Sociedade

Meditando com o Papa

Meditando com o Papa

 

 

Nivaldo Cordeiro

 

 

11 de julho de 2009

 

Ontem dois acontecimentos me despertaram para uma meditação mais profunda sobre a nova encíclica de Bento XVI, comentada por mim em artigo anterior. O primeiro foi uma renovada leitura de um delicioso texto de Ortega y Gasset, de tal modo que este artigo aqui poderia muito bem se chamar “Meditando com Ortega”, mas, como já usei o título alhures, e a encíclica novíssima está na mídia, melhor que fiquemos com a alusão ao Papa. O Papa trata do mesmíssimo assunto de Ortega, porém em perspectiva alterada, de certo modo confirmando a previsão orteguiana. Antes de falar do texto do filósofo espanhol, todavia, deixem-me contar-lhes do segundo acontecimento, do filme que revi, eu que hoje em dia estou sempre a reler livros e a rever filmes velhos. Trata-se do filme AGONIA E ÊXTASE, estrelado por Charlton Heston e Rex Harrison e dirigido por Carol Reed.

 

O filme é muito belo, teve cinco indicações para o Oscar de 1965 e vale a pena ser revisto. As imagens das principais obras de Michelangelo por si já valem a compra do DVD. Mas não é a beleza artística da obra que aqui me interessa, e sim, um dos diálogos, que não pude me certificar se são de fato históricos. O que importa, todavia, é que o autor do texto, Irving Stone, foi bastante feliz em incluí-los no filme, espelhando fielmente não apenas o espírito da obra de Michelangelo, mas o dos tempos renascentistas. O filme tem por foco a relação de Michelangelo com Julio II, o papa de então, que o contratou para vários trabalhos, entre eles a pintura do teto da Capela Sistina, obra sem igual e que dá testemunho até hoje da genialidade de ambos os personagens, o pintor e o Papa Júlio II.

 

No aludido diálogo, que reproduzo de memória aqui, trata do espanto do Papa com a cena da criação do homem, em que Deus é grafado como um homem velho e Adão, nu, como um jovem. Um cardeal objeta a Julio II que a pintura é blasfema e ofensiva os valores cristãos, pedindo a sua destruição, ao que Michelangelo contrapõe que pintou Adão antes da Queda, daí porque ele está nu. Sua nudez não seria ofensiva a Deus. Ninguém naquela cena se dá conta da suprema blasfêmia que é grafar a figura de Deus, seja lá como for, jamais vista por homem algum. O Eterno é o Sem Nome, Aquele que é. Colocar essa pintura a decorar o teto do ambiente em que o próprio Sumo Pontífice reza missas é um emblema dos novos tempos. O novo homem moderno não quer mais saber da Queda de Adão, busca mesmo a perfeição que lhe é anterior e que outro contemporâneo famoso, Leonardo da Vinci, legará para a posteridade na forma do Homem Vitruviano, que se tornará a medida de todas as coisas, a nova perfeição.

 

Obviamente que o argumento de Michelangelo, visto do ângulo cristão medieval, era sofístico e blasfemo. Aquela pintura não poderia adornar uma capela, menos ainda a privativa do Sumo Pontífice. O fato de ter sido aceita pelo Papa Julio II registra que a Igreja havia mudado, juntamente com o homem europeu. Essa pintura, mais do que qualquer outra, é o sinal da mudança dos tempos renascentistas, marcando o fim de uma Era e o começo de outra, a moderna, aquela da qual Ortega irá tratar. Retomemos, pois, a Ortega, um grande professor. Refiro-me aqui ao texto EM TORNO A GALILEO: Esquema de las Crisis. Este texto foi um curso dado por Ortega em 1933 (data fatídica, reparem), pelo qual Ortega homenageou o físico italiano com suas palestras, meditando como aquela cena deplorável de trezentos anos atrás (a condenação pelo Santo Ofício) foi possível de existir. O autor tem por objeto entender a psicologia dos europeus do século XV, tempos de profundas transformações psicológicas e existenciais, semelhantes aos tempos do Advento. Mesmo o agnóstico Ortega percebeu os paralelos espirituais entre os dois momentos. Nas suas palavras:

 

“En 1600, al través de la crisis renacentista, se edifica un nuevo mundo sobre los escombros de la Edad Media. Por eso fue menester removemos hasta el origen del cristianismo, es decir, hasta otra época de crisis. Convenía, pues, aclarar un poco qué es eso de las crisis históricas en general, asunto de gran dramatismo para nosotros, ya que, según no pocos síntomas, andamos en una de ellas. Salvando las diferencias de cada una, he descrito ciertos fenómenos fundamentales y comunes a las tres crisis que Occidente ha sufrido: la que termina con el mundo antiguo, la del Renacimiento y la que ahora se inicia”.

