depois substituído pelo termo mais expressivo de periculosidade.

 

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    1. Implicações Legislativas das Escolas

 

Enquanto a Escola Clássica sentou as bases ideológicas da reforma e das codificações penais que se seguiram ao longo do século XIX e modelou o programa para a maturação jurídica do Direito Penal do fato-crime, a Escola Positiva senta, por sua vez, as bases ideológicas e programáticas para a reforma do Direito Penal clássico, no sentido intervencionista e para a sua maturação.

 

As legislações penais do século XX serão, sobretudo, legislações sob o império da fundamentação preventivo-especial e da necessidade de individualização da pena, mas convivendo com as concepções herdadas do classicismo, como a Legalidade, o retribucionismo e a responsabilidade moral. Serão legislações geralmente conciliadoras e de compromisso (como o Código Penal brasileiro de 1940) e, portanto, cindidas entre as exigências de objetividade, certeza e segurança jurídica e de valorização da concreta individualidade perigosa do criminoso.

 

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    1. Implicações Teóricas das Escolas

 

No universo teórico, especialmente na Itália do final do século XIX, percebia-se a convivência contraditória entre um modelo jusnaturalista, liberalmente inspirado de Ciência Penal e um modelo criminológico-positivista, de inspiração social. A Escola Clássica, porque condicionada pelo jusracionalismo, estava ainda distante das exigências que o paradigma dogmático impôs no Direito privado e iria impor no Direito Penal. Mas, por empenhar-se na construção jurídica dos limites do poder punitivo em face da liberdade individual, constitui a herança mais próxima em cuja linha sucessória, enraizada no Iluminismo, o paradigma dogmático virá a se consolidar. Bem diversa é a especificidade da Escola Positiva que, modelando o paradigma “etiológico” segundo o qual a Criminologia, definida como Ciência causal-explicativa do fenômeno da criminalidade, assume a tarefa de explicar as causas do crime e de prever os remédios para evitá-lo.

 

Num primeiro momento, na medida em que a única atividade que merecia legitimamente o rótulo de científica era a que se baseava nos fatos que podiam ser apreendidos com um método puramente causal-explicativo, a única Ciência possível, dentro desde marco, era a Criminologia. Negava-se o caráter de Ciência à atividade jurídica, por não satisfazer às exigências da concepção positivista então operante. Portanto, a consideração jurídica do delito deveria ser substituída ou ficar subordinada à criminológica, a única a garantir resultados seguros e autenticamente científicos.

 

É nesse contexto de visível hegemonia do positivismo criminológico que Ferri formula, em resposta ao problema das relações entre o enfoque jurídico e o criminológico, o seu modelo de “Sociologia Criminal”, em obra do mesmo nome e por ele confirmado nos seus “Princípios de Direito Criminal”. O modelo ferriano postula uma unificação disciplinar sob os princípios das Ciências causal-explicativas em que a autonomia metodológica da Ciência Jurídico-Penal se anula e se substitui pelo chamado método científico. Mais do que procurar uma alternativa não normativa para a Ciência do Direito Penal postula, em realidade, uma redução sociológica dela. É que, diferentemente do interesse primário do jurista pela “aplicação” do Direito, a Sociologia Criminal de Ferri tem em vista e privilegia a “reforma” do Direito Penal.

 

Frente à esta concepção de que a verdadeira Ciência do Direito Penal era a Sociologia Criminal (Criminologia) surge outra tendência, enraizada na atividade jurídica tradicional, mas paradoxalmente muito influenciada pelo positivismo. É a afirmação, no campo penal, do juspositivismo. Assim, diante desse positivismo criminológico, manifestou-se concomitantemente um positivismo jurídico centrado na idéia de resgatar, para a Ciência Penal, sua identidade propriamente jurídica, postulando a exclusão, do seu âmbito, dos fatores antropológicos e sociológicos e ainda jusnaturalistas, como latente herança das Escolas Clássicas e Positiva. Arturo Rocco foi quem produziu a sistematização mais significativa, acabada e célebre do Tecnicismo jurídico.

 

Se a Escola Positiva teve o mérito de liberar a velha Ciência Penal das “incrustações metafísicas que a recobriam” (Escola Clássica), logo frustrou a expectativa de uma nova construção científica, cuja edificação todos esperavam, pois, “destruindo sem reconstruir” chegou, em última instância, “a um Direito Penal sem direito!” Daí o “estado de ansiedade, incerteza e permanente perplexidade” que caracterizava a produção científica do Direito Penal. Cabia indagar, assim, se uma Ciência chamada Direito Penal era ou não uma Ciência Jurídica, pois continha Antropologia, Psicologia, Estatística, Sociologia, Filosofia, Política; ou seja, de tudo, menos de Direito. (citações de Rocco). O Tecnicismo jurídico criticava, então, tanto o jusracionalismo da Escola Clássica, quanto a herança puramente criminológica da Escola Positiva.

 

Segundo o paradigma dogmático de Ciência Penal, o objeto da Ciência Penal era inteiramente circunscrito ao Direito Penal Positivo vigente. E o método de elaboração técnico-jurídica do Direito Penal positivo, por sua vez, dava-se em três etapas: 1º) uma investigação exegética; 2º) uma investigação dogmática e sistemática; 3º) uma investigação crítica do direito. Enquanto a exegese e a dogmática dão a conhecer o sistema do Direito vigente, a crítica, como terceira e última etapa do método técnico-jurídico, investiga o Direito que deve ser ou o Direito ideal, adquirindo legitimidade unicamente após se esgotar aquelas duas etapas metódicas.

 

Em definitivo, aparecendo como o único capacitado a superar a “incerteza” teórica que dominava a Ciência Penal, o paradigma dogmático, a exemplo do Direito Privado, aparecia também como o único apto a fornecer a certeza e a segurança requeridas pela administração da Justiça Penal, da qual encontrava-se privada justamente por aquela incerteza. O modelo de Rocco centraliza a função do jurista na aplicação judicial do Direito.

 

Em conclusão, apesar da reação que empreendeu contra o positivismo criminológico, o Tecnicismo Jurídico não transcendeu o horizonte positivista, pois não se tratava de superá-lo, mas deslocá-lo, tornando hegemônica uma determinada versão: a do positivismo jurídico.

 

Passando-se para a Ciência Penal alemã, em que, da primeira metade do século XIX, de Feuerbach até aproximadamente 1840, é o Direito Positivo que predomina como seu objeto (ao contrário do que ocorreu na Itália na mesma época). E, apesar de uma pequena retomada do Direito Natural entre 1840 e 1870, foi mesmo o positivismo jurídico que se afirmou como objeto da Ciência Penal. Vale constar que, apesar de tratar-se da Dogmática Penal alemã depois, foi nela que a reação tecnicista na Itália se inspirou como matriz.

