Novo CPC por Gisele Leite

Considerações gerais sobre ação rescisória e o Novo CPC

Uma vez esgotadas as possibilidades de interposição de recursos, opera-se a coisa julgada, em razão da qual a relação jurídica acertada na decisão judicial torna-se imutável e indiscutível.

Sendo uma decisão terminativa, ou seja, sem resolução do mérito, ocorre a formação apenas da coisa julgada formal que impede a discussão do direito controvertido no processo extinto, porém, não impede a repropositura da ação (sanado o defeito que lhe causou a extinção).

Sendo a decisão definitiva, ou seja, aquela que resolve o mérito e que compõe o litígio, uma vez superada a fase de recursos, a coisa julgada material irradia seus efeitos de ser imutável e indiscutível a relação de direito material, seja naquele ou noutro processo.

Há de se lembrar de que a coisa julgada material representa pressuposto processual negativo, isto é, não pode existir se houver a propositura da ação.

Ainda que a decisão terminativa contenha um grave defeito, uma vez esgotados todos os recursos, ou ainda, porque foram todos usados, ou porque a parte deixou escoar o prazo sem interpô0los, a relação processual extinta jamais poderá ser ressuscitada.

O mesmo não acontece com a decisão definitiva. Com a imutabilidade e indiscutibilidade decorrentes da coisa julgada material fossem absolutos poderia advir graves prejuízos para o interessado após o trânsito em julgado da decisão judicial onde constasse um vício, que se verificado no processo, teria o poder de alterar o resultado do julgamento do pedido.

Diante de possível dano irreparável, restou ao legislador pátrio o seguinte dilema: assegurar a imutabilidade do que foi acertado na sentença definitiva transitada em julgado, privando o interessado de meios para reparar o dano sofrido, ou permitir a reapreciação do caso concreto e gerar a insegurança das relações jurídicas judicialmente acertadas.

Através da ação rescisória, o legislador forneceu uma solução para a reparação do mal sofrido. Pois que a decisão de mérito que encerra vício pode ser anulada. Mas não é qualquer vício que pode conduzir a rescisão do julgado.

Os vícios ou defeitos que tornam a decisão anulada são elencados no rol típico e só pode ser feita dentro de dois anos após o trânsito em julgada da decisão rescindenda (trata-se de um biênio decadencial).

Elpídio Donizetti entende que o rol é numerus clausus, portanto, taxativo. Afinal, com tais restrições denominadas pela doutrina de pressupostos da ação rescisória, o legislador procurou, a um só tempo, preservar a estabilidade das relações jurídicas e evitar prejuízos que não puderam ser evitados com a atuação do interessado no curso da relação processual.

Há certos balizamentos sobre a imutabilidade das decisões judiciais, pois se for a decisão terminativa se transitada em julgado, é imutável; por outro lado, a decisão definitiva (sobre a qual recaíram os efeitos da coisa julgada material) pode ser rescindida nos dois anos seguintes ao trânsito em julgado, desde que demonstrados os vícios[1] elencados pela lei processual.

Mas ultrapassado o biênio decadencial do trânsito em julgado, ocorre a coisa soberanamente julgada mesmo que contenha os vícios elencados pela lei processual, pois a relação jurídica processual se torna absolutamente imutável, salvo se, no caso específico, determinada garantia constitucional, em juízo de proporcionalidade, se afigurar mais relevante do que segurança jurídica.

Elpídio Donizetti filia-se à corrente doutrinária que defende a relativização restrita da coisa julgada, apenas quando, após o juízo de proporcionalidade e razoabilidade, constatar num caso específico, a garantia de segurança jurídica deve ser sobreposta por garantias outras, como ocorre, por exemplo, na ação de investigação de paternidade que atribuiu a condição de filho biológico a quem, após o advento de exame de DNA, se descubra que efetivamente não o é.

Mas é curial distinguir, no direito brasileiro, diferentes meios de impugnação de decisão judicial, a saber: os recursos e as ações autônomas de impugnação.

