Sociedade

Etnocídio e a obra 1984, de George Orwell: a conversão forçada à ideologia política do Estado-repressor

Gustavo José Correia Vieira[1]

Resumo

Este ensaio procura abordar como o Estado do Grande Irmão, na obra 1984 de George Orwell, configura-se como um Estado etnocida por excelência. Ademais, buscamos neste breve estudo tratar como uma ideologia política pode ser instrumento para a consecução do etnocídio. Verificar-se-á que além do etnocídio buscar impor uma língua, cultura ou religião, pode também ser objeto do etnocídio a imposição, pela violência, de uma ideologia política, fato este nítido na obra de Orwell.

Palavras-chave: Etnocídio. Ideologia Política. Conversão Forçada. 1984.

Abstract

This essay seeks to address how the Big Brother State, in George Orwell’s 1984 work, sets itself up as an ethnocidal state par excellence. In addition, we seek in this brief study to treat how a political ideology can be instrumental in the attainment of ethnocide. It will be verified that, in addition to ethnocide seeking to impose a language, culture or religion, the ethnocide can be also the imposition, by violence, of a political ideology, a fact that is clear in Orwell’s work.

Keywords: Ethnocide. Political Ideology. Forced Conversion. 1984.

Sumário

1. Introdução. 2. Considerações sobre o etnocídio. 2.1. Poder, repressão e extermínio cultural. 2.2. Aspectos conceituais e características do etnocídio. 3. Sobre a ideologia. 3.1. Histórico do termo. 3.2. Concepção marxista de ideologia. 3.3. Ideologia e terror: a concepção arendtiana. 4. Considerações sobre a obra 1984 de George Orwell e sua relação com o etnocídio. 4.1. Contextualização e biografia do autor. 4.2. Aspectos gerais da obra. 4.3. A conversão forçada a uma ideologia política como instrumento para a prática do etnocídio: uma análise da obra 1984. 5. Considerações finais. 6. Referências.

1. Introdução

O livro 1984 de George Orwell é considerado um clássico da literatura moderna. Sua influência perdura até os dias atuais, em que se vivencia a diminuição da privacidade, a existência dos regimes ditatoriais, a alta tecnologia, dentre outros aspectos. Ademais, a sua crítica a toda e qualquer forma de totalitarismo é nítida.

Contudo, este trabalho tem por objetivo estudar uma prática presente no livro e que ainda não tem sido objeto de estudo: a prática do etnocídio. Tal é o objetivo deste trabalho. Demonstrar, através do estudo do livro, como este guarda as características do etnocídio em seu conteúdo.

Para tanto, organizamos o presente trabalho em três eixos fundamentais: por primeiro, examinamos o conceito de etnocídio e suas características, a fim de compreender como se materializa esta prática; por segundo, estudaremos o conceito de ideologia, sobretudo nas concepções marxista e arendtiana, para entender como é o papel da ideologia do Socing (ou IngSoc) na sociedade da Oceania; terceiro, analisamos a novela 1984 e buscamos relacioná-la com o etnocídio. Passemos ao estudo proposto.

2. Considerações sobre o etnocídio

Neste tópico, buscaremos abordar dois itens que servirão como esclarecimento à temática do etnocídio e sua relação com a obra 1984. Por primeiro, a relação entre poder, repressão e extermínio cultural, seguindo com os aspectos conceituais e as características do etnocídio, aspectos esses essenciais para a compreensão deste fenômeno.

2.1. Poder, repressão e extermínio cultural

Para iniciar nossa exposição, abordaremos neste tópico a relação entre poder, repressão e extermínio cultural, fazendo referência ao trabalho já publicado por este autor sobre o etnocídio[2]. Inicialmente, cabe destacar que o contexto social o qual a humanidade vivencia retrata que sua dinâmica, suas transformações, são compostas de práticas oriundas de relações de poder. A sociedade na forma como está sendo estruturada foi resultante de uma série de práticas de relações de poder e de dominação, estabelecidas principalmente pela colonização, e com a imposição de visões de mundo que destruíram modos de vida distintos do imaginário e do objetivo dos conquistadores, sejam eles provenientes do passado ou do tempo atual[3]. Nesse sentido, a conquista da América mostra-se como exemplo evidente, pois o etnocídio se materializou pelo extermínio de culturas distintas do imaginário dos conquistadores, com a imposição da fé católica aos índios.

