Política

Utilização da Justiça com fins escusos

Utilização da Justiça com fins escusos

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

O Poder Judiciário foi criado, obviamente, com a finalidade de reparar injustiças. No entanto, não é raro que, cada vez mais, seja — ou tente ser — utilizado, por demandistas espertos — nem tanto, nem tanto… — e mal intencionados visando infringir prejuízos, lesar credores, garantir impunidade, esconder a verdade, oprimir os mais fracos ou confundir a opinião pública. Mais uma prova de que nenhuma instituição, por mais seriamente concebida que tenha sido — e esforce-se na seleção de seus integrantes —, está livre de tentativas, mais ou menos engenhosas — tecnicamente “legais” —, de pessoas, físicas ou jurídicas, pedindo uma coisa visando outra.

 

Para neutralizar a “astúcia peticionante” — um neologismo justificável para o fenômeno — é necessário que os juízes não sejam excessivamente cerceados por um enxame de artigos e parágrafos, tremendamente formais, que impeçam sua busca da verdade, quando essa busca seja sincera, isto é, não impulsionada por simpatias ou antipatias.

 

Juízes variam nesse desejo de trazer a verdade à tona. Uns são mais formais, entendendo que cabe somente às partes provar o alegado. Tecnicamente não estão errados — assim está na lei —, mas essa frieza excessiva acaba, com o tempo, minando o respeito público pela Justiça. O povo só observa o resultado. Se este afronta claramente o sentimento natural de justiça, é mais uma pedra retirada dos alicerces do edifício da justiça, que começa sofrer trincas em sua credibilidade.

 

Outros juízes — mais merecedores de elogios — interessam-se realmente pela justiça do caso concreto, buscando — oficialmente, às claras, com despachos nos autos — informações que muitas vezes podem alterar a decisão da causa, quando o advogado da parte é tecnicamente fraco ou pouco diligente.

 

Juízes com essa tendência de busca da verdade real, não apenas formal — como se todos os demandantes fossem seus parentes, merecedores de especial atenção — às vezes são encarados com rancor por parte de advogados competentes que têm, como adversários, colegas pouco preparados ou preguiçosos. Pensam os tais indignados: “Não fosse a “intrometida” atividade probatória do juíz, convertendo o julgamento em diligência, requisitando dados que não foram apresentados pela parte contrária, eu teria vencido a causa. Para que me serviu ser mais estudioso e inteligente que meu oponente? Tanto estudo e pesquisa jogados no lixo! A “bêsta” contrária acabou me derrotando! Sinto-me injustiçado!”

 

É natural essa reação. “A “bêsta” adversária, apesar de sua incompetência, venceu a demanda, mesmo sem mérito próprio. No entanto, é melhor que um advogado competente fique indignado, do que a comunidade perca a fé na justiça do seu país. Não esquecer que os juízes foram instituídos para proteger as pessoas que têm razão, não para decidir quem tem melhor advogado. Sua função não equipara-se a de um árbitro esportivo.

 

Interessante o que ocorreu, certa vez, numa comarca perto de São Paulo. Um advogado especialmente inteligente — com quem eu me dava muito bem, sem parcialidade —, estava visivelmente revoltado com o despacho de outro juiz que, percebendo suas intenções “espertinhas”, tinha dado uma decisão que neutralizava a chicana desse advogado. Defendendo o juiz, após ouvir o advogado, eu ponderei: “Mas o juiz, no fundo, não estava certo? Tua manobra não era, pelo que você mesmo disse, uma artimanha processual? Ele, a contragosto, respondeu: — “Era!… Mas como o juiz adivinhou isso? Os autos nada revelavam de minha intenção! E se eu estivesse dizendo a verdade? Ele tem bola de cristal?!”

 

No caso, tinha…

 

Paremos — a contragosto — por aqui, em respeito à paciência do leitor. Vamos ao que interessa, mais especificamente: a notícia que, publicada na imprensa de ontem, me estimulou a escrever estas linhas. Refiro-me à estratégia de uma denominação religiosa, no Brasil — a Igreja Universal do Reio de Deus —, que está movendo — usando, para isso, seus pastores e fiéis — uma série de ações de indenização, por dano moral, contra jornais. Estes apresentaram reportagens acusando ou sugerindo que a referida Igreja estaria interessada em demasia no patrimônio dos fiéis de pouca instrução, além de pouco respeitosa no encarar religiões mais tradicionais.