Os recursos não dão início de uma nova relação jurídica processual, muito pelo contrário, estes representam o início de procedimento no segundo grau de jurisdição, no mesmo processo.

Os recursos são previstos taxativamente em lei processual, e o CPC de 2015 suprimiu apenas o agravo retido e os embargos infringentes. A correição parcial não tem previsão em lei federal, e tecnicamente não é recurso.

Já as ações autônomas de impugnação dão origem a uma nova relação processual, são cabíveis quando já houver ocorrido a coisa julgada material, ficando os recursos para trás.

A querela nullitatis (insanabilis) é uma ação autônoma de impugnação por meio da qual é apresentada uma determinada invalidade no processo, que por ser tão grave, permite a sua alegação por ação autônoma de impugnação.

Alguns doutrinadores não a chamam de querela nullitatis, podendo ser encontradas as seguintes variações terminológicas: ação declaratória de inexistência de relação jurídica; ação declaratória de nulidade.

Um exemplo: a ausência de citação[2] (que é vício gravíssimo e pode ser alegado por qualquer pessoa poderia alegar em qualquer grau de jurisdição).

O réu não foi citado, e mesmo assim a ação foi desfavorável. Esgotam-se todos os recursos cabíveis. Neste momento ocorre o trânsito em julgado.

Caberá ação rescisória? Porque há violação de literal dispositivo de lei. Poderá ser proposta em até dois anos após a coisa julgada.

O CPC/1973 entende ser nulidade a falta de citação do réu, porém, é tecnicamente é a causa de invalidade somente após a decretação do vício, ou seja, só ocorre a nulidade depois da decretação do vício.

A partir da coisa julgada todos os vícios são considerados sanáveis. No entanto, alguns deles são tão graves que a lei prevê o art. 485 do CPC/73 (art. 966 do CPC/2015) que aquele vício será hipótese de rescindibilidade.

Existe variação terminológica na utilização do termo querela nullitatis. A primeira corrente (a clássica) defendida por Nelson Nery Jr., a citação é pressuposto de existência, ou seja, se não existe citação, não existe processo. A sentença é inexistente [3].

Diante de tal situação, caberá a ação rescisória?

Não e a razão reside no fato de que não é possível rescindir o que não existe. Será necessário declarar que o processo não existe. É por tal motivo que surge a designação desta hipótese como sendo o caso de Ação Declaratória de inexistência de relação jurídica.

A segunda corrente doutrinária é muito difundida pela jurisprudência, apesar de não ter o apuro técnico da corrente doutrinária anterior. Os adeptos desta corrente, a ausência ou o vício de citação é pressuposto processual de validade, por fora do art. 214 do CPC/73 (art. 239 do CPC/2015).

Ocorre que na prática, é muito comum, até mesmo por força da redação do CPC/73 que a invalidade seja chamada de nulidade. Diante da falta de pressuposto de validade (a citação do réu), surge o argumento tecnicamente inadequado, de que a hipótese seria de nulidade e que esta deveria ser declarada, uma vez que a ausência ou vício na citação cria um óbice intransponível para que o processo possa ser considerado válido. Afirmam, portanto, que o caso seria de ação declaratória de nulidade.

A impugnação com base no art. 475, I, §1º e o art. 741, parágrafo único do CPC/73 que se refere ao caso da falta de exigibilidade do título, com base, nas decisões do STF que serão examinadas oportunamente. É forçoso admitir que nestes dois casos também exista a possibilidade de desconstituição de coisa julgada.

Leciona José Carlos Barbosa Moreira que a ação rescisória é a ação por meio da qual se pede a desconstituição de sentença transitada em julgado com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada.

É importante diferenciar a natureza jurídica da ação rescisória (que não há divergência) da natureza jurídica da decisão da ação rescisória (que é tema onde reside intensa controvérsia).

É sabido que a ação rescisória tem como natureza jurídica de ação autônoma de impugnação.

