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Entrevista: Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

Entrevista: Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

 

 

PERFIL

 

jjgc.jpgO Prof. Dr. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO é Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, na qual foi Vice-Reitor e Vice-Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito. Renomado jurista e, na atualidade, Professor Catedrático de Direito Constitucional nas Licenciaturas em Direito e Administração Pública da Universidade de Coimbra, o Professor Doutor J. J. GOMES CANOTILHO, que também exerceu funções de Conselheiro de Estado, é autor de um vasto número de obras, destacando-se dentre elas Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador e Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

 

 

 

 

 

Crédito da foto: Claudia Zardo

 

   Seguindo a tendência de um jornalismo democrático, plural e interativo, e em parceria com a Editora Consulex, estudiosos do Direito Constitucional foram convidados para formular os questionamentos apresentados ao Prof. Dr. José Joaquim Gomes Canotilho.  A seguir, pois, na entrevista concedida por ocasião do VII Congresso de Direito Constitucional, realizado em Natal-RN, o eminente professor aduz sua visão globalizada dos acontecimentos no mundo, manejando as expressões justiça e direitos fundamentais com o requinte daqueles que pacientemente esperam vê-los de fato, um dia, sendo exercidos e respeitados em sua plenitude.

 

Os entrevistadores convidados para formular as perguntas  foram:

 

1-          André Luís Alves de Mello – Promotor de Justiça; professor e mestre em Direito Público;

2-          Claudia Zardo – Jornalista;

3-          Prof. Dr. Daniel Sarmento – Procurador Regional da República, doutor mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós-doutorado na Universidade de Yale (EUA);

4-           Prof. Dr. George Felipe de Lima Dantas – pós-graduado com especialização em Análise e Resolução de Conflitos pela “The George Mason University”, Fairfax, Virginia, EUA; atuou na ilha Hispaniola como membro de missão internacional da OEA, na República Dominicana e no México e Nigéria em missões com a ONU.

 

                                                 ENTREVISTA

 

Nos últimos tempos, Vossa Excelência tem mostrado certa inclinação por teorias jurídicas de corte pós-moderno, que preconizam um papel mais modesto para as constituições. Isso se aplicaria a países de terceiro mundo, como o Brasil, em que as conquistas constitucionais ainda não foram atingidas?

 

 

Prof. Dr. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO – Primeiro, não tenho uma perspectiva pós-moderna. Pelo contrário, sou uma pessoa da razão iluminista, ou seja, da capacidade de conformar o próprio destino e, nesse sentido, radicalmente diferente das propostas pós-modernas. O que a pergunta quererá dizer é talvez isso: de eu ter sugerido que a constituição dirigente não tem capacidade suficiente, só por si, para fazer transformações sociais, independentemente do suporte de outros poderes como o Legislativo, o Executivo e o Judicial, do próprio governo e das próprias normas. E, sendo assim, transporta uma mensagem importante, mas não é só por se acreditar que a constituição dirige, que o nosso mundo já tem transformações sociais. Nesse sentido é que eu disse que, verdadeiramente, é preciso não confiar apenas na constituição, que tem muitas normas imperativas, mas que poderão conduzir a um desencanto pelo fato de não serem cumpridas.

 

Ainda, possivelmente, a pergunta quererá dizer que em algum plano, mais europeu que brasileiro, entendo que as constituições dos países que integram a União Europeia tendem a ser constituições regionais, por dependerem umas das outras. E como elas todas acabam por se articular com a chamada Constituição Europeia, verdadeiramente, as constituições nacionais continuam a ser um padrão de identidade, mas deixam de regular matérias importantes, que tradicionalmente eram entregues ao Poder Legislativo, à soberania do Estado. Isso resulta de um constitucionalismo em que várias normas superiores concorrem num espaço comum. Por outro lado, realça-se a ideia de que as constituições, embora continuem a ser cartas de identidade, têm que se articular com outros esquemas normativos, com as constituições de outros Estados e a Constituição Europeia, e, nessa medida, deixam de ter um papel soberano na sua totalidade.