 

Vejamos que Ortega não perde o senso de perigo de seu momento, ele que não tinha como saber que viria a Guerra Civil espanhola e a II Guerra Mundial (e Hitler, e os fornos crematórios, e a bomba atômica e tudo o mais). Ele mostrava que o corte renascentista foi formidável e que o episódio em torno de Galileu, tirante o que teve de patético, foi emblemático dessa mudança de mentalidade. Galileu bem poderia ter servido de modelo para o Novo Adão pintado no teto da Capela Sistina.

 

Continua Ortega seu raciocínio:

 

“Este hombre, pues, del siglo XV está perdido en sí mismo, es decir, desarraigado de un sistema de convicciones y aún no instalado en otro; por tanto, sin tierra firme en que apoyarse y ser, sin quicio, sin autenticidad genérica. Exactamente como hoy está el hombre. Aún cree en el mundo medieval, es decir, en el trasmundo sobrenatural de Dios, pero cree sin fe viva. Su fe es ya habitual, inerte: lo cual, bien entendido, no quiere decir que fuese insincera. Ya analizaremos esto un poco, porque entenderlo es decisivo para entender al hombre moderno y aun al contemporáneo. Pero junto a esa fe consuetudinaria en lo sobrenatural, siente una confianza nueva en este mundo y en sí mismo. Empiezan a interesarle las cosas, las tareas sociales, los hombres; en suma, la naturaleza por sí misma. Las almas miran a la vez a uno y otro mundo, disociadas entre ambos; es decir, bizquean. Vitalmente, casi todos los hombres representativos de este siglo son bizcos. Y experimentamos ante ellos la peculiar desorientación en que solemos hallarnos ante un bizco, porque no sabemos bien adónde mira”.

 

“Crê sem fé viva…” Era a fé de Galileu, dos clérigos e dos seculares do seu tempo. Todo mundo se fazia batizar não por “viver” a fé, mas por costume. Um ou outro ainda mantinha o espírito agostiniano medieval, de viver a fé total e a dedicação da vida à imitação de Cristo. Era a exceção que confirmava a regra de que aquele mundo cristão havia se encerrado. O Novo Adão, o homem moderno, deu as costas às verdades transcendentes e partiu decidido em busca da razão pura, o espelho espetacular da criatura que procurará, doravante, suplantar o criador. Afinal, o Deus pintado na Capela Sistina de Michelangelo estava velho e Adão, jovem. Era dele o futuro. Ainda Ortega, com sua aguda percepção do Novo Homem:

 

“Me esfuerzo denodada, aunque acaso vanamente, por precisar la compleja actitud religiosa de este hombre cuatrocentista, la estructura de cuya vida quisiéramos ahora revivir. Consecuencia de esa actitud es que el hombre, en este positivismo religioso, se desinterese de los dogmas. Y, en efecto, en el siglo XV nadie se ocupa de teología dogmática. Se ha secado su fuente. Ya no volverá a manar hasta un siglo después con la Reforma, y por reacción contra ella en el Concilio de Trento. Ahora bien, fíjense que esa teología es la ocupación con el ser divino, con su esencia, atributos, misterios constituyentes. Eso es lo que ha preocupado desde San Agustín hasta el siglo XIV. Mas ahora la religión va a consistir en una cosa muy curiosa. Una expresión afortunadísima va a descubrirnos el secreto de esta nueva forma de santidad que ya es una forma intramundana de la santidad, de una religión que no va a ser teología, dogma, en suma, fe viva, sino conducta en el mundo como tal. La expresión es ésta: Imitación de Cristo. ¡Ah!, la vida que consiste en imitar a Cristo: 1º., se desinteresa de si Dios es de éste o del otro modo, en su propio ser, en su más allá; 2º., de la Trinidad segrega una sola persona, Cristo; 3º., de Cristo toma no lo que tiene de persona trinitaria, sino lo que tiene de hombre ejemplar. He aquí por qué curioso escamoteo hemos llegado a una forma de religión en que, si se me entiende bien, hemos secularizado el cristianismo, subrayando de Dios su única vertiente humana, intramundana. No es, conste, que el hombre se vaya fuera del cristianismo: es lo contrario, que el hombre trae el cristianismo al punto de vista y de acción humanos. Por eso he hablado de secularización. Y, en efecto, ipso facto, surge en toda Europa un enérgico desdén religioso -nótenlo bien, ¡religioso!- contra la antigua figura de la santidad, de la vida perfecta, a saber: contra los frailes y, en general, los eclesiásticos. La nueva religión que ha inspirado a Tomás de Kempis comenzó por ser laica y de laicos, quiero decir, de seglares, seculares -los llamados «Hermanos de la vida común», de Deventer, en Holanda, que derramaron su influjo sobre Alemania y Francia y fueron germen de la Reforma. Esta es la devotio moderna. En efectividad, Dios es para ellos ante todo el hombre Cristo -que ni siquiera es sacerdote. Y lo más notable del caso es que el título primitivo de la Imitación de Cristo era: De contemptu mundi1. (Grifos meus).