 

O primeiro grande representante do positivismo, sem influências jusnaturalistas e sociológicas, foi Binding. Ele dizia que a Ciência Penal, como Ciência Jurídica, deve seguir à prática presente e futura, mas, essencialmente, em ambos os casos, deve ser e seguir sendo uma Ciência do Direito Positivo. Mas quanto à tarefa dogmática, Binding não exclui juízos de valor ou referências à realidade metajurídica, pois, não tendo deduzido seus dogmas direta ou indiretamente da letra da lei, mas da “natureza das coisas”, que se situa o limite do seu juspositivismo. No terreno dogmático, portanto, Binding representa a continuidade da herança iluminista, de forma que com ele se consuma a configuração da Escola Clássica do Direito Penal e se dá a base de sustentação de todo o pensamento Dogmático Penal até nossos dias. Com ele se completa o trabalho racionalista iniciado por Guerbach ao interior do Estado de Direito.

 

Von Liszt, fundador e maior expoente da Escola Sociológica alemã também representa uma das matrizes fundacionárias do paradigma dogmático em Ciência Penal. O modelo formulado por ele é um modelo nitidamente conciliador das relações entre o positivismo jurídico e criminológico; entre a Dogmática Penal e a Criminologia, tratando de fixar o objeto, o método e os fins de ambas as disciplinas. Liszt caracteriza a “Ciência Integral do Direito Penal”, a um só tempo, como Ciência Social e como Ciência Jurídica. Enquanto corresponde à Política Criminal desempenhar a chamada missão social do Direito Penal, compete à Dogmática Penal desempenhar a função liberal do Estado de Direito, assegurando a igualdade na aplicação do Direito e a liberdade individual frente ao ataque do Leviathan. Em definitivo, portanto, Liszt não renuncia à herança liberal de maximização da segurança do cidadão, mas fortalece-a, acreditando que ela é compatível com um Direito Penal que intervenha ativamente na vida social.

 

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    1. Consolidação do Paradigma Dogmático de Ciência Penal e sua Relação com o Paradigma Etiológico de Criminologia

 

Após uma breve hegemonia do positivismo criminológico, foi a Dogmática Penal que hegemonizou a disputa e o universo das Ciências Penais. Porém, no modelo oficial que então se consolidou no século XX e perdura até nossos dias, não houve uma redução sociológica da Dogmática penal nem um abandono da Criminologia, mais uma “relativa” autonomia metodológica de cada paradigma e uma relação de auxiliariedade da Criminologia em relação à Dogmática Penal.

 

Enquanto a Dogmática Penal, Ciência normativa, terá por objeto as normas jurídico-penais e por método o técnico-jurídico (dedutivo), a Criminologia, Ciência causal-explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade estudado segundo o método experimental (indutivo), cabendo-lhe desempenhar uma função auxiliar tanto do Direito Penal como da Política Criminal oficial. Compartilha-se desde então na comunidade científica a opinião de que a Criminologia, a Política Criminal e o Direito Penal dogmático são os três pilares do sistema das “Ciências criminais”, reciprocamente independentes. A Criminologia está chamada a aportar o substrato empírico do mesmo, seu fundamento científico. A Política Criminal, a transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas assumíveis pelo legislador e os poderes públicos. O Direito Penal, a converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela Política Criminal com estrito respeito das garantias individuais e dos princípios de segurança e igualdade próprios de um estado de Direito.

 

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    1. Do Saber Filosófico e Totalizador à Especialização e Neutralidade das Ciências Penais

 

O moderno saber penal se constitui e demarca, portanto, na esteira da herança iluminista à herança positivista em suas diferentes expressões e nesta trajetória secular, em que se constituem os paradigmas penais fundamentais da modernidade e as duas grandes linhas que vimos denominando “Direito Penal do fato” e “Direito Penal do autor”, vai mudando de estatuto ao mesmo tempo em que resguardando uma certa continuidade.

 

Portanto, se há redefinições no estatuto do saber que a constrói (já que descodificada desde a Filosofia, passando pelo jusracionalismo e o juspositivismo) ela mantém um ethos garantidor materializado numa promessa de segurança jurídica ininterruptamente reiterada: eis aí sua continuidade ideológica.

 

 

  • Capítulo II – Específica identidade da dogmática jurídico-penal

 

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    1. Introdução

 

A Dogmática Penal se constitui como um desdobramento disciplinar da Dogmática Jurídica, compartilhando estruturalmente de sua identidade básica. È marcada, nesta perspectiva, por uma dependência paradigmática ao mesmo tempo em que por uma relativa autonomia decorrente do campo e da problemática penal específica em que se inscreve e no interior da qual adquire seu sentido pleno.

 

A especifidade da Dogmática Penal em relação ao seu paradigma geral traduz-se em quatro aspectos fundamentais: a) numa complementar fundamentação epistemológica neokantiana; b) numa inspiração ideológica liberal; c) numa específica projeção do método; d) numa ideologia especificamente penal.

 

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    1. A Recepção do Neokantismo de Baden pela Dogmática Penal

 

Com a intenção de superar o conceito positivista de Ciência, o neokantismo tratou de distinguir entre as Ciências da Natureza e as Ciências da Cultura, possibilitando inserir dentre estas últimas a Ciência Jurídica e fundamentar seu caráter científico com um arsenal distinto do positivista. Em seu marco, já não se trata de aproximar a atividade jurídica das Ciências Naturais, mas de diferenciá-la delas e reencontrar sua especificidade cultural.

 

O dualismo metodológico não afirma que as valorações, os juízos de valor, sejam independentes dos fatos, mas sim que os fatos não podem servir de fundamento às valorações. É este dualismo metodológico que está na base da distinção entre as Ciências Naturais (relativas ao mundo do ser) e as Ciências Culturais (relativas ao mundo do dever ser), entre as quais se insere a Ciência Jurídica.

 

A filosofia do Direito neokantiana não foi uma teoria superadora, mas complementar do positivismo jurídico, na medida em que não modificou o “objetivo”, mas tão-somente aduziu-lhe o “subjetivo”.

 

Portanto, a recepção do neokantismo não implicou uma mudança na estrutura do paradigma dogmático de Ciência Penal, que seguiu ancorado num approach juspositivista e supervalorizando os aspectos lógico-formais e técnicos na sua tarefa de construção jurídico-penal, não obstante o complemento de elementos subjetivo-valorativos na construção da teoria do delito. Por isso, tal recepção pelo paradigma dogmático de Ciência Penal só pôs fim à discussão de sua cientificidade e ao problema de sua identidade epistemológica.

 

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    1. A Auto-imagem da Dogmática Jurídico-penal

 

Pode-se afirmar que a auto-imagem da Dogmática Jurídico-Penal é, estruturalmente, a mesma de seu paradigma genérico com a especialidade que o Penal encerra e complementada, às vezes, por uma roupagem neokantiana culturalista.

 

Trata-se de uma ciência normativa, e não causal-explicativa. Tem por objeto não o ser, mas o dever ser, que são os mandamentos ou preceitos legais. Seu método é o técnico-jurídico, ou lógico abstrato. Seu processo é o mesmo de todas as ciências jurídicas: o estudo das relações jurídicas, construção lógica dos institutos jurídicos e, finalmente, a formulação do sistema, que é a mais perfeita forma do conhecimento científico.