 

Quanto à segunda parte da pergunta, referente aos países da periferia, acho que no Brasil há uma certa cultura soberanista, que entende deva ser a constituição do Estado a alavanca indispensável para promover-se o desenvolvimento, a integração econômica e social.

 

Estou de acordo que o Estado é um instrumento razoável para garantir não apenas as liberdades fundamentais, a ordem e a segurança, mas também o desenvolvimento social no contexto da liberdade econômica. Nesse aspecto, basta olhar o mundo de hoje para ver que as populações acreditam na intervenção do Estado em questões de emprego, ordem social, saúde… Acredito também nessa ideia, de que o Estado ainda tem força suficiente para promover os instrumentos fundamentais de proteção aos seus cidadãos, designadamente através de políticas públicas.

 

 

Em se tratando da vontade da constituição, o que dizer à luz do Direito Comparado?

 

J. J. CANOTILHO – A questão primeira é que a cultura de que a norma constitucional deve ser aplicada como as outras leis não é europeia e, sim, norte-americana. Portanto, a Europa também descobriu tarde essa força normativa da constituição. Com a introdução dos tribunais constitucionais, tornou-se possível dizer que a constituição é uma lei fundamental e não apenas um conjunto de programas.

 

Outra questão é que os cidadãos, muitas vezes, têm problemas com a venda de uma casa, um contrato de compra e venda ou um contrato de casamento, e como a constituição, preferentemente, não regula essas questões mais próximas da sua vivência, não é a primeira lei a ser invocada. Países mais desenvolvidos, digamos, que têm outros esquemas civilizacionais, multiculturais, podem até ter problemas que acabam direta ou indiretamente na constituição. Mas, nisso, o Brasil não é muito diferente dos países europeus e dos Estados Unidos. Vamos dar alguns exemplos. Primeiro: a questão da vida, “que é inviolável”, mas em que condições? As constituições nada dizem a respeito da proteção à vida do embrião e dos anencéfalos. Também silenciam quanto aos homossexuais, embora muitos juristas sustentem que não deve haver discriminação por orientação sexual…

 

O curioso é que a constituição se transforma em lei de decisão de problemas fractais e de confrontos civilizacionais. Mas por que é que na Alemanha, nos Estados Unidos, no Brasil ou em Portugal acabam-se discutindo problemas dessa natureza no plano constitucional? Isso está relacionado com o quê? É que, de certo modo, a constituição representa a cristalização de novas éticas e valores morais, sendo invocada, muitas vezes, como sustento moral da lei estadual.

 

 

Como são posicionados os tratados internacionais, principalmente os de Direitos Humanos, em Portugal?

 

J. J. CANOTILHO – A Constituição portuguesa não tem nenhuma norma sobre a localização hierárquica ou normativa dos tratados internacionais. Mas, conforme me foi ensinado, os tratados internacionais são infraconstitucionais, porém supralegais, ou seja, localizam-se entre a lei e a constituição. O problema é que o chamado Direito Constitucional Internacional, ora em desenvolvimento, pretende estabelecer normas vinculativas aos poderes constituintes no plano dos Direitos Humanos. Por exemplo, Brasil e Portugal não poderiam alegar que desconhecem os Direitos Humanos e fixar, em suas constituições, que o recurso da força é um instrumento de solução de litígios. Ou seja, um conjunto de princípios emergeria como regras imperativas dos legisladores internos e, nessa medida, o Direito Internacional colocar-se-ia acima da Constituição, pelo menos naquilo que consideramos jus cogens. De qualquer modo, também isto depende da específica regulação de cada constituição quanto a este problema.

 

Penso que alguns tratados e convenções internacionais tendem a impor-se como princípios objetivos. Ninguém compreenderia, por exemplo, o Tratado de Roma como inconstitucional, e sim como um direito imperativo, superior às leis internas e às próprias constituições. Não cumpriríamos o Tratado de Roma se cada país signatário dissesse o que é crime contra a humanidade. De nada serviria.

 

O Supremo Tribunal Federal vem assumindo um papel cada vez mais acentuado de protagonismo social, arbitrando conflitos políticos e morais em que a sociedade está profundamente dividida e ditando até mesmo a agenda dos debates da mídia. Vossa Excelência enxerga nessa tendência algum risco para a jovem democracia brasileira?