Ainda, para esclarecer qual a relação entre poder e repressão e o inserirmos no enfoque do etnocídio e da obra 1984, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre a ideia de relação de poder em Michel Foucault[4] e de acordo com o trabalho já publicado por este autor[5]. Nesse sentido, o poder é exercido, e só existe em ato, em uma relação de força. Este exercício deve ser compreendido em dois aspectos: primeiro, a partir dos mecanismos de repressão; o mecanismo do poder é a repressão (seja da natureza, dos instintos, dos indivíduos). Segundo, se o poder é o emprego e a manifestação de uma relação de força, deve-se analisá-lo em termos de combate, de enfrentamento, de guerra; o poder como guerra continuada por outros meios[6]. E este segundo aspecto – do poder como guerra continuada – significaria três coisas:

a) Que as relações de poder têm como ponto de ancoragem uma relação de força estabelecida em um dado momento, historicamente preciso, na guerra e pela guerra; o poder político reinsere perpetuamente essa relação de força, através de uma guerra silenciosa e inserida nas desigualdades econômicas, na linguagem, e até mesmo nos corpos de uns e outros;

b) Que no interior da paz civil, as lutas políticas, as relações de força, tudo isto deve ser interpretado como continuação da guerra;

c) A “decisão final” só pode vir da guerra, ou seja, uma prova de força em que as armas serão os juízes; o fim do político seria a derradeira batalha, ou seja, a batalha suspenderia o exercício do poder como guerra continuada.

Nesse sentido, Foucault leciona que a partir do momento em que se pretende se desvincular da ideia dos esquemas econômicos de análise do poder, nos encontramos diante de duas hipóteses: primeiro, o mecanismo de poder como repressão; segundo, o fundamento da relação de poder como enfrentamento das forças. E tais hipóteses seriam conciliáveis, considerando que a repressão seria uma consequência política da guerra[7].

Nesse sentido, Foucault ressalta ainda que poderíamos contrapor dois grandes sistemas de análise do poder[8]: o primeiro, denominado “contrato-opressão” (século XVIII), em que se entende o poder como um direito que se cede, e a opressão seria um abuso do poder dentro do contrato estabelecido, sob o ponto de vista jurídico; o segundo, denominado “guerra-repressão”, ou “dominação-repressão”, em que o poder é visto como efeito de uma relação de dominação; a repressão seria o efeito desta relação de dominação e o emprego, no interior desta “pseudopaz”, solapada pela guerra contínua, de uma relação de força perpétua, havendo uma oposição entre luta e submissão. Quanto ao sistema dominação-repressão, trata-se de uma característica nítida na temática do etnocídio e na obra 1984 de Orwell, como se verá adiante neste estudo.

No curso ministrado entre os anos de 1975 e 1976, Foucault, partindo destes fundamentos sobre os sistemas de análise do poder, busca analisar o problema da guerra. Em que medida a guerra, a luta, o enfrentamento de forças pode ser identificado como o fundamento da sociedade civil, a um só tempo o princípio e o motor do poder político[9]. Isto significa, a partir da concepção apresentada, que a questão da luta e submissão está no âmago da sociedade, conflito este que para Foucault seria um estado de guerra contínua, guerra esta não entendida somente pelas formas convencionais, em que existem exércitos que se enfrentam. Para Foucault, trata-se de uma guerra por representação, um embate de forças no campo político, em que persiste o conflito entre luta e submissão (podem-se referir como exemplificação as questões entre grupos políticos, étnicos, etc)[10].

