Pitacos de um Advogado Rabugento

Por que ainda os chamamos de “excelentíssimos”?!

Carrei

Bruno de Oliveira Carreirão[*]

Carrei

Fonte da Imagem: G1/Globo

Embora o Brasil inteiro tenha se revoltado com o vídeo do desembargador Eduardo Siqueira desacatando e tentando dar um “carteiraço” em um agente da Guarda Municipal de Santos/SP, um total de zero pessoas se surpreendeu, porque infelizmente não são tão incomuns esses rompantes de “síndrome do pequeno poder” por parte de magistrados.

Sim, pequeno poder. Apesar de habitualmente os colocarmos em um pedestal, no fim das contas, a autoridade de um magistrado se encerra nos limites dos processos sobre o quais ele decide. Nós é que os superdimensionamos.

Vale destacar que, nesse caso em especial, a autoridade ali era o agente da Guarda Municipal, não o desembargador. Todavia, o desembargador, no maior espírito dreddiano, acreditou que poderia exercer a sua autotutela e declarar o decreto municipal inconstitucional, desobrigando-se a si mesmo de cumpri-lo.

Não são poucos os exemplos de empáfia por parte de membros da magistratura, inclusive da mais alta corte. Só em 2019, o Min. Marco Aurélio deu um chilique por ter sido tratado como “senhor” por dois advogados em sustentação oral[1] e recusou um convite para uma solenidade por ser o remetente um mero integrante do cerimonial[2]. Não significa que todos os magistrados ajam dessa forma, mas a recorrência de comportamentos arrogantes indica um forte elemento cultural.

No ano passado, escrevi sobre a minha repulsa à cultura da pompa e circunstância dos juristas[3]. Embora seja uma cultura na qual todos nós, profissionais do direito, estamos inseridos, ela se agrava com relação aos magistrados. Basta pensar que, embora não exista hierarquia entre juiz e advogado[4], nós culturalmente os tratamos por “vossa excelência”, enquanto que, em troca, somos tratados, no máximo, por “doutor” (embora nem sempre sejamos[5]).

“Ah, mas é questão de respeito!”

Mas desde quando é necessário um pronome de tratamento pomposo para demonstrar respeito por alguém? E por que seriam os magistrados mais merecedores de respeito do que qualquer servidor público ou do que qualquer outro profissional no exercício de suas funções? Como já disse certa vez o Min. Eros Grau: “Meu ofício não é mais importante que o do jardineiro ou de quem cuida da saúde das pessoas”[6].

Trata-se de uma tradição pouco republicana, que remonta aos tempos em que havia uma separação formal entre a plebe e a nobreza e os plebeus precisavam demonstrar a sua subserviência aos nobres. Em uma república, em que o magistrado nada mais é do que um funcionário do Estado remunerado pelo pagador de impostos para lhe prestar um serviço público, esse tipo de reverência já não faz mais sentido.

E faz ainda menos sentido quando nos deparamos com juízes como o desembargador Eduardo Siqueira, que por sua conduta aparentemente habitual[7], é muito mais merecedor do tratamento que geralmente é dispensado pelas torcidas organizadas aos juízes do futebol.

Em 2019, o Governo Federal editou um louvável decreto proibindo o uso de qualquer pronome de tratamento além de “senhor” nas comunicações oficiais dirigidas a agentes públicos no âmbito do Poder Executivo Federal. O Poder Judiciário, por outro lado, permanece em sua Torre de Marfim e nós, advogados, corremos o risco de termos nossas petições indeferidas ou sermos intimados para emendá-las caso ousemos omitir o “excelentíssimo” do endereçamento.

Já passou da hora da Justiça no Brasil se tornar mais republicana.



[*] Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e acredita que cada vez que alguém usa a palavra “ínclito” um anjo perde asas.



[1] “Marco Aurélio em defesa da liturgia: ministro do STF é ‘Vossa Excelência’:  https://epoca.globo.com/carolina-brigido/marco-aurelio-em-defesa-da-liturgia-ministro-do-stf-vossa-excelencia-1-24067202

[2] “Marco Aurélio critica funcionário de cerimonial por se dirigir a ele”:  https://epoca.globo.com/guilherme-amado/marco-aurelio-critica-funcionario-de-cerimonial-por-se-dirigir-ele-24049449

[3] “Nós, os juristas, vistos pelas pessoas normais”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337608-nos-os-juristas-vistos-pelas-pessoas-normais

[4] Vide art. 6º da Lei nº 8.906/94: “Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”.

[5] Advogado não é doutor. Conforme-se:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337633-fim-da-lenda-urbana-advogado-nao-e-doutor

[6] “Ministro Eros Grau, do Supremo, diz que não antecipou voto”:  https://www.conjur.com.br/2007-ago-27/juiz_nao_direito_antecipar_voto_eros_grau

[7] “Desembargador que destratou guarda acumula abusos de autoridade”:  https://www.conjur.com.br/2020-jul-19/desembargador-destratou-guarda-acumula-abusos-autoridade

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Por que ainda os chamamos de “excelentíssimos”?!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/por-que-ainda-os-chamamos-de-excelentissimos/ Acesso em: 16 abr. 2024