Sociedade

Médicos falsários e seus doentes imaginários

Médicos falsários e seus doentes imaginários

 

 

Mario Guerreiro

 

 

Em seu artigo “O golpe do atestado”, publicado em O Globo em 22/7/2008 e posteriormente em www.avozdocidadao.com.br, Luís Garcia levantou um sério problema de ética profissional e, ao mesmo tempo, algo que constitui uma transgressão da lei: atestados médicos mentirosos para doentes imaginários. Numa passagem diz muito acertadamente o referido autor:

 

“(…) o atestado médico é uma das hipocrisias enraizadas na sociedade brasileira. Nos tribunais e fora deles. Tem raízes na mentira que mamãe escreve na caderneta do filhinho para justificar sua ausência na prova de matemática. E pode ser uma muleta desonesta que ele usará toda a vida.Todo médico passa uma parte desmedida de seu tempo recebendo pedidos de atestados. Para afirmar que o cidadão está doente ou para declarar que ele tem condições físicas de corredor de maratona. Para lhe garantir um emprego ou (…)  para cancelar audiências em processos”.

 

Prossegue ainda dizendo que um clínico dos mais respeitados do Rio de Janeiro – que se recusaria a fornecer um falso atestado – lhe contou que já presenciou clientes pedindo, na maior cara-de-pau, que fossem sugeridos exames laboratoriais solicitados em nome de um parente, porque só o mesmo parente na família tinha plano de saúde.

 

Ora, quem é capaz de fazer tal coisa, não terá nenhum escrúpulo em pedir uma falsa declaração para evitar comparecimento diante de um juiz. Mas, observa Luís Garcia,  se isto acontecesse num país sério, qualquer atestado seria tratado apenas como uma alegação exigindo comprovação por junta médica sem relações com os doentes possivelmente imaginários.

 

De minha parte, não sei dizer se isso é uma medida exeqüível, principalmente em virtude da grande quantidade de atestados e o alto custo gerado pelos mesmos. Mas, em última análise, a situação da Justiça não é diferente da de outras instituições e empresas, bem como da de pessoas físicas.

 

Todos têm que dar um crédito de confiança aos pareceres médicos, assim como terão de conceder créditos de confiança aos pareceres de quaisquer peritos em última análise, de modo que a coisa não seja remetida a um regressum ad infinitum: o perito que julga a lisura e competência de um perito, que julga a lisura e competência de um perito, etc.

 

Numa de suas sátiras, Juvenal colocou admiravelmente bem esse problema de ser obrigado a parar num ponto e pressupor coisas tais como boa-fé e competência. Diz ele: Quid custodiet ipsos custodies? (Quem nos guardará dos próprios guardas?) – observação bastante apropriada para o Brasil atual em que freqüentemente o cidadão não tem a quem recorrer, pois a policia se transformou num caso de polícia!

 

Pessoalmente, conheço casos de indivíduos que, para não ter que ir trabalhar, já mataram imaginariamente a própria mãe mais de três vezes e é não é inverossímil que apresentassem até atestados de óbito, caso estes lhes fossem solicitados.

 

Esses mesmos atestados médicos fajutos costumam ser dados em época de eleições quando um indivíduo não está com vontade de perder um bom feriado para ir à praia ou passear, mas, por azar, é convocado a cumprir seu dever cívico de trabalhar como mesário de numa secção eleitoral. A este respeito, conheço uma história caracterizadora de uma decisão digna da astúcia de Sancho Pança enquanto rei da Ilha de Barataria

 

Numa pequena cidade do interior, o juiz da mesma já estava cansado de fazer convocações para alguns cidadãos trabalharem como mesários nas eleições, porém eles apresentavam sempre atestados médicos.

 

Não podendo contestar a autoridade médica, coisa fora da sua competência enquanto magistrado, toda vez que ele recebia um atestado médico dizendo que o cidadão estava impossibilitado de cumprir seu dever, ele dispensava o convocado e convocava imediatamente o médico que tinha assinado o atestado. É escusado dizer que o número de atestados médicos, se não foi reduzido a zero, ficou muito próximo.

 

Pedir e fornecer tais atestados inverídicos são atos imorais, tanto da parte que os solicita como da que concorda em fornecê-los, além disso o médico que faz tal coisa não só fere o código de ética médica como também incorre o artigo 299 do Código Penal: falsidade ideológica.

 

Não é de se supor que o médico que confere tais atestados assim o faça para obter lucro pela cobrança de tal serviço, desse modo se ele faz tal coisa é para atender o pedido de um amigo desprovido de caráter – atendimento este que torna igual ao seu amigo – ou por mera frivolidade típica de quem não leva a sério as conseqüências de seus atos. No primeiro caso, ele é um adepto do famigerado “jeitinho brasileiro”, este verdadeiro câncer moral que assola nosso país. No segundo, ele é um leviano indigno do exercício de sua profissão, juntamente com a grande responsabilidade inerente à mesma.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. Médicos falsários e seus doentes imaginários. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/mddicos-falsarios-e-seus-doentes-imaginarios/ Acesso em: 25 abr. 2024