Já quanto à natureza da decisão proferida na ação rescisória, sendo comum, a afirmação de que ela é constitutiva negativa ou desconstitutiva na medida em que sua finalidade é desfazer a coisa julgada material já existente.

A natureza desconstitutiva ou constitutiva negativa diz respeito à primeira parte do julgamento do mérito da ação rescisória, ou seja, judicium rescindens (ou juízo rescindente).

Realçando que nesta primeira fase do mérito da ação rescisória, o Tribunal irá somente decidir se rescinde ou não a coisa julgada existente.

Depois dessa primeira fase, tendo uma decisão favorável com o acolhimento do pedido de rescisão, passa-se para a fase seguinte, que é referente à prolação de um novo julgamento de mérito da demanda original.

Nesta segunda fase, a natureza jurídica da decisão na ação rescisória, dependerá do pedido formulado pela parte autora. É o que se chama judicium rescisorium, assim poderá ter uma natureza declaratória, constitutiva ou condenatória.

Existe ainda a necessidade de se verificar a natureza jurídica da decisão, quanto ao juízo de admissibilidade da ação rescisória. Para se verificar se haverá ou não o juízo ou exame do mérito da causa e, se possuirá sempre a natureza declaratória (se for positiva ou negativa – quando for rejeitado).

A distinção entre judicium rescindens e judicium rescisorium já era objeto de discussão no CPC de 1939 e, culminou com a necessidade do CPC posterior (o Código Buzaid) vir a estabelecer expressamente a cumulação de juízos.

A primeira fase do julgamento de mérito da rescisória é quanto se verifica a ocorrência ou não de motivo alegado para haver a rescisão do julgado e ainda a relação de causalidade entre eles e o processo principal.

Além disso, tais motivos de rescisão devem abranger toda a sentença. Porque caso atinja somente a um dos fundamentos da sentença, será incabível a ação rescisória, uma vez combatida a sentença, permanecerá eficaz em razão daquele outro fundamento não impugnado.

Quanto essa questão é interessante a inovação trazida pelo CPC/2015 que admite que a rescisória procure anular apenas um capítulo da sentença.

Já a segunda fase da rescisória ou o judicium rescisorium que é posterior ao juízo rescindente. Trata-se de novo julgamento da matéria discutida no processo rescindido e que deve ser realizado pelo mesmo órgão que o rescindiu.

Ocorre uma verdadeira cumulação de pedidos sucessiva na medida em que a admissibilidade e o acolhimento do primeiro deles (da rescisão do julgado) é normalmente pressuposto do julgamento do segundo (quando o pedido é julgado).

Deverá haver a compatibilidade lógica para haver a dita cumulação. No âmbito da teoria das nulidades cumpre alertar que a decisão judicial rescindível não é nula, mas apenas anulável.

O que é nulo, independentemente de desconstituição judicial, nenhum efeito produz. Assim, a decisão judicial rescindível é apenas anulável, portanto produz todos os efeitos, enquanto não transitar em julgado o acórdão que decreta a sua desconstituição.

A doutrina já entendia o termo “sentença” como sendo usado em sentido alto, abarcando toda e qualquer decisão que trate de mérito, inclusive o acórdão dos tribunais, decisão monocrática do relator, decisão interlocutória do juiz, que também podem conter nulidades e, por isso, mesmo, são rescindíveis nas mesmas hipóteses legais.

Nem toda sentença de mérito se sujeita à ação rescisória. Pois há no ordenamento jurídico brasileiro sentenças que apesar de apreciarem o mérito, não produzem a coisa julgada material. É o que ocorre nas ações coletivas (ação popular, ação civil pública, ação para tutela e interesses difusos e coletivos stricto sensu) cujo pedido é julgado improcedente por falta de provas.

Nesses casos, não se formará coisa julgada material, podendo os legitimados extraordinários propor nova demanda idêntica, desde que fundada em prova nova.