 

Entendo a mensagem de Ortega. Essa mudança do Homem europeu em geral só poderia gerar a Reforma, a quebra da unidade espiritual da Europa, que foi precedida por outro fato não menos formidável, a criação dos Estados nacionais. Reforma e Estados, o binômios pelo qual se criará o ambiente que gerou o Novo Adão. Cervantes, em tempo real, registrou no Don Qujote a conseqüência dramática na psicologia coletiva. Abandonar o divino foi abandonar o real e o Novo Adão necessariamente terá que viver na Segunda Realidade gestada por ele mesmo, Nada que era sagrado poderia ser mantido, nem mesmo a Capela Sistina. Claro, Cervantes é o grande mestre de Ortega, o profeta do homem revolucionário. E o próprio Ortega relata a tragédia dessa Segunda Realidade falsa:

 

“Pero nótese: va también el judío con su Biblia y el moro con su Alcorán. Es que todo ser tiene derecho y obligación a ser el que es -el alto y el humilde, el beato y el precito. El judío y el moro son para este hombre realidades con pleno derecho, en su rango y puesto determinado -dentro del jerárquico pluralismo del universo. Lo que no se le ocurriría aun hombre de comienzos de este siglo es suprimir al judío o al moro. Esto se le ocurrió a la generación de los Reyes Católicos -la generación de 1450. ¡Qué casualidad! ¿Quiénes son de esa generación? Fernando nace en 1452, que es justamente cuando nace Leonardo, y pocos años más tarde Erasmo y Maquiavelo. Basta. Es la primera generación moderna. Y, en efecto, la expulsión de judíos y moriscos es una idea típicamente moderna. El moderno cree que puede suprimir realidades y construir el mundo a su gusto en nombre de una idea. En este caso es la idea del Estado, que los Reyes Católicos inician. (Cometen, pues, un lamentable quid pro quo los que hoy expulsan a los judíos en nombre de un retorno a la Edad Media. Los hombres actuales no podemos casi ni comprender la substancial tolerancia del hombre medieval.)”

 

Lamentavelmente, Ortega não se dá conta neste texto de dois fenômenos importantíssimos daqueles tempos. Em primeiro lugar, a emergência das filosofias mortas da Antiguidade, que mesmo à sua época foram questionadas e superadas: o epicurismo e o estoicismo, ambas ateístas e materialistas. Essas filosofias acompanharão o Novo Adão moderno e em poucos anos soterrarão as fundações filosóficas cristãs, basicamente herdadas de Platão e de Aristóteles. Serão seu novo credo, ajudando a desenvolver o novo Estado. A idéia de Direito Natural sofrerá uma brutal transformação, passando a ser fundado nessas antigas filosofias atéias ressuscitadas. Esse novo Direito, que fundará a idéia de contrato social, dará as fundações para o crescente gigantismo estatal de nosso tempo e o anseio pela construção de uma ordem política mundial, que estava prontinha na obra de Zenon e que terá em Kant o seu discípulo mais conspícuo. A nova encíclica de Bento XVI, ao clamar por uma nova ordem mundial fundada na ONU, faz na política o que Júlio II fez ao permitir que a blasfêmia de Michelangelo adornasse a sua capela. É a marca de um nosso tempo.

 

Ortega fez uma provocação importantíssima em sua alocução filosófica, que deixou no ar porque a resposta estava nas ruas, estava mesmo na sua obra mais famosa, anteriormente publicada: A REBELIÃO DAS MASSAS. Recordemos:

 

“La vida antigua fue cosmocéntrica; la medieval, teocéntrica; la moderna, antropocéntrica. ¿y la que viene? -me preguntan ustedes ahora, sin mover los labios, pero de modo tal que yo lo oigo desde aquí. Con todas las reservas y modestias que asunto tan grave recomienda, no les oculto que creo saber muy bien cómo va a ser la vida que viene…, pero no se lo digo ahora. Quedemos citados para el año que viene. Si verdaderamente les interesa saberlo y no se trata de una curiosidad frívola, no les parecerá excesiva la espera”.

 

Ora, basta ler a nova encíclica papal para se ter a resposta. A nossa Era é estatocêntrica, busca de todas as formas construir o Estado Total, sobre o qual tenho escrito reiteradas vezes. A forma do Estado Mundial será apenas o seu coroamento, o seu apogeu. Nunca imaginei que a Igreja Católica, pelo seu representante máximo, viesse a advogar por ele. Surpreendi-me. Confesso a minha surpresa. Eu não posso perder de vista que a narrativa bíblica, do primeiro ao último livro, ensina que o inimigo do homem e de Deus é o Estado, por primeiro na forma do Faraó. Deus fez prodígios para dele libertar o seu povo. Jesus padeceu sob Pôncio Pilatos, o representante do Império Romano. E o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse de São João, nos fala da Besta e da Grande Prostituta, metáforas contundentes para nos falar dos poderes desse mundo.

 

Os fatos à espera,  a que Ortega se referia, vieram a seu tempo. Deu no que deu. O que nos esperará agora? Nem ouso imaginar. Deus nos acuda a todos.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, Nivaldo. Meditando com o Papa. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/meditando-com-o-papa/ Acesso em: 16 abr. 2024