Com efeito, a partir desses fundamentos de Foucault, pode-se elaborar uma relação com a temática das relações de poder, a partir da guerra, da luta, da dominação, do enfrentamento de forças e do poder como repressão (estritamente vinculados à obra 1984, de George Orwell), com a temática do etnocídio (genocídio cultural, ou extermínio cultural), objeto de estudo.

2.2. Aspectos conceituais e características do etnocídio

Partindo desses pressupostos anteriores (das relações de poder e da repressão e dominação), pode-se apresentar uma prática que ocorreu em muitos episódios da História, e que ainda repercute na atual sociedade globalizada[11]: o estabelecimento de uma relação de dominação (ou de poder) através do controle e da destruição do corpo, visando o extermínio de traços culturais responsáveis pela perpetuação de um grupo humano, que pode levar à extinção de uma etnia[12]. Nesse campo se insere a questão relativa ao etnocídio, também denominado genocídio cultural, tema principal a ser analisado e relacionado com a obra 1984 de Orwell.

Primeiramente, para entender o significado do etnocídio é necessária uma breve digressão histórica, com uma breve exposição inicial do conceito de genocídio. Após a Segunda Guerra Mundial, com o advento dos estudos realizados pelo jurista Rafael Lemkin, foi recepcionado pelo ordenamento jurídico internacional, bem como nas leis internas de muitos Países, o conceito de crime de genocídio[13] [14]. Cumpre salientar que este jurista de origem polonesa, muito antes do advento do Holocausto já defendia a necessidade de se reprimir a destruição de coletividades raciais, religiosas ou sociais com um delito de caráter universal, aplicável a todos os povos[15]. Na V Conferência Internacional para a Unificação do Direito Penal, realizada em 1933 em Madrid, Lemkin apresentou um projeto de convenção para reprimir determinadas ações, que seriam o delito de barbárie, ou também identificado como atentado contra a vida, integridade física, liberdade e dignidade de pessoas pertencentes a uma determinada coletividade; e com a denominação de delito de vandalismo, a destruição de obras culturais e artísticas em situações semelhantes[16].

Contudo, o projeto efetivo de normatização do delito de genocídio no âmbito internacional começa a ser debatido após a constituição da ONU (Organização das Nações Unidas). Em novembro de 1946, a questão do genocídio foi submetida à Assembleia Geral mediante um projeto de resolução apresentado por Cuba, Índia e Panamá[17]. Em seguida, no mesmo dia, foi confirmada a resolução 95 (I), adotando os princípios do direito de Nuremberg, e após com a resolução 96 (I), concluída em 11 de dezembro de 1946. Esta última resolução era o projeto para a convenção sobre o genocídio, ao espírito dos estudos de Rafael Lemkin. Nesta resolução adotou-se uma definição mais ampla do crime de genocídio, elaborada pelo Conselho Econômico e Social, em que participaram os juristas Rafael Lemkin, Donnedieu de Vabres e Vespasiano Pella. Falava-se em grupos humanos, tais como raciais, nacionais, idiomáticos ou religiosos, abarcando ainda a possibilidade de extermínio de grupos políticos e a concepção de genocídio cultural, que era previsto no artigo I. Este último conceito era caracterizado por atos que tivessem como objetivo destruir a língua, religião ou cultura dos grupos protegidos, proibir o uso da língua entre seus membros ou destruir locais característicos de uma cultura[18]. Em resumo, trata-se de uma ideia inicial de etnocídio, embora tal conceito ainda não existisse.

Contudo, ambos os termos – grupos políticos e o genocídio cultural – não foram recepcionados após a apreciação do projeto pela Comissão que integrava os Estados. Os grupos políticos foram retirados, principalmente devido à pressão da antiga União Soviética[19].

Quanto ao genocídio cultural, esta concepção também foi excluída, dentre outras justificativas, pelo fato de que seria um conceito muito indefinido. A proposta foi retirada por sugestão dos Estados Unidos, Reino Unido, França, além do Brasil. Desta forma, tanto os grupos políticos quanto o genocídio cultural restaram excluídos do projeto[20].