Mas se existir algum dos vícios ensejadores da rescisória, e inexistindo prova nova, poderá o legitimado valer-se da ação rescisória.

Por outro lado, pode ocorrer de a sentença, embora não seja de mérito, impedir a discussão de matéria de fundo. É o que ocorre, por exemplo, com a sentença terminativa que reconhece a ilegitimidade da parte, a ocorrência de coisa julgada, perempção ou litispendência.

Ressalte-se que em certos procedimentos especiais e regulados por leis especiais é expressamente vedada a propositura de ação rescisória é o que ocorre nas decisões proferidas nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95, artigo 59), nas ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade (artigo 26 da Lei 9.868/99) e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 12, Lei 9.822/99).

Referências

DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 16ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2012.

MELO, Nehemias D.(coord.) O Novo CPC Comentado. Anotado Comparado. São Paulo: Editora Rumo Legal, 2015.



[1] A respeito de vícios é importante a lição de Tesheiner (in Elementos para uma Teoria Geral do Processo, que enumera, a saber: há vícios preclusivos, correspondentes aos requisitos cuja falta não acarreta nulidade, ou que se sujeitam à preclusão; vícios rescisórios, correspondentes aos requisitos cuja falta abre margem à desconstituição da sentença por ação rescisória; e, os vícios transrescisórios correspondentes aos requisitos cuja falta autoriza a declaração de ineficácia, nulidade ou inexistência da sentença e independe de ação rescisória.

[2] Ademais porque, à luz do ensinamento de LIEBMAN (in Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro), “a falta de citação inicial é o maior de todos os vícios do processo e é o único caso que sobrevive nos nossos dias em que todo e qualquer processo é adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito. A nulidade pode ser alegada em defesa contra quem pretende tirar da sentença um efeito qualquer; assim como pode ser pleiteada em processo principal, meramente declaratório”.

[3] São sentenças inexistentes: sentença prolatada por um não juiz, sentença não redigida (art. 164 do CPC), sentença não assinada (art. 164 do CPC), sentença não publicada (art. 463 cc. 564 do CPC) e sentença proferida em processo nos quais inatendidos os elementos de existência.

Confira-se, a esse respeito, o entendimento da melhor doutrina a respeito da matéria, a se somar aos ensinamentos de PONTES DE MIRANDA:

o ato é inexistente quando lhe falta aquele mínimo de elementos constitutivos, sem o quê o ato não configura a sua identidade ou a sua fisionomia particular (…) os defeitos que impedem a ‘sentença’ de entrar no mundo jurídico são aqueles conhecidos: a sentença proferida por um não-juiz, não assinada, não publicada, sem dispositivo, a sentença proferida contra quem não foi parte, a sentença não redigida por escrito.

Diz-se juridicamente inexistente o ato processual quando lhe falta algum dos requisitos mínimos caracterizadores do tipo que ele aparenta reproduzir. Sem a presença cumulativa de todos esses mínimos, ele jamais poderá chegar ao resultado proposto. Materialmente, existe. Uma sentença não assinada ou proferida por não-juiz é algo que em si mesmo tem realidade material e histórica, porque o ato aconteceu: alguém a escrever e a compôs com relatório, motivação e conclusão (CPC, art. 458), como se fosse uma sentença. Não é o mesmo que seria se nenhuma sentença houvesse sido sequer redigida – aí, sim, um verdadeiro vazio ou um nada histórico. Mas, porque o sujeito que a produziu não está investido do poder jurisdicional, ou porque um escrito sem assinatura não se vincula à vontade de quem poderia produzi-lo, essa falsa sentença é, perante o direito e em face do resultado proposto, precisamente como algo que não existisse. Daí ser um nada jurídico, ou um não-ser (Calmon de Passos).

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Considerações gerais sobre ação rescisória e o Novo CPC. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/novo-cpc-por-gisele-leite/consideracoes-gerais-sobre-acao-rescisoria-e-o-novo-cpc/ Acesso em: 18 abr. 2024