 

O Direito Penal não é, contudo, pura ciência de conceitos, mas completa e fecunda os seus conceitos com uma orientação teleológica inspirada nos dados naturalistas e na realidade social onde a norma tem de atuar; põe-se em contato com a vida, para que nela o Direito realize seus fins, com a vida, que sugere novos problemas, quando a dogmática já tem encerrado os seus. Mas a construção da Ciência do Direito Penal é sempre um trabalho de lógica, de técnica jurídica.

 

Em resumo, a auto-imagem (transnacionalizada) da Dogmática Penal é a de uma Ciência do “dever ser”, que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente em dado tempo e espaço e por tarefa metódica (técnico jurídica, de natureza lógico-abstrata) a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo, segundo procedimentos intelectuais de coerência interna, tendo por finalidadeser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito.

 

Os penalistas dogmáticos definem, portanto, o conhecimento por eles produzido, como um conhecimento “científico” normativo, autônomo e sistemático, que encontra explicação em si mesmo através de uma postura metódica imanente, que não remete a considerações de índole social, econômica, política ou moral.

 

 

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    1. A auto-imagem funcional

 

A Dogmática afirma-se desde sua gênese histórica, como uma Ciência sistemática e eminentemente prática ao serviço de uma administração racional da justiça penal que teria como subproduto a segurança jurídica e a justiça das decisões judiciais.

 

Da Dogmática Penal brasileira, a promessa funcional pode ser ilustrada na fala de Fragoso, ao afirmar que “a Dogmática Jurídica é a Ciência da norma jurídica, que visa ao seu conhecimento sistemático, para permitir a aplicação igualitária e justa do Direito, Mas isto é alcançado, superando-se a simples atividade dos glosadores, através da reconstrução científica do direito vigente”.

 

  •  
    1. Dogmática Penal e Estado de Direito

 

A matéria-prima do discurso dogmático racionalizador/garantidor é a dicotomia liberal Estado (poder punitivo) x indivíduo (liberdade individual), sob o signo dos limites, pois a questão central que o condiciona é como racionalizar, em concreto, o poder punitivo (violência física) face aos direitos individuais (segurança); é como punir, em concreto, com segurança, no marco de uma luta racional contra o delito.

 

É visível, portanto, que a promessa funcional da Dogmática é condicionada e expressa as exigências do Estado de Direito e do Direito Penal liberal e neste sentido tanto o Direito Penal como programação, quanto a Dogmática como metaprogramação penal nascem, por um lado, negativamente; ou seja como reação contra o arbítrio da antiga Justiça Penal.

 

São duas, nesta perspectiva, as grandes promessas da Dogmática Penal na e para a modernidade, estreitamente relacionadas. É que na sua promessa epistemológica de constituir-se na Ciência do Direito Penal está contida uma promessa funcional que, mais do que condicionar o seu modelo de Ciência pretende também justificá-lo. Trata-se de uma promessa bifronte que, orientada por uma matriz liberal, credita à Ciência Penal uma instrumentalização racionalizadora/garantidora.

 

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    1. A promessa de Segurança Jurídica na Trilha do Direito Penal do Fato

 

A idéia de “segurança jurídica” é o ponto de convergência que melhor sintetiza a função declarada da Dogmática Penal. O Direito Penal do fato-crime e a promessa de segurança jurídica a ele vinculada não nascem com a Dogmática Penal, mas com a Filosofia iluminista e a Escola Clássica, mas a Dogmática Penal é a herdeira última que, recolocando a teoria do delito no marco de um sistema conceitual e vinculando-o ao princípio da legalidade, procurará conferir-lhe um estatuto de cientificidade, operando o trânsito, por assim dizer, da legalidade à legalidade cientificamente decodificada.

 

A Dogmática Penal pode ser lida, nesta perspectiva, como uma longa e complexa tentativa de conferir à promessa iluminista de segurança uma formulação científica, no marco de uma razão prática.

 

O crime era, anteriormente, conceituado por uma conduta antijurídica e culpável ou, na clássica definição de Liszt um “ato culpável, contrário ao Direito e sancionado com uma pena”. Beling, porém, foi quem, com intenção de otimizar a definição liszteana de crime até então imperante, procede, em 1906, à formulação do conceito de tipicidade como elemento categorial do crime e do tipo legal como seu necessário antecedente para aplicá-lo à ação punível e concluir que não pode haver crime sem tipo.

 

A tipicidade é, portanto, a mera adequação entre o fato-crime cometido e o tipo penal. Mas embora não tendo, em si, um significado valorativo, a subsunção da conduta num tipo penal erigia-se no ponto de referência das sucessivas valorações. Assim surgiu o novo sistema “clássico” do crime com sua divisão em três diferentes graus de juízo e valoração doravante definido como conduta típica, antijurídica e culpável, sancionada com uma pena.

 

Quanto ao princípio da legalidade, a Dogmática Penal o trata segundo a sua interpretação enquanto norma, enunciado doutrinário e enunciado metajurídico.

 

Enquanto norma, a legalidade é classificada como uma norma penal não incriminadora onde funcionaria como uma norma diretiva, isto é, disciplinadora dos princípios a serem observados em matéria de interpretação e aplicação da lei penal.

 

Enquanto princípio doutrinário, a legalidade cumpriria duas funções fundamentais, ambas associadas à explicitação do seu valor de garantia: A) uma função hermenêutica, relacionada com o modo de interpretação da lei penal e b) uma função metodológica ou sistemática, referida à produção dos conceitos jurídico-penais.

 

Enfim, tratando o princípio da legalidade como postulado metajurídico, a Dogmática salienta seu valor de “garantia política” de caráter liberal, impedindo o arbítrio na aplicação da lei penal e assegurando o exercício regular e democrático da Justiça.

 

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    1. Da Hermenêutica-Analítica à Propedêutica

 

É evidente que no campo penal a Dogmática serviu ao propósito de construir uma teoria exclusivamente técnico-jurídica do delito, o conteúdo do Direito Penal não se esgota com a dogmática da estrutura do delito, e o discurso dogmático é mais abrangente que o discurso do crime.

 

Com efeito, ele engloba uma dimensão propedêutica que na estrutura dos manuais dogmáticos antecede o discurso analítico do crime, sendo integrada por um discurso relativo à evolução histórica, conceito do Direito e da Ciência Penal e sua relação com as demais Ciências; fontes do Direito Penal, norma penal e sua interpretação, ordenamento jurídico, etc. – que correspondem, em suas linhas gerais, às teorias juspositivistas – e onde situa-se a própria interpretação do princípio da legalidade. O discurso dogmático é integrado, ainda, por um discurso dos bens jurídicos e da pena.

 

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    1. Da Ideologia Liberal à Ideologia da Defesa Social

 

A Ideologia da Defesa Social foi construída desde a Escola Clássica, passando pela Escola Positiva e chegando à Técnico-Jurídica, e foi reconstruída por Baratta, que define analiticamente o seu núcleo mediante os seguintes princípios: a) Princípio do bem e do mal; b) Princípio de culpabilidade; c) Princípio de legitimidade; d) Princípio de igualdade; e) Princípio do interesse social e do delito natural; f) Princípio do fim ou da prevenção.