 

Segundo a imprensa prejudicada, fiéis e pastores da referida Igreja Universal passaram a mover contra certos jornais — com fins claramente intimidativos —, grande número de ações cíveis de danos morais, em distantes e remotos pontos do país. A finalidade disfarçada dessa estratégia de múltiplas demandas, seria intimidar e dificultar o direito de defesa dessas empresas jornalísticas, obrigadas a contratar inúmeros advogados, em diversos estados da União. As notícias afirmam que ações são ajuizadas até mesmo em lugares só acessíveis por barco.

 

Presumindo-se que isso esteja mesmo ocorrendo — tanto assim que a ABI se interessou pelo assunto — é evidente que a referida Igreja está se utilizando da Justiça para finalidade inconfessável. E com certa habilidade. Tanto assim que, segundo os jornais, os fiéis e pastores dão à sua causa um valor modesto. Fazem isso para que, na hipótese bem provável de derrotados na demanda, seja baixo o valor da sucumbência — para os leigos: a condenação em honorários advocatícios, imposta pelo juiz à parte que perdeu a causa.

 

Na verdade, os autores da ação não estão interessados no valor da condenação. Estão interessados é em calar a boca dos jornalistas e repórteres. Nenhum empresa jornalística agüenta os custos de ter que se defender em talvez dezenas ou centenas — se a coisa não parar — de demandas ajuizadas em distantes pontos do território nacional. Os jornais terão que manter um exército de advogados porque, não contestando as ações, a revelia dará ganho de causa à referida Igreja que, depois, ostentará essa condição de “vencedora”.

 

Cabe, portanto, aos juízes, espalhados no país, ficarem atentos a essa manobra esperta que visa dificultar a verificação dos fatos pela imprensa. A legislação processual tem, na “conexão de causas’, um instrumento adequado para evitar o abuso. O juiz do lugar onde foi proposta a primeira ação deve dar-se por competente para julgar todas as demais ações. Se estas estiverem em graus variados de instrução o juiz poderá renovar os depoimentos.

 

Reconheça-se que tal atitude de um juiz implica em ato de bravura, porque essa reunião de processos, vindos de toda parte do país, lhe trará uma imensa sobrecarga de trabalho pessoal. Mas esse é um risco de quem ingressa na magistratura. E nada impede que o Tribunal do Estado onde se localiza o “premiado” juiz designe auxiliar para aliviar a carga do heróico magistrado.

 

Esse problema da proposital má utilização da Justiça também ocorre na área penal. Em uma determina Comarca de determinado Estado — evitemos “fulanizar” os problemas, mesmo porque não perguntei nomes — uma autoridade policial, mal intencionada — “ovelhas negras” podem aparecer em qualquer lugar — investigando denúncias de crime contra a economia popular, relacionadas com um loteamento, teria chamado o dono do loteamento e exigido “x” reais para “arquivar” a investigação. Não pago, abriria tantos inquéritos policiais quanto fosse o número de pessoas que teriam assinado os compromissos de compra e venda. Como o dono do loteamento disse não possuir o dinheiro exigido, tornou-se réu em, salvo engano, oitenta e tantos processos. Como se defender, eficazmente, em tantas acusações? Um dos advogados tentou reunir os processos em uma única Vara, mas alguns poucos juízes procurados para isso negaram o pedido alegando que as instruções estavam em fases diferentes. Não sei como terminou o caso — transformado em dezenas de casos — porque o advogado que me contou seu problema acabou renunciando ao mandato, após julgamento do caso que lhe estava afeto.

 

Voltando às ações movidas pelos fiéis da Assembléia de Deus, esta, se de boa fé, poderá ver-se, em tese, inocentada — em um único processo reunido —, de todas as acusações contra ela formuladas pelos jornais. Seria até uma excelente oportunidade para comprovar, de forma concentrada, que é impulsionada apenas pela fé e desejo de ajudar espiritualmente o próximo, sem especial intenção de enriquecer à custa do anseio de salvação dos mais pobres e culturalmente indefesos.

 

Palmas, portanto, à ABI – Associação Brasileiro da Imprensa, que abraçou uma causa justa.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Utilização da Justiça com fins escusos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/utilizacao/ Acesso em: 18 abr. 2024