Posteriormente, em que pese tal violação de direitos humanos não ter sido recepcionada pela convenção sobre o genocídio de 1948, a questão relativa ao extermínio de identidades culturais de povos continuou a ser debatida, principalmente após o advento da concepção de etnocídio[21].

O criador desta definição foi o etnólogo francês Robert Jaulin, o qual expôs em sua obra “La Paix Blanche: introduction à l’ethnocide a destruição dos índios Bari, na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia[22]. Esta destruição formava-se a partir de múltiplos vetores: pelas ações da Igreja, dos exércitos venezuelanos e colombianos, além das companhias americanas de petróleo que passaram a se instalar no local onde vivia a tribo[23].    

Na década de 60, muitos antropólogos passaram a denunciar as políticas indigenistas dos Estados e as atividades próprias da antropologia, as quais estariam sendo complacentes com um discurso indigenista genocida e etnocida[24].

Este movimento crítico composto por antropólogos mexicanos e latino-americanos, líderes indígenas e missionários formaram o chamado Grupo Barbados. Esta denominação do grupo adveio das primeiras reuniões que ocorreram na Ilha de Barbados nos anos de 1971 e 1977, sendo que a terceira reunião ocorreu no Rio de Janeiro, em 1993. Estas reuniões geraram recomendações aos Estados e demais setores da sociedade e dos países da América Latina sobre o estado de marginalização e perigo de extinção de comunidades indígenas no Continente[25].

O documento que tratou expressamente sobre o etnocídio foi a Declaração de San José, celebrado na Costa Rica, sob os auspícios da UNESCO, em dezembro de 1981. O documento expõe que o etnocídio tratar-se-ia de um processo complexo, que possui raízes históricas, sociais, políticas e econômicas. Também ressalta que há alguns anos vinha sendo denunciada em foros internacionais a problemática da perda da identidade cultural das populações indígenas da América Latina[26]. No tocante à definição consagrada no documento

[…] El etnocidio significa que a un grupo étnico, colectiva o individualmente, se le niega su derecho de disfrutar, desarrollar y transmitir su própria cultura y su própria lengua. Esto implica una forma extrema de violación masiva de los derechos humanos, particularmente del derecho de los grupos étnicos al respecto de su identidad cultural, tal como lo establecen numerosas declaraciones, pactos y convênios de las Naciones Unidas y sus organismos especializados, así como diversos organismos regionales intergubiernamentales y numerosas organizaciones no gubiernamentales[27].

Ainda no texto da Declaração, há referência expressa que o etnocídio – ou genocídio cultural – seria um delito de direito internacional igual ao genocídio. Para esta conclusão se tomou como base o direito às diferenças e o princípio da autonomia dos grupos étnicos[28].

Contudo, é pertinente ressaltar que esta prática lesiva aos direitos humanos ainda não é recepcionada como crime de acordo com o Direito Penal Internacional, e não há referência normativa no Direito Brasileiro. Logo, tanto no ordenamento jurídico internacional como no brasileiro ainda não há a previsão de um delito de etnocídio. Trata-se de uma violação grave de bens jurídicos fundamentais que, todavia, não é considerada como crime[29]. Por isto, tratar-se-ia de uma prática exercida a partir da repressão e dominação (relação de poder), que está situada em um “contexto criminal”, porquanto impõe ao ser humano determinado modo de vida, destruindo sua cultura, língua ou religião[30], mediante o emprego da violência.

Nesta ótica, considerando o etnocídio como grave violação de direitos humanos (advindo principalmente do colonialismo e neocolonialismo), assim como o genocídio, a prática do etnocídio merece ser explorada no contexto jurídico-penal, inclusive internacional[31].