 

A identidade ideológica da Dogmática Penal reside assim na dialetização do discurso liberal com o discurso da ideologia da defesa social em cujo universo deve ser inserida e compreendida a sua função declarada.

 

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    1. Segurança Jurídica para quem?

 

O Direito Penal pretende tutelar, num primeiro momento, a universalidade dos cidadãos, isto é, a maioria não transgressora; a segunda tutela diz respeito à proteção dos cidadãos efetivamente sujeitos à Justiça Penal, isto é, à minoria transgressora. Daí a moderna conexão de um Direito Penal garantidor dos cidadãos não-delinqüentes e dos cidadãos delinqüentes e cujas origens Baratta atribui à Escola Clássica e à escola social do Direito Penal.

 

Neste sentido, a tutela de bens jurídicos assume um significado bifronte. Se o delito, por um lado, lesiona bens jurídicos que a legislação penal objetiva; a pena implica necessariamente uma lesão de bens jurídicos do autor do delito. Esta privação de bens jurídicos do autor tem por objeto garantir os bens jurídicos do resto dos cidadãos. Mas não pode exceder certos limites.

 

  •  
    1. Da Racionalidade do Legislador à Racionalidade do Juiz Mediadas pela Racionalidade do Sistema Dogmático

 

A ideologia da defesa social explicitada por Baratta evidencia, enfim, que a Dogmática Penal pressupõe não apenas a racionalidade do legislador e do juiz, mas também a legitimidade do poder punitivo do Estado Moderno. Ela parte de uma determinada idéia de legitimidade do exercício do poder penal do Estado que se expressa na formulação de princípios jurídico-penais.

 

O vigoroso esforço racionalizador da Dogmática Penal é, assim um vigoroso esforço “neutralizador” do exercício do poder punitivo mediante o qual a Dogmática Penal não apenas esgota-o no trânsito lógico do legislador ao juiz, mas incide no “pensamento mágico de afirmar que a simples institucionalização formal realiza o programa, quando simplesmente o enuncia.

 

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    1. Problematização da Dogmática Penal no Passado e no Presente

 

É possível identificar três grandes eixos de argumentos recorrentes no universo da crítica histórica à Dogmática Jurídica: a) o argumento de sua falta de cientificidade; b) o argumento de sua ruptura ou divórcio com a realidade social; c) o argumento de sua instrumentalização política legitimadora do status quo.

 

Desta forma, a crítica externa à Dogmática Penal também tem acentuado sua debilidade epistemológica, seu formalismo metodológico (incluindo a incapacidade para dialogar com as Ciências Sociais, especialmente com a nova Criminologia) e seu conservadorismo político.

 

Além desta crítica externa, a Dogmática Penal tem sido objeto, também, de uma crítica interna, isto é, desde o seu interior e nos limites do próprio paradigma, circunscrita ao sistema da teoria do crime.

 

Dado que a construção de uma teoria do crime centraliza os esforços da Dogmática Penal, nesta teoria se centralizou, historicamente, sua crítica interna que, desenvolvida ao longo do século XX sobretudo pela Dogmática Germânica, encontra seu aspecto mais marcante na revisão sucessiva do conteúdo do sistema do delito, implicando alterações internas nas suas categorias constitutivas: tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

 

Quanto à crítica externa, a crítica política afirma que a Dogmática Penal se declara como um paradigma garantidor do indivíduo numa visível expressão da matriz liberal que a condiciona, a crítica de matriz marxista mais ortodoxa acusa a sua instrumentalidade na legitimação das relações de dominação capitalista em que o Direito Penal se insere, reduzindo-a a mero epifenômeno da estrutura socioeconômica e negando-lhe qualquer autonomia. A Dogmática Penal é percebida, então, como uma “filosofia da dominação”.

 

Nenhum argumento crítico parece ter sido tão recorrente, contudo, quanto o da separação, divórcio ou ruptura da Dogmática com a realidade social, por seu aprisionamento sistemático e lógico-formal no mundo do dever-ser. Pois a realidade social, da qual se acusa a Dogmática de ter se divorciado aparece como uma idéia que, geralmente não explicitada, acaba por se converter numa “fórmula vazia”.

 

Nesta perspectiva, se o argumento da separação entre Dogmática e realidade social é verossímel relativamente à sua dimensão de conhecimento ou metodológica, ele é insustentável relativamente à sua dimensão prática ou funcional, pois a Dogmática Penal está presente nas Escolas de Direito, nas reformas legislativas e nos Tribunais, e suas teorias, conceitos e princípios instrumentalizando a educação jurídica, a criação legislativa ou a aplicação judicial da lei penal, isto é, sendo usadas na argumentação decisória.

 

Nesta esteira, a crítica do divórcio entre Dogmática Penal e realidade social necessita ser recolocada no marco da ambigüidade que metodologicamente separa e funcionalmente insere (e sustenta) a Dogmática Penal na realidade. Que marca, simultaneamente, sua debilidade analítica e a força de sua sobrevivência histórica. E a partir desta percepção faz-se necessário investigar as funções latentes e reais da Dogmática Penal para além de duas funções declaradas e cuja perspectiva permite reconduzir a crítica metodológica à própria crítica política, que assinala precisamente uma função legitimadora latente cumprida pela Dogmática Penal.

 

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    1. Tendências Contemporâneas no Sistema do Delito

 

A situação presente da Dogmática Penal pode ser sumariada como a de convivência entre a continuidade do pensamento sistemático, que representa a conexão com o passado e a recepção de tendências político-criminais funcionalistas e criminológicas críticas, que representa a característica do presente.

 

É a recepção dos resultados desta crítica, que a Dogmática também está a experimentar, que pode possibilitar, efetivamente, a sua abertura cognoscitiva para a realidade social.

 

 

  • Capítulo III – O impulso desestruturador do moderno sistema penal e a mudança de paradigma em Criminologia

 

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    1. Introdução

 

Até aqui, a autora falou substancialmente do saber, ainda que em perspectiva histórica. No primeiro capítulo, enfatizou que a consolidação da Dogmática no campo penal se dá, por um lado, na esteira de um paradigma genérico de Dogmática Jurídica, mas, simultaneamente, na esteira da constituição do moderno saber penal em sentido amplo, o que marca sua inserção numa problemática penal específica e daí sua específica identidade e relativa autonomia que a autora abordou no segundo capítulo.

 

Tendo demarcado, portanto, o campo do saber em cujo universo se enraíza e consolida a Dogmática Penal e assinalado o seu próprio horizonte de projeção e funções declaradas, aduzimos, enfim, que a Dogmática Penal encontra-se cognoscitivamente distanciada da realidade social, mas funcionalmente não. E que sua sobrevivência histórica somente pode ser explicada a partir das funções realmente cumpridas na realidade social.