 

J. J. CANOTILHO – A posição que tenho sugerido é que há mesmo um certo ativismo judicial. Por quê? Porque o Judiciário não realiza transformações sociais. O Tribunal não pode, ele próprio, ser o criador e o implementador de políticas públicas sociais, de saúde, ensino, entre outras, e sim os órgãos socialmente conformadores da constituição.

 

A bem da verdade, tem havido decisões judiciais importantes que podem apontar para políticas públicas. O nepotismo nos órgãos de Poder, incluindo eles próprios, os tribunais. É uma boa proposta para resolver-se a questão da discriminação. Outro exemplo é a greve dos funcionários públicos. A greve sempre foi um instrumento de luta e não de facilidade para os grevistas, que passavam um, dois, três meses em greve, mas continuavam a receber seus salários. Isso também é um desenvolvimento da Constituição, mas numa interpretação judicial que pressupõe a suspensão do trabalho e, por conseguinte, da remuneração. Não é uma proposta pública importante? Já o ativismo na saúde é mais questionável, até porque não resolve o problema básico, que é de política pública da saúde.

 

Tenho que o Judiciário deve esforçar-se por compreender que a norma está sempre ligada ao problema concreto. Assim, apesar dos formalismos jurídicos, há que se captar as dimensões fundamentais do problema, até porque algumas dessas dimensões radicam na consciência profunda da comunidade. A minha posição é, portanto, que os juízes não são órgãos de transformação social, mas, em alguns casos, eles apontam um caminho importante de concretização da constituição.

 

 

No entender de Vossa Excelência, a estruturação de um órgão para controlar o STF não ficaria à mercê de influências políticas?

 

J. J. CANOTILHO – Os Conselhos Superiores da Magistratura são órgãos de gestão e autoadministração, com membros togados e membros laicos, mas não devem recortar-se como órgãos ou correias de transmissão de influências políticas. O que se coloca é que quando dizemos: “Sr. Ministro da Justiça, há processos em atraso, há prescrições dos processos, há prisões com aglomerados trágicos de detidos…”. Ele diz: “Eu não tenho responsabilidade, porque sou Ministro. Cabe ao Conselho Supremo da Magistratura e ao Conselho Supremo do Ministério Público responder por isso e são verdadeiramente eles que controlam e estabelecem a disciplina dos magistrados. E se dizemos: “Sr. Presidente do Supremo Tribunal, Sr. Procurador da República, há crise, há aquilo…”. Eles respondem: “Somos independentes e autônomos!”. Então, afinal, ninguém responde politicamente. Complicado porque, na prática, tem que haver alguém que responda por esses desmandos e o povo não compreende a existência de Poderes sem responsabilidade e controle.

 

Insisto. Se é verdade que todo poder precisa ser controlado e se temos o STF e o CNJ na mesma linha hierárquica, quem poderia controlar o poder de ambos?

 

J. J. CANOTILHO – Em Portugal, o Presidente do Conselho Supremo da Magistratura é o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Não vejo grande inconveniente nisso. O problema é que, em alguns casos, isso tende a gerar mecanismos de proteção de uns em relação aos outros. Por exemplo, em processos disciplinares, promoções, há esquemas disfuncionais, tendendo os tribunais a encontrar competências e soluções corporativas e endojurisdicionais.

 

Também não é pelo fato de o presidente de um órgão ser presidente de outro que surgem esses problemas. Em termos constitucionais, a experiência que tenho de um Conselho Superior acabou por ser razoável. Fui eleito pela Assembleia da República e havia membros togados e membros eleitos pela Assembleia da República. Não foi uma experiência negativa. Em alguns momentos, verificou-se que havia discrepância entre os membros do órgão – que não se reconduzia sequer a uma dicotomia entre os membros togados e os membros eleitos.

 

Ora se discute, no Brasil, se devemos permanecer com o modelo norte-americano de Corte Constitucional ou adotar o modelo europeu, com mandatos para ministros do STF, maior transparência nos critérios de escolha dos candidatos e até mesmo ampliar o número de ministros. Quais as vantagens e desvantagens de cada modelo?