O etnocídio traduz o extermínio dos traços culturais de um povo, que pode ocasionar sua extinção enquanto grupo humano – praticado principalmente contra comunidades indígenas ou afrodescendentes nos processos de colonialismo. Cabe ressaltar que ele pode ser perpetrado ainda que os membros do grupo sobrevivam, porquanto este crime implicará na desaparição da especificidade cultural de um povo. Vinculado principalmente com a prática da colonização, como ocorreu na conquista da América e da África, ou ainda pelo neocolonialismo proveniente do processo de globalização político e econômico, o denominador comum entre estes acontecimentos é impor a sua visão de mundo. Domina-se física, psíquica e culturalmente as populações de potenciais áreas de expansão projetada pelo homem moderno, julgando-se uma sociedade “selvagem”, “sub-humana”, uma espécie de infracultura, muitas vezes demonizando outras culturas e civilizações[32]. Estas estão destinadas a serem “elevadas” mediante a dominação, a assimilação (incorporação forçada). Os outros são “maus”, mas podem ser melhorados, obrigando-os a se transformarem no corpo produtivo do projeto civilizador. O Outro é despojado de sua identidade cultural, sendo esta responsável por sua existência enquanto ser humano neste mundo[33]. Cabe ressaltar que um dos aspectos da barbárie europeia, por exemplo, foi chamar de bárbaro o outro, o diferente, em vez de celebrar essa diferença e de ver nela uma ocasião de enriquecimento do conhecimento e da relação entre humanos[34].

Além da justificativa do etnocídio como uma ação para o “bem” de um determinado povo, é de se considerar que esta prática poderia ser perpetrada para fins de domínio de uma coletividade, mediante a intenção de destruição dos traços culturais de uma etnia[35] (imposição de uma língua oficial e proibição do idioma tribal, por exemplo) para fins de domínio e exploração física, bem como domínio territorial sobre uma coletividade[36].

No ano de 1974, o antropólogo e etnólogo francês Pierre Clastres publicou o texto chamado Do etnocídio[37] [38]. Neste texto, sustenta que as populações indígenas na América do Sul são simultaneamente vítimas do genocídio e do etnocídio. E a partir deste pressuposto expõe distinções importantes entre estes atos.

Clastres sustenta que se o genocídio pressupõe a ideia de “raça” e a vontade de extermínio de uma minoria racial, o etnocídio apontaria não para a destruição física, mas para o extermínio de sua cultura. Nesse sentido, o etnocídio é a destruição de modos de vida e pensamento de povos distintos daqueles que praticam esta destruição. Se o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. É uma morte diferente, uma espécie de morte em vida, morrer em vida[39].    

O aspecto comum entre genocídio e etnocídio seria uma visão idêntica do Outro, como uma má-diferença. Mas enquanto o genocida puramente nega aquele que é distinto, exterminando-o porque é absolutamente mau, o etnocida admitiria a relatividade deste mal na diferença; os outros são maus, mas poderão ser melhorados, aperfeiçoados, desde que sejam obrigados a se transformar até se tornarem corpos idênticos ao modelo imposto[40]. A negação etnocida do outro conduz a uma identificação a si[41].

Além de expor estas considerações, Clastres refere que o horizonte em que se destacam o espírito e a prática do etnocídio pode ser entendido a partir de dois elementos: o primeiro seria a hierarquia das culturas, ou seja, as superiores e as inferiores; o segundo seria a afirmação da superioridade absoluta da cultura ocidental. Esta mantém com as outras culturas uma relação de negação[42]. Contudo, no etnocídio, seria uma espécie de negação positiva, visando suprimir o inferior e lançá-lo à condição de “superior”, com base no etnocentrismo (condição de avaliar as diferenças pela sua própria cultura). Levando em conta estes critérios, portanto, distingue-se e se estabelece o elo comum entre estas práticas violentas.