 

A autora está, pois, em condições de interrogar: em que medida têm sido cumpridas as promessas da Dogmática Penal conseguido garantir, com sua metaprogramação, os direitos humanos individuais contra a violência punitiva? Tem sido possível controlar o delito com igualdade e segurança jurídica? Encontra congruência na práxis do sistema penal o discurso garantidor secular em nome do qual a Dogmática Penal fala e pretende legitimar o seu próprio ideal de Ciência? O sistema penal opera com base na conduta do autor? E é pelo cumprimento da função racionalizadora/garantidora declarada que se explica sua marcada vigência histórica ou ela potencializa e cumpre funções distintas das prometidas?

 

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    1. Caracterização do Moderno Sistema Penal

 

Na passagem do antigo para o moderno controle do delito situam-se assim quatro mudanças chaves que, cumulativamente fornecidas pela literatura crítica, fornecem o desenho dos modelos fundamentais que o caracterizam nas sociedades ocidentais: a) controle centralizado, racionalizado e burocratizado; b) categorização (classificação dos desviantes) e profissionalização (especializações); c) a segregação como resposta penal hegemônica; d) a mente como objeto do poder de punir;

 

O moderno controle do delito caracteriza-se como estatalmente centralizado no sistema de justiça penal, racionalizado, burocratizado e profissionalizado, tendo a prisão como resposta penal básica e a “mente” como objeto de controle.

 

Na estrutura organizacional do moderno sistema penal, podem-se distinguir, pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão definicional ou programadora do controle penal que define as regras para as suas ações e decisões e os próprios fins perseguidos, que define, portanto, o seu horizonte de projeção; b) uma dimensão operacional que deve realizar o controle penal com base naquela programação. O sistema é, pois, um conceito bidimensional que inclui normas e saberes (enquanto programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e decisões, em princípio racionalizadas, por outro.

 

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    1. O Discurso Oficial de Autolegitimação do Poder e do Sistema Penal

 

O sistema penal é um exercício de poder e de funções acionando um típico controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe detectar uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normatizadora que gera a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e assinala os casos e condições para atuar.

 

Enquanto a Dogmática Penal, na esteira do saber penal clássico, se projeta no horizonte da racionalização garantidora do sistema; a Criminologia se projeta no universo da racionalização utilitarista, vinculada à concentração da resposta penal na pessoa (alma) do criminoso e diretamente relacionada com a instituição da prisão. Tratam-se de saberes fundamentais na justificação do sistema.

 

A produção de uma ideologia legitimadora do poder penal, baseada no princípio da legalidade, acompanha desde o começo a história do Direito Penal e a autolimitação do uso da repressão física na função punitiva por parte do poder central, mediante as definições legais dos crimes e das penas, forma parte da nova ideologia legitimadora que, a partir do século XVIII, se encontra no centro do pensamento liberal clássico e das doutrinas liberais do direito penal.

 

Esta discursividade legitimadora vai, assim, da afirmação e explicitação do princípio da legalidade pelo saber clássico à sua decodificação pela Dogmática Penal em cujo âmbito o princípio exerce também uma função hermenêutica e sistemática na construção da teoria do delito, apresentada então como uma metodologia garantidora de uma correta Justiça Penal. Trata-se, portanto, da legitimação vinculada ao retribucionismo, à construção do Direito Penal liberal do fato e à segurança jurídica que gestada pela Filosofia e chegando à Ciência Dogmática do Direito Penal como ideologia já consolidada, dela recebe uma base científica (legalidade científica ou cientificamente decodificada).

 

O repertório da ideologia da defesa social é integrado, sob o princípio do fim e da prevenção, pelas teorias absolutas (retribuição), da prevenção geral negativa (intimidação) e da prevenção especial positiva (ressocialização), numa visão polifuncional da pena que corresponde, de resto, à opção dominantemente positivada pelas legislações penais contemporâneas que, sem abandonar a atribuição de funções retributivas e intimidativas à pena, acentuam a função reeducativa ou ressocializadora que se encontra no centro das estratégias legitimadoras do poder punitivo. Pode-se constatar, neste sentido, que o direito penal contemporâneo se autodefine como direito penal de tratamento, e que a legislação mais recente atribui ao tratamento a finalidade de reeducar e reincorporar o delinqüente à sociedade.

 

Nesta dupla linha de legitimação pode-se ver convergir, pois, a ideologia liberal e a ideologia da defesa social. Pode-se dizer, neste sentido, que a ideologia da defesa social sintetiza uma visão global legitimamente do exercício de poder do sistema penal, à medida em que sintetiza o conjunto das representações oficiais sobre sua identidade e fins que, dando sustentáculos às funções utilitárias atribuídas à pena, se dialetiza, por sua vez, com a legitimação liberal pela legalidade. E que em princípio, há um concurso de discursos na legitimação do sistema que não obedecem a uma coerência interna.

 

Desta forma, como diz Cirino dos Santos: “o sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, aparece como sistema garantidor de uma ordem social justa, protegendo bens jurídicos gerais, e, assim, promovendo o bem comum. Essa concepção é legitimada pela teoria jurídica do crime (extraída da lei penal vigente), que funciona como metodologia garantidora de uma correta justiça, e pela teoria jurídica da pena, estruturada na dupla finalidade de retribuição (equivalente) e de prevenção (geral e especial) do crime”.

 

A legitimidade do sistema penal requer, desta forma, uma congruência da sua dimensão operacional em relação à sua dimensão programadora em nome da qual pretende justificá-lo; ou seja, requer não apenas sua operacionalização no marco da programação normativa (exercício racionalizado de poder), mas também o cumprimento dos fins socialmente úteis atribuídos ao Direito Penal e à pena (programação teleológica).

 

Nesta perspectiva, uma crise ou perda de legitimidade do sistema – que tem lugar na medida em que o sistema não opera no marco da programação ou não cumpre as funções declaradas – não é necessariamente acompanhada da perda de sua autolegitimação oficial.

 

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    1. Da Construção (Legitimadora) à Desconstrução (Deslegitimadora) do Moderno Sistema Penal

 

Desta forma, se de finais do século XVIII ao longo do século XIX, assistimos à construção do moderno sistema penal e seus paradigmas fundamentais de sustentação, a partir da década de 60 de nosso século assistimos a um processo – aparentemente inverso – de desconstrução e deslegitimação teórica deste mesmo sistema e seus paradigmas que conforma aquilo que Cohen denominou, com propriedade, de “impulso desestruturador” ou a “desconstrução dos modelos penais fundamentais”, e Zaffaroni, de “marcos teóricos fundamentais da deslegitimação do sistema penal”. Esta desconstrução, tal como aquela construção, enraíza-se no capitalismo central.

 

Na primeira dimensão, pode-se aludir a pelo menos cinco descontruções fundamentais que, embora superpostas e convergentes, estruturam-se a partir de diferentes perspectivas analíticas: a desconstrução marxista, a desconstrução foucauldiana, a desconstrução interacionista do labelling approach, a desconstrução abolicionista e a descontrução feminista.

 

Nesta conversão, transforma-se o próprio estatuto do saber criminológico, pos ela se dá através da desconstrução e superação do paradigma etiológico pelo paradigma da reação social, o que tem sido considerado uma “revolução de paradigma” em Criminologia, processo este que culmina na construção da Criminologia crítica.

