Diário de Estagiário

Pode parecer, mas não é.

 

Algumas coisas são mais complicadas do que parecem; outras parecem ser algo mas não são. O português é cheio disso: bicho-papão vestido de bailarina escondido atrás da próxima porta pra te pegar quando você passar.

 

Esta veio de um ação condenatória em que o autor pedia uma indenização por danos materiais. Aparentemente ele comprou alguns pisos cerâmicos de uma marca – vamos chamá-la de “Xuxa” – e, quando fez a reforma que pretendia, percebeu que eles apresentavam tonalidades visivelmente diferentes uns dos outros. E não eram só os pisos de uma caixa em relação aos de outra, mas em apenas uma havia cerca de três espectros distintos.

 

A empresa sustentou que na embalagem havia um aviso sobre a variação, muito embora ninguém realmente preste atenção nisso pois todos esperamos ser notificados pelos vendedores. É assim que algumas empresas agem e todos sabemos disso – ainda bem que existe o artigo 334, I, do CPC. Lá vai:

 

“Que sobre as informações técnicas do produto o informante alega que todos os vendedores à detêm…”.

 

Sabe quando você está ouvindo um CD que começa a “pular” e repetir eternamente o mesmo segundo? Foi isso que me pareceu quando li a frase. Aquele “que” aparecendo duas vezes acabou com a sonoridade do trecho. E sim, mesmo lendo há uma sonoridade: dentro da nossa cabeça; a não ser com leitura dinâmica, na qual não reproduzimos a palavra na nossa mente, apenas absorvemos o elemento visual. Mas isso é outro papo.

 

De modo algum a repetição deve ser 100% rechaçada. Na realidade é bem possível utilizá-la com maior intensidade e criar um efeito que vai além de mera coincidência. Eu posso dizer: “minha mulher reclamou, e reclamou, e reclamou, e reclamou”. É minha intenção essa repetição fora do normal pra acentuar o quanto ela reclamou: foi muito!

 

No caso do texto em questão não foi isso, mas sim um pequeno deslize do autor – diminuto, sim, mas que acaba com a qualidade.

 

Não o julguem mal, isso é bem comum. Acontece porque estamos pensando simplesmente em colocar as palavras certas na ordem correta e passar o sentido que queremos – fechamos o foco para nos concentrarmos na concatenação primária e no passar de ideia pro papel. Aí, sim, relendo, expandimos para analisar o produto por inteiro. Comigo acontece o tempo todo! É por isso que sempre – absolutamente sempre – devemos revisar o que escrevemos.

 

A outra coisa é aquele acento grave ali. Como diria uma conhecida minha: “geeeeente, que horror!”. Voltando ao colégio: o acento grave é a representação de ocorrência de crase, que por sua vez é o “ajunteition” da preposição com o artigo feminino.

 

A preposição é o que surge de um verbo transitivo indireto. Exemplo: ir. Quem vai, vai A algum lugar. Por isso que você não vai “no” supermercado. Outro: chegar. Quem chega, chega A algum lugar. Por isso que você não chega “em” casa, chega a casa. Feio? Muito, porém correto.

 

O artigo fica junto de um substantivo pra defini-lo ou indeterminá-lo. O carro, a casa, os homens, as mulheres… O, a, os, as – todos definidos. Um menino, uma bola…um, uma – indefinidos.

 

Quando você tem um verbo transitivo indireto que exige a preposição “a” ligado a um substantivo que tem o artigo “a”… a + a = à. Por isso só pode existir antes de substantivos femininos – salvo raras exceções –, porque o artigo definido do substantivo masculino é “o”… a + o = ao.

 

Simples né? Por isso que você vai à praia e anda à noite. Só não explica por que todos os vendedores à detêm! Não explica porque está medonhamente errado. Deter é um verbo transitivo direto. Quem detém, detém algo. Além do quê, faltou um “s” ali. Se são os vendedores, eles as detêm.

 

O macete do cursinho é simples: troque o substantivo por masculino. Se formar “ao”, no feminino tem crase. Eu dou comida aos cães, então necessariamente dou também às galinhas. Atenção: fui àquelas praias e ÀQUELES bares. Ok?

 

Último, mas não menos importante, e por último porque veio no fim do texto. Detêm. Yes! Ele acertou! Muito bem! Um cookie pra ele.

 

Verbos ter e vir, na terceira pessoa do plural, apresentam acento circunflexo. Exemplo: ele tem, eles têm; ela vem, elas vêm.

 

Os derivados desses verbos, por sua vez, apresentam acento agudo no singular e cicunflexo no plural. Ele detém, eles detêm; ela intervém, elas intervêm.

 

Não é difícil, mas um número absurdo de pessoas não sabe disso. E não é meramente questão de acentuação, mas principalmente de concordância. Escrever “eles tem” é a mesma coisa que dizer “nós foi”.

 

Como o sujeito sabia disso e não da crase, não sei. Só pra ver como ficaria:

 

“Sobre as informações técnicas do produto, o informante alega que todos os vendedores as detêm…”.

 

Tranquilo, né? Só não deve ter sido pro sujeito que comprou os pisos da “Xuxa”. Não sei por que algumas empresas fazem isso com os clientes. Vovó sempre falava pra não cuspir no prato que come – o que seria de uma empresa sem clientes? Se você os trata mal está apostando na própria falência.

 

Mas algumas coisas desafiam não só a natureza, mas os ditados das avós, porque as empresas de telefonia fixa e móvel em geral são as campeãs de reclamações dos consumidores, juntamente com várias de TV a cabo. No entanto, ainda continuam a existir. Mas acho que a teoria da concorrência não funciona muito bem quando não há muitas alternativas pro consumidor.

 

Como citar e referenciar este artigo:
BELLI, Marcel. Pode parecer, mas não é.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/diario-de-estagiario/pode-parecer-mas-nao-e/ Acesso em: 18 abr. 2024