Nesse sentido, pode-se dizer que o etnocídio exprime o extermínio dos traços culturais que identificam um grupo humano, mediante a integração violenta ao projeto ideológico do agressor/repressor. Medidas como a supressão da língua, da religião e da cultura de um povo, e a imposição da língua, religião ou cultura do agressor/repressor mediante ações violentas são os aspectos básicos da prática do etnocídio; ressalte-se que a memória coletiva é o vínculo mais importante da identidade nacional, e a primeira a ser ameaçada durante um processo de etnocídio[43]. Este visa a integração total das vítimas ao projeto totalizante do agente, suprimindo toda a espécie de diferença comunitária.

Cabe ressaltar que no etnocídio ocorre um processo de desumanização, devido à relação entre cultura inferior e superior. E este processo de desumanização está ancorado em um aspecto importante: a desumanização da vítima é relacionada com seu corpo[44]. O corpo sempre exprime uma cultura. Através de seu corpo, a vítima sofre, com sua dor, a exteriorização de um projeto violento. É na corporalidade que os seres humanos manifestam seu contato com o mundo e com os outros seres humanos e, no caso do etnocídio, a desumanização por que passa a vítima atravessa obrigatoriamente seu corpo[45]. A violação de sua integridade físico-psíquica (de sua corporalidade) está no cerne do processo de desumanização, característico do etnocídio. Este afeta profundamente a mente e o espírito de um povo[46]. O genocídio é dar a morte a um povo inteiro com a intenção de fazê-lo desaparecer. Porém o mundo invisível em que desaparece fica fora de alcance, e o povo imolado pode crer que recomeçará uma nova vida em seus santuários inviolados. No entanto, o etnocídio é mais radical: é a pilhagem dos santuários mesmos que asseguram a sobrevivência e a ligação dos vivos com os mortos e, portanto, posteriormente, o equilíbrio do mundo[47]. Provocando a morte da diversidade cultural, implica na morte do humano[48].

Após abordar estas linhas gerais sobre o etnocídio, passaremos a tratar da questão relativa à ideologia, característica por excelência do Estado do Grande Irmão de Orwell.

3. Sobre a ideologia

Nestes próximos tópicos, nos limitamos a analisar a ideologia em seu aspecto histórico, a concepção marxista de ideologia e a visão arendtiana. Trata-se de uma breve abordagem que nos auxiliará na compreensão da ideologia política do Estado do Grande Irmão da obra de George Orwell, bem como de que forma esta ideologia serve como instrumento para a prática do etnocídio.

3.1. Histórico do termo

O termo ideologia aparece pela primeira vez na França, após a Revolução Francesa (1789), no início do século XIX, em 1801, no livro de Destutt de Tracy, denominado Elementos de Ideologia. Nesta obra, o autor pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Neste livro, o autor ainda elabora uma teoria sobre as faculdades sensíveis, responsáveis pela formação de nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória)[49].

Cabe salientar que de Tracy, juntamente com um grupo de pensadores como Cabanis, de Gérando e Volney, conhecidos como ideólogos franceses, eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos. Eram críticos a toda explicação sobre uma origem invisível e espiritual das ideias humanas e inimigos do poder absoluto dos reis. Eram ainda materialistas, pois admitiam apenas causas naturais físicas para as ideias e as ações humanas; somente aceitavam conhecimentos científicos baseados na observação dos fatos e na experimentação[50].

O termo ideologia volta a ser empregado com um sentido próximo ao do grupo de ideólogos franceses pelo filósofo Auguste Comte, em seu Curso de Filosofia Positiva. O termo, agora, possui dois significados: por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico-científica que estuda a formação das ideias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o conjunto de ideias de uma época, tanto como “opinião geral“ quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época[51].