 

Assim, a Criminologia contemporânea experimenta uma troca de paradigmas mediante a qual está a se deslocar e transformar de uma Ciência das causas da criminalidade (paradigma etiológico) que caracterizou seu estatuto desde o século XIX, em uma Ciência das condições da criminalização (paradigma da reação social), ocupando-se hoje, especialmente, do controle sociopenal e da análise da estrutura, operacionalidade e reais funções do sistema de penal, que veio ocupar um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação criminológica.

 

O impulso desestruturador atinge assim também o domínio da Política Criminal que, até então reduzida à Política da Pena e da reforma do Direito e do sistema penal oficial, tem seu horizonte pluralizado e aberto para o diálogo sobre Políticas Criminais alternativas. De certo modo, a Política Criminal respondeu na práxis e desde o seu interior, aos resultados desconstrutores experimentando-se, no capitalismo central, alternativas político-criminais concretas.

 

Em linhas gerais, os grandes eixos de alternativas político-Criminais então em curso, fundamentam-se na necessidade da mínima – e redefinida – intervenção penal ou na abolição do sistema penal e sua substituição por formas alternativas de resolução de conflitos como mediação e conciliação. De forma que se distribuem, centralmente, entre posturas minimalistas e abolicionistas ou posturas que, sem recusar a utopia abolicionista a longo prazo reivindicam um Direito Penal mínimo baseado na reconstrução crítica e fortalecimento das garantias liberais a curto e médio prazo.

 

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    1. Da História Oficial às Histórias Revisionistas da Gênese do Moderno Sistema Penal

 

A história oficial da emergência do moderno sistema da justiça penal é precisamente a representada pelo discurso jurídico declarado que, desde uma visão linear e idealista da história a contou como produto de uma evolução progressiva da barbárie ao humanismo, comandada pela evolução das idéias pelo e para o homem.

 

As histórias revisionistas são tais precisamente porque, desde um enfoque materialista-marxista, materialista político-econômico, ou funcionalista recontaram a história oficial da ótica do poder, do controle e da dominação mostrando, por um lado, o idealismo do discurso jurídico, embora às vezes, em direção oposta, à custa da negação estrutural do homem e do humanismo.

 

A “trilogia” representada pelas já clássicas historiografias de Rusche e Kircheimer, Foucault, Melossi e Pavarini oferece em seu conjunto – não obstante as diferenças internas que as separam entre si – as seguintes indicações epistemológicas:

 

a) O sistema penal não pode ser compreendido como realidade autônoma, mas como parte do sistema social concreto no qual se insere e a partir da conexão funcional que guarda com ele; ou seja, de suas funções reais, Daí a necessidade de fundamentar o estudo das suas funções declaradas na base das funções latentes e reais;

 

b) A reforma iluminista e a fundação do sistema penal moderno que dela decorreu não resultam unicamente de transformações das idéias, mas de transformações no sistema social, e suas funções declaradas ocultam exigências e funções latentes. O discurso declarado é ideológico;

c) O desenvolvimento histórico e a situação presente da prisão e do sistema penal só podem ser compreendidos em relação à fundação do sistema e da unidade do Direito, isto é, entre a programação normativa e a sua aplicação.

 

Assim, uma tese comum desta historiografia é que a emergência da pena de prisão e do moderno sistema penal somente pode ser compreendida no marco das transformações sociais, econômicas e políticas concretas que presidem à consolidação da sociedade capitalista, pois expressa suas exigências de dominação classista antes que a exigência de humanização da pena. O processo de industrialização e o impacto racionalizador do mercado, a necessidade de regular a força de trabalho, o medo ao proletariado nascente, a necessidade de substituir a autoridade tradicional e os conceitos pré-modernos; todos estes fatores, em diversificadas combinações, faziam da violência física aberta um castigo penal anacrônico e ineficaz. Era necessário um novo sistema de dominação e disciplina para socializar a produção e criar uma força de trabalho submissa e perfeitamente regulada. Assim, não apenas a prisão, mas todo o sistema penal forma parte de uma extensa racionalização das relações sociais no capitalismo nascente.

 

Destaca-se inicialmente a historiografia dos autores da Escola de Frankfurt, Rusche e Kircheimer, que, como seu título “Pena e Estrutura Social” está a indicar, constitui uma abordagem do sistema penal à luz de categorias do materialismo histórico, segundo a qual o sistema penal de uma sociedade determinada não constitui um fenômeno isolado sujeito somente a suas regulações normativas, senão que é parte integral da totalidade do sistema social com o qual compartilha suas aspirações e defeitos.

 

Partindo assim da indicação epistemológica básica de que a pena como tal não existe; existem somente sistemas punitivos concretos e práticas determinadas para o tratamento dos criminosos é conhecida a tese central formulada e desenvolvida nesta historiografia: “Cada sistema de produção tende ao descobrimento de métodos punitivos que correspondem a suas relações produtivas. Resulta, por conseguinte, necessário investigar a origem e o destino dos sistemas penais, o uso ou a elusão de castigos específicos e a intensidade das práticas penais em sua determinação por forças sócias, sobretudo no que diz respeito à influência econômica e fiscal” (Rusche e Kircheimer, 1984).

 

A historiografia de Foucault objetiva caracterizar a disciplina (incorporada na estrutura panótica das relações sociais) como a modalidade específica de poder que coloniza a gênese da instituição carcerária, explicando-a pela produção e reprodução de uma ilegalidade fechada, separada e útil (a delinqüência) e, simultaneamente, de corpos dóceis, garantindo e reproduzindo as relações de poder (e a estrutura de classe) da sociedade. Trata-se de aumentar a eficácia produtiva do homem e diminuir sua força política (maximização da força econômica e minimização da força política).

 

O sistema penal é assim um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas na medida em que os castigos universais das leis vêm aplicar-se seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos.

 

Tratava-se, portanto, não apenas de uma redução quantitativa das punições, mas de um deslocamento qualitativo do seu objeto: do corpo para a alma.

 

Na esteira da investigação de Rusche e Kircheimer e de M. Foucault, situa-se, por seu turno, a historiografia de Melossi & pavarini que investiga as origens do sistema penitenciário na Europa (em especial na Itália) e Estados unidos dos séculos XVI a XIX para demonstrar a relação existente entre cárcere e fábrica; entre interação e adestramento para a disciplina fabril. Para eles, a conexão funcional entre cárcere e sociedade reside no conceito de disciplina.

 

O cárcere e as demais instituições de confinamento são lugares fechados, e portanto estão isolados e separados da sociedade livre, mas esta separação resulta mais aparente que real, já que o cárcere não faz mais do que levar ao paroxismo modelos sociais ou econômicos de organização que se tentam impor ou que já existem na sociedade. Foucault por uma parte, e Melossi e Pavarini por outra, seguindo métodos e projetos ideológicos muito diferentes. Chegam à mesma conclusão, que se pode considerar já como o ponto de partida da investigação histórica atual das instituições penitenciárias.