 

J. J. CANOTILHO – Estados Unidos e Brasil não são modelos opostos No Brasil, há um problema específico pelo fato de o Supremo Tribunal Federal, além de atuar como tribunal superior, ter funções de tribunal constitucional no plano de controle abstrato da constitucionalidade que o próprio Tribunal americano não tem.

 

O Tribunal americano tem um controle difuso, portanto, fiscalização caso a caso, ao passo que o Supremo Tribunal Federal do Brasil tem funções excepcionais, como declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e o descumprimento de preceito fundamental… Isso é que está a tornar mais complexo o esquema brasileiro.

 

Vossa Excelência está então a defender que o STF venha a se tornar uma Corte unicamente Constitucional?

 

J. J. CANOTILHO – Não, não tenho substância, competência e conhecimento para propor isso. Não diria que um Tribunal Constitucional resolveria os problemas dessa combinação.

 

No contexto da crise econômica mundial, em que se prenuncia o retorno do dirigismo estatal, Vossa Excelência vislumbra espaço para a ressurreição do constitucionalismo dirigente, cujo óbito chegou a decretar?

 

J. J. CANOTILHO – Não é correto associar a intervenção do Estado ao constitucionalismo dirigente. Uma coisa é a constituição que pretende conformar constitutivamente a vida; outra, o intervencionismo do Estado, mesmo em países em que a constituição não é dirigente. Vamos lá: o Presidente Roosevelt, apesar de ter uma constituição liberal, promoveu uma política estatal intervencionista. A Inglaterra nem sequer tem constituição. O Primeiro Ministro Brown está praticamente a socializar os bancos ingleses e todos os países da Europa, mais liberais ou menos liberais, foram obrigados a adotar medidas estaduais claramente intervencionistas.

 

Em recente sondagem feita em Portugal, sobre o que “os cidadãos querem”, ficou claro que é mais intervencionismo do Estado. Ou seja, perante a falência de muitas instituições e do desemprego em massa, os cidadãos parecem ainda acreditar num esquema em que o Estado realiza políticas públicas implementadoras de solidariedade social.

 

Sou um convicto defensor da escola pública e dos hospitais públicos, em Portugal. Uma escola de igualdade para todas as classes sociais, desde o ensino primário até a universidade. Eu acredito nisso, no princípio republicano de escola pública. Acredito nesses padrões culturais. Pode, é claro, haver esquemas privados de saúde e ensino, mas o Estado tem que promover um serviço nacional de saúde e também um serviço de escola pública desde a creche até a universidade.

 

No contencioso Brasil x Itália, resultante da concessão de asilo político a alguém que no seu país de origem é tido como “criminoso comum”, a solução seria aplicar “padrões internacionais” como o que define os chamados “crimes contra a humanidade”, da competência da Corte Internacional de Haia?

 

J. J. CANOTILHO – Não há padrões internacionais para definir o terrorismo. Há, efetivamente, crimes contra a humanidade previstos no Tratado de Roma. Agora, o que me parece ser prejudicial nesse contexto é o seguinte: primeiro, uma certa confusão conceitual e cultural de teorias de Direito Penal acerca dos padrões clássicos de culpa, responsabilidade, nexo de causalidade; em segundo lugar, a alteração de paradigmas juspenalistas como o da prevenção abstrata.

Nos cursos de doutoramento que tenho em Coimbra, um auditor brasileiro era de opinião que no Brasil existia muito terrorismo. Discordei radicalmente. O Brasil possui um alto índice de criminalidade em São Paulo, por exemplo, mas não tem o radicalismo do terrorismo. Os brasileiros da criminalidade não são terroristas, mas sim criminosos que agem contra o Estado de Direito Democrático Constitucional.

 

A criminalidade organizada, com padrões de sofisticação, pressupõe que o Estado responda de forma muito mais enérgica e com armas suficientes para combater, em termos práticos, o próprio terrorismo. A Espanha faz isso. Também a Itália, a Alemanha e a Inglaterra. O que não é preciso é Guantánamo, em que a luta contra o terrorismo justificou o “grau zero” do Direito Constitucional, Internacional e Penal.