Também vamos encontrar o termo “ideológico” no capítulo II do livro do sociólogo francês Émile Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Este autor tem a intenção de criar a sociologia como ciência, isto é, como conhecimento racional, objetivo, observacional e necessário da sociedade. Para tanto, é preciso tratar o fato social como uma coisa, exatamente como o cientista da natureza trata os fenômenos naturais. Isso significa que a condição para uma sociologia científica é tomar os fatos sociais como desprovidos de interioridade, isto é, de significações e interpretações subjetivas, de modo a permitir que o sociólogo encare a realidade da qual participa como se não fizesse parte dela. Em outras palavras, a regra fundamental da objetividade científica é a separação entre sujeito de conhecimento e objeto de conhecimento, separação que garante a objetividade porque garante a neutralidade do cientista, que pode, assim, tratar relações sociais (relações entre seres humanos) como coisas diretamente observáveis e transparentes para o olhar do sociólogo. Assim, Durkheim chamará de ideologia todo conhecimento da sociedade que não respeite os critérios de objetividade[52].

Para este sociólogo, o ideólogo é um resto, uma sobra de ideias antigas, pré-científicas. Durkheim as considera pré-conceitos e pré-noções inteiramente subjetivas, individuais, “noções vulgares” ou fantasmas que o pensador acolhe porque fazem parte de toda tradição social em que está inserido. Segundo o autor, um sociólogo não científico assume uma postura ideológica. Por que ideológica? Por três motivos: em primeiro lugar, porque é subjetiva e tradicional, revelando que o pensador não tomou distância em relação à sociedade que vai estudar; em segundo lugar, porque, formando toda a bagagem de ideias prévias do cientista, suas pré-noções ou pré-conceitos, a ciência acaba indo das ideias aos fatos, quando deve ir dos fatos às ideias; e, em terceiro lugar, porque na falta de conceitos precisos o cientista usa palavras vazias e as substitui aos verdadeiros fatos que deveria observar. A ciência é substituída pela invenção pessoal e por seus caprichos; a arte ocupa o lugar da ciência (entendendo-se por arte a engenhosidade, e não, evidentemente, as “belas artes”)[53].

Para Durkheim, o grande princípio metodológico que permite tratar o fato social como coisa e liberar o cientista da ideologia é tomar sempre para objeto da investigação um grupo de fenômenos previamente isolados e definidos por características exteriores que lhes sejam comuns e incluir na mesma investigação todos os que correspondem a essa definição. Assim, o fato social, convertido em coisa científica, nada mais é do que um dado previamente isolado, classificado e relacionado com outros por meio da semelhança ou constância das características externas. Esse objeto móvel, dado, acabado, é conhecido quando classificado, comparado e submetido a leis de frequência e de constância[54]. Passemos à concepção marxista de ideologia.

3.2. Concepção marxista de ideologia

Aproximando-se da concepção marxista de ideologia, Marilena Chaui[55] define a mesma como

…um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um conjunto de ideias ou representações com teor explicativo (ela pretende dizer o que é a realidade) e prático ou de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuí-las à divisão da sociedade em classes, determinada pelas divisões na esfera da produção econômica. Pelo contrário, a função da ideologia é ocultar a divisão social das classes, a exploração econômica, a dominação política e a exclusão cultural, oferecendo aos membros da sociedade o sentimento de uma mesma identidade social, fundada em referenciais unificadores como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Justiça, a Igualdade, a Nação.

Por meio da ideologia, são montados um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de ocultar a divisão social, ignorar a contradição, escamotear a exploração e a exclusão, dissimular a dominação e esconder a presença do particular, enquanto particular, dando-lhe a aparência do universal. A ideologia é o exercício da dominação social e política por meio das ideias. Não é um ideário, mas o conjunto das ideias da classe dominante de uma sociedade e que não se apresenta como tal, e sim oculta essa particularidade, apresentando-se como se valesse para todas as classes sociais[56].

Como exemplo, podemos citar a ideologia burguesa, a qual afirma que o salário é o preço justo ou o pagamento justo do trabalho. Ora, uma vez que o capital só pode acumular-se e reproduzir-se se houver uma fonte que o faça crescer, e uma vez que essa fonte é o trabalho, cabe perguntar como o capital poderia pagar um salário justo, pois é a parte não paga do trabalho que constitui a condição de existência e crescimento do capital. Se, portanto, preenchêssemos as lacunas da frase “o salário é o pagamento justo do trabalho”, dizendo o que são o trabalho, o salário e o capital, essa frase perderia a coerência e se autodrestruiria[57].