 

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    1. O Labelling Approach e o Paradigma da Reação Social

 

Ao longo do século XX desenvolveram-se nos Estados Unidos novas formas de conhecimento criminológico dirigidas a compreender, explicar e atuar sobre os problemas sociais de uma comunidade culturalmente tão diversa como aquela. A partir de então, a produção criminológica norte-americana começou a distanciar-se da européia e a tomar a dianteira teórica da disciplina.

 

Influenciado pelo interacionismo simbólico, o labelling mantém com ele extensas áreas de contato e superposição. Assim sucede, por exemplo com o recurso ao modelo e ao vocabulário da dramaturgia e com a utilização de técnicas de investigação próprias da microssociologia. Por outro lado, tal como o interacionismo simbólico, também o labelling approach rejeita o pensamento determinista e os modelos estruturais e estáticos, tanto no que respeita à abordagem do comportamento como no que toca à compreensão da própria identidade individual.

 

Modelado pelo interacionismo simbólico e o construtivismo social como esquema explicativo da conduta humana, o labelling parte dos conceitos de conduta desviada e reação social, como termos reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio – e a criminalidade – não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção.

 

Relativizando e problematizando a definição da criminalidade do paradigma etiológico, o labbeling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das “causas” do crime para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal, como conjunto articulado de processos de definição e de seleção e para o impacto que produz o etiquetamento na identidade do desviante.

 

Desta forma, ao invés de indagar como a Criminologia tradicional, “quem é criminoso?”, “por que é que o criminoso comete crime?” o labelling passa a indagar “quem é definido como desviante?” “por que determinados indivíduos são definidos como tais?”, “quem define quem?” e, enfim, com base em que leis sociais se distribui e concentra o poder de definição?

 

Em decorrência, pois, de sua rejeição ao determinismo e aos modelos estáticos de comportamento, o labelling supera uma visão e abordagem estática e descontínua por uma visão e abordagem dinâmica e contínua do sistema penal, conduzindo ao reconhecimento de que, do ponto de vista do processo de criminalização seletiva, a investigação das agências formais de controle não pode considerá-las como agências isoladas umas das outras, auto-suficientes e auto-reguladas mas requer, no mais alto grau, um approach integrado que permita dar uma maior consistência ao funcionamento do sistema como um todo.

 

A introdução do labelling approach, sobretudo devido à influência de correntes de origem fenomenológica, na sociologia da desviância e do controle social, e de outros desenvolvimentos da reflexão sociológica e histórica sobre o fenômeno criminal e sobre o direito penal, determinaram, no seio da Criminologia contemporânea, uma troca de paradigmas mediante a qual esses mecanismos de definição e de reação social vieram ocupar um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação criminológica. Constitui-se, assim, um paradigma alternativo relativamente ao paradigma etiológico, que se chama justamente, o paradigma da reação social.

 

Com o então paradigma da reação social, do controle ou da definição e a polarização da análise criminológica em torno da natureza, estrutura e funções do controle social e suas diversas instâncias, considera-se inaugurada a terceira grande fase no desenvolvimento do conhecimento criminológico, depois da ruptura um século antes a Escola Positiva realizou relativamente ao pensamento criminológico clássico.

 

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    1. De um Modelo Pluralista a um Modelo Conflitivo

 

São as teorias conflituais (COSER, SIMMEL, TURK, QUINNEY), contudo, que irão desenvolver a dimensão do político no interior do paradigma da reação social, reconduzindo-a das estruturas paritárias dos pequenos grupos e dos processos informais de interações que se desenvolvem no seu interior às estruturas gerais da sociedade e aos seus conflitos de interesse e hegemonia que aparecem como princípio explicativo fundamental dos processos de criminalização.

 

São assim elementos peculiares das teorias conflitivas baseadas no paradigma da reação social: a) a antecipação lógica do processo de criminalização relativamente ao comportamento criminal; b) a dependência funcional do processo de criminalização (e, em conseqüência do comportamento criminal) das dinâmicas conflitivas presentes na sociedade; c) a natureza política de todo o fenômeno criminal.

 

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    1. Do Labelling Approach à Criminologia Crítica

 

Por isto mesmo, com o labelling approach e com as teorias sociológicas do conflito, tem lugar, no âmbito da sociologia criminal contemporânea, a passagem da Criminologia liberal à Criminologia crítica. Uma passagem que acontece sem uma verdadeira e própria solução de continuidade. A recepção alemã do labelling approach, em particular, é um momento importante desta passagem.

 

Baratta assinala, neste sentido, que através do desenvolvimento da Criminologia dos anos quarenta em diante são duas as etapas principais que conduziram aos umbrais da Criminologia crítica: “Em primeiro lugar, o deslocamento do enfoque teórico do autor às condições objetivas, estruturais e funcionais, que se encontram na origem dos fenômenos do desvio. Em segundo lugar, o deslocamento do interesse cognoscitivo desde as causas do desvio criminal até os mecanismos sociais e institucionais mediante os quais se elabora a ‘realidade social’ do desvio (…). Opondo ao enfoque biopsicológico o enfoque macrosociológico,a Criminologia crítica historia a realidade do comportamento desviante e põe em evidência sua relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e distribuição. O salto qualitativo que separa a nova da velha Criminologia consiste, todavia, sobretudo na superação do paradigma etiológico, que era o paradigma fundamental de uma ciência entendida naturalisticamente como teoria das ‘causas’ da criminalidade. A superação deste paradigma comporta também a de suas implicações ideológicas: a concepção da desvio e da criminalidade como realidade social e institucional e a aceitação acríticas das definições legais como princípio de individualização daquela pretendida realidade ontológica; duas atitudes, além de tudo, contraditórias entre si”.

 

De qualquer modo, é quando o enfoque macrosociológico se desloca do comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele, em especial para o processo de criminalização, que o momento crítico atinge sua maturação na Criminologia e ela tende a transformar-se de uma teoria da criminalidade em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal. De modo que deixando de lado possíveis diferenciações no seu interior ela se ocupa hoje em dia, fundamentalmente, da análise dos sistemas penais vigentes. No trânsito da análise da operacionalidade do sistema penal – descrição da desigualdade – para a sua interpretação estrutural a Criminologia crítica chega, assim, à investigação das funções simbólicas e reais do sistema penal e a uma desconstrução unitária e mais elaborada da ideologia da defesa social.

 

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    1. O Controle Epistemológico do Paradigma Etiológico

 

Em síntese, pois, a aporia desta Criminologia consiste em que ela declara-se como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade, exclui a reação social de seu objeto, quando é dela inteiramente dependente; ao mesmo tempo em que se apóia, aprioristicamente, numa noção ontológica da criminalidade. Assim, ao invés de investigar, fenomenicamente, o objeto criminalidade, este aparece já dado pela clientela das prisões e dos manicômios que constitui então a matériaprima para a elaboração de suas teorias criminológicas. Afirmando que este atributo criminalidade, sendo uma realidade ontológica, diferencia tais sujeitos dos que estão fora do muros do cárcere e dos manicômios, pode passar à investigação de suas causas e ao seu combate científico em defesa da sociedade.