 

Nesse aspecto, eu distinguiria a capacidade do Estado para combater as novas formas de criminalidade e os novos terroristas, que podem suscitar muitas questões ideológicas. É evidente, porém e todos estamos de acordo, que os conflitos ideológicos não autorizam ninguém a sobrevoar os céus de Nova Iorque, transformando aviões em bomba com efeitos retardados, nem colocar bombas em estações de trem, como em Madri e Londres. Agora, quanto à punibilidade de terroristas – parece-me que é isto que insinua a pergunta –, eles são criminosos, mas devem ser tratados como pessoas e não como objetos.

 

Outra coisa que muitas vezes acontece é pessoas pedirem asilo por se sentirem perseguidas por razões políticas em seus próprios países, como na Índia e em Moçambique. Devemos ter abertura para compreender as questões vinculadas ao terrorismo. O próprio Presidente do Supremo Tribunal de Israel, quando lhe perguntaram se ele, como presidente, admitiria como inconstitucionais algumas leis contra o terrorismo, respondeu: “Não sei o que quer dizer, mas há muitas pessoas que dizem que, em tempo de guerra, as musas ficam silenciosas…”. Tolice! Isso é uma asneira completa! Não há instrumento mais nobre e mais enérgico do que o direito de um Estado de Direito. A guerra pode ser difícil, mas a longo prazo o Estado irá encontrar formas enérgicas e que irão triunfar sobre o terrorismo e a criminalidade. Eu acredito nisso.

 

 

Qual é a visão de Vossa Excelência sobre a reserva do possível em face do mandado de injunção e dos direitos sociais?

 

J. J. CANOTILHO – Já tive o privilégio de arguir uma tese na Espanha sobre o mandado de injunção de um juiz brasileiro; portanto, não gostaria de ver outra vez essa discussão. Agora, quanto à reserva do possível, o colega Lênio e o Ingo Sarlet têm tratado o problema, sobretudo este último, em todos os seus estudos sobre direitos sociais.

 

A reserva do possível pretende mostrar que, verdadeiramente, os meios econômicos e financeiros são reduzidos. Como políticas públicas custam muito dinheiro, não podem ser hipertrofiadas, sob pena de não se ter recursos suficientes. Daí a ideia da reserva do possível para gastos com universidades, hospitais, estradas e segurança social. A doutrina e a jurisprudência, de certo modo, transportam grande desencanto ao baterem sempre no problema da reserva do possível, dizendo que não há dinheiro suficiente. Mas, na Itália, por exemplo, a discussão sobre quem paga, se é o Estado ou as regiões, e qual seria o núcleo essencial das prestações sociais na Constituição, levou a prescrições legais muito analíticas, mediante as seguintes indagações: (i) Quanto custa uma operação oncológica? (ii) E um tratamento psiquiátrico? (iii) Quais os passos exigidos? (iv) Quanto tempo demora? (v) Como se deve inscrevê-los no orçamento? (vi) Quem são os responsáveis? Isso tem permitido fugir à discricionalidade do legislador, que não pode dizer que não há reserva possível. Sendo obrigado a gerir os recursos de forma racional, no que diz respeito a prestações sociais essenciais. E, em segundo lugar, fugir à judicialização da política, porque os juízes não fazem políticas públicas de justiça social. Decidem casos concretos, que aparentemente são justos, mas não resolvem o problema básico, que é o de política pública.

 

Algumas das questões que estamos a agitar acabam por levar a esta ideia: como é que se controla, hoje, o orçamento de um Estado de Direito Democrático e Participativo? É aí que tem cabimento o neoconstitucionalismo deliberativo. Quando analisamos o orçamento, há dinheiro para alguns Ministérios, mas não para outros; há dinheiro para determinadas atividades, tipo fomentar a Fórmula 1, ou campeonatos de futebol, enquanto as universidades e os hospitais, muitas vezes, parecem que estão a cair.

 

 

 

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
MELLO, André Luís Alves de; ZARDO, Claudia; DANTAS, Daniel Sarmento e George Felipe de Lima. Entrevista: Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/entrevista-professor-doutor-jose-joaquim-gomes-canotilho/ Acesso em: 19 abr. 2024