A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, produz ideias que impedem de se compreender a relação de exploração econômica e de dominação política, como por exemplo, fazendo com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem, e os preguiçosos empobrecem. Ou então faz com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar – ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os meios e as condições de trabalho. Ou, ainda, faz com que os homens creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes[58].

Cabe salientar que na concepção marxista de ideologia é impossível compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da luta de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados[59].

Para Chaui, a peculiaridade da ideologia, e que a transforma numa força quase impossível de remover, decorre dos seguintes aspectos[60]:

1) O que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as ideias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores. Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o pensador for aquele que trabalha, a ideologia não perderá sua existência nem sua função;

2) O que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebam produzidos por tais condições e atribuam a origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, Natureza, Razão, Estado, destino, etc), de sorte que as ideias quotidianas dos homens representem a realidade de modo invertido e sejam conservadas nessa inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da ideologia. Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá;

3) O que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe sobre outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado), que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. Ora, como a experiência vivida imediata e a alienação confirmam tais ideias, a ideologia simplesmente cristaliza em “verdades” a visão invertida do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam ideias “verdadeiras”. Seu papel é o de fazer com que os homens creiam que tais ideias representam efetivamente a realidade. E, enfim, também é seu papel fazer com que os homens creiam que essas ideias são autônomas (não dependem de ninguém) e representam realidades autônomas (não foram feitas por ninguém).

Para tanto, pode-se afirmar que a ideologia na acepção marxista é resultado da luta de classes e que tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou eficácia da ideologia aumentam quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes[61].

No significado genérico de ideologia dado por Marx, prevalece o sentido negativo, de esconder a divisão injusta da sociedade. Portanto, para Marx, ideologia era o termo atribuído à concepção de mundo da classe dominante, imposta sobre a dominada[62]. Contudo, tem-se outras concepções de ideologia, vinculadas à teoria marxista.

Embora Marx não se referisse ao socialismo como ideologia, pensadores marxistas posteriores o fizeram. Lênin (1870-1924), ao analisar a intensificação da luta de classes, disse que também o proletariado tinha uma ideologia. Nesse caso, o conceito perde a conotação negativa, porque o que está em questão são os interesses de classe a que a ideologia serve. Também o marxista Lukács (1885-1971) caracterizou o materialismo histórico como a expressão ideológica do proletariado no esforço de se libertar[63].

O filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), reconhecendo o sentido pejorativo de ideologia, dizia ser importante não considerar de antemão toda ideologia como arbitrária e, portanto, inútil para transformar a realidade. Segundo Gramsci, pode-se dar ao conceito de ideologia o significado mais alto de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas e que tem por função conservar a unidade do bloco social. Em um primeiro momento, portanto, a ideologia teria a função positiva de atuar como cimento da estrutura social, quando, incorporada como senso comum, ajudaria a estabelecer o consenso, conferindo hegemonia a uma determinada classe que assume o poder, como aconteceu com a burguesia, na luta contra os privilégios da nobreza[64].

Para Louis Althusser (1918-1990), a ideologia é disseminada pelos mais diferentes canais da sociedade – família, escola, empresa, igreja, quartel, meios de comunicação de massa –, responsáveis pela sua reprodução. Esse filósofo francês partiu da concepção marxista segundo a qual o Estado aparece como defensor do bem comum, mas na verdade representa os interesses da classe dominante, cujos valores mantém ao garantir a ordem vigente, reproduzindo as condições adequadas ao capitalismo[65].

Althusser distingue no Estado dois tipos de aparelho:

1) O aparelho repressivo de Estado, que compreende: governo, administração, exército, polícia, tribunais, prisões, etc., e chama-se repressivo porque funciona pela violência;

2) O aparelho ideológico de Estado, que é composto