 

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    1. O Controle Funcional do Paradigma Etiológico

 

Ao definir-se como Ciência causal-explicativa a Criminologia positivista oculta que na verdade foi sempre controle social e, como tal, é poder.

 

Ela nasce, portanto, como um ramo específico da ciência positiva para aplicar e legitimar o controle. A teoria da defesa social, como uma teoria com pretensões científicas e sociológicas, é a nova ideologia do controle do intervencionismo, justamente para submeter a toda outra ideologia. Com mais nitidez que nunca o Estado aparece ligado intrinsecamente a uma ideologia do controle para o controle da ideologia e sob o manto da neutralidade e objetividade científica, que lhe permite abjurar de toda ideologia, salvo a própria.

 

E na esteira desta interpretação passa a ser reavaliado o próprio lugar que corresponde à Escola Clássica na história da Criminologia, discutindo-se se ela representa apenas uma “pré-Criminologia” ou se constitui, já, uma primeira Criminologia e um capítulo, não menos importante, da sua história. Passa a falar-se de Escola Clássica de Criminologia e não mais unicamente de Escola Clássica do Direito Penal.

 

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    1. Do Controle Epistemológico e Funcional do Paradigma Etiológico de Criminologia ao Controle Funcional do Paradigma Dogmático de Ciência Penal

 

Nesta redefinição temática em relação ao objeto de ambas as disciplinas o Direito Penal converte-se, diretamente, em objeto criminológico e a relação Criminologia-direito penal, se faz, pois, uma relação de ciência-objeto.

 

E, à diferença de objeto da Dogmática, pela qual é definido como normatividade abstrata, protetora de bens jurídicos universais (princípio do interesse social) e, com a sua mediação científica, igualitária e mecanicamente aplicada (princípio da igualdade); na condição de objeto criminológico é criticamente recolocado e funcionalmente redimensionado no marco e na dinâmica do sistema penal. Na mesma medida em que a explicação da criminalidade passa a ser referenciada e explicada a partir da reação social, vista como constitutiva da sua “construção seletiva” o Direito Penal também passa a ser explicado como instrumento do controle sócio-penal. Neste sentido o novo paradigma comporta não apenas uma superação da concepção ontológica da criminalidade mas, simultaneamente, uma superação da concepção normativista e despolitizada do Direito Penal, própria dos paradigmas etiológico e dogmático e da ideologia da defesa social que os conforma. Desde sua redefinição criminológica é no marco do sistema penal e do processo de criminalização seletiva por ele acionado que o Direito Penal adquire sua significação plena.

 

Contrariamente à Criminologia tradicional que, na condição de instância interna do sistema penal desempenha uma função, auxiliar e legitimadora relativamente a este e à Política Criminal Oficial, a Criminologia contemporânea, ao resgatar sua autonomia científica, situa-se como uma instância crítica externa do Direito e do sistema penal.

 

Neste sentido, a Criminologia crítica coloca-se numa relação radicalmente diferente com a prática. Para a Criminologia tradicional o sistema positivo e a prática oficial são os destinatários, os beneficiários do seu saber, o príncipe que ela é chamada a aconselhar. Para a Criminologia crítica o sistema positivo e a prática oficial são, antes de mais, o objeto do seu saber. A relação com o sistema é crítica: a sua tarefa imediata não consiste em fornecer receitas de política criminal mas sim em examinar de maneira científica a gênese do sistema, a sua estrutura, os seu mecanismos de seleção, as funções que ele realmente exerce, os seus custos econômicos e sociais.

 

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    1. Marco Teórico e Bases do Controle Dogmático

 

Em definitivo, portanto, com seu novo e autônomo estatuto e objeto a Criminologia fundada no paradigma da reação social, desde o seu momento genético, com a matriz interacionista até seu desenvolvimento com a Criminologia crítica, em cujo marco chega-se ao direto questionamento de uma nova forma de relação com a Dogmática Penal, é o saber que potencializa e assumimos, sob a indicada ótica do garantismo, para o seu controle epistemológico-funcional. Neste sentido consideramos fundamental e recebemos tanto a contribuição dos criminólogos quanto a dos penalistas críticos, nos termos já aludidos. Por sua vez, a historiografia foucaultiana, apresentando fortes pontos de intersecção e convergência com a crítica criminológica que dela recebe, inclusive, algumas indicações epistemológicas fundamentais, concorre com uma contribuição fundamental para este controle.

 

É que um controle epistemológico-funcional não pode se limitar à contrastação direta entre funções declaradas da Dogmática Penal e operacionalidade do sistema penal, partindo dos próprios pressupostos dogmáticos. Mas deve partir de uma reinterpretação global do paradigma que, acorde com as indicações do saber eleito, chegue ao controle de sua autoimagem funcional (funções declaradas) desde o controle de sua auto-imagem genérica. Nesta perspectiva, a primeira indicação fundamental que retemos é a necessidade de inserção analítica da Dogmática no âmbito do sistema penal, o que conduz a ressignificar sua auto-imagem como Ciência (neutra) do Direito Penal. Pois, para além de uma instância científica externa, isto é, sobre o Direito Penal, trata-se de uma instância funcional interna181 ao sistema penal.

 

Em segundo lugar , enquanto instância do sistema penal, a Dogmática co-participa, conseqüentemente, de seu real funcionamento. Por isto mesmo, ao explicitá-lo, a crítica social fornece dados decisivos para responder não apenas às indagações sobre o (des)cumprimento das funções declaradas do paradigma mas para a constatação do cumprimento de outras funções que, embora não declaradas e assumidas, tem latentemente potencializado, como a já afirmada, de legitimação do sistema penal. Permite assim perquirir sua real funcionalidade para além da sua auto-imagem funcional.

 

Em terceiro lugar, inserir a Dogmática Penal no âmbito do sistema de controle e criminalização é inseri-la como instância do poder concreto que ele representa no Estado moderno: ser instância do sistema é ser instância do poder. Em quarto lugar, a inserção da Dogmática Penal como instância do sistema penal – ponto de partida do seu controle – conduz a retomar a relação funcional entre Dogmática e realidade social para além da relação funcional, dogmaticamente imaginada, entre seu modelo científico e a aplicação judicial do Direito Penal, abstratamente considerada.

 

Por último, os dados historiográficos, sociológicos e criminológicos críticos sobre o sistema penal e sobre a ideologia da defesa social permitem refundamentar o atraso teórico da Dogmática Penal o seu déficit cognoscitivo. Pois, se a fundamentação deste atraso não é nova, tendo vindo a se materializar no interior de disciplinas como a Semiologia, a Sociologia Jurídica, as Teorias críticas do Direito e outras, com estes dados acumulam-se as perspectivas para se concluir que a Dogmática Penal se apóia em crenças e fundamentos teóricos totalmente desacreditados pelo conhecimento contemporâneo.

 

 

* Acadêmico de Direito da UFSC

Como citar e referenciar este artigo:
, Matheus Lolli Pazeto. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal – Andrade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/criminologia/a-ilusao-de-seguranca-juridica-do-controle-da-violencia-a-violencia-do-controle-penal-andrade/ Acesso em: 19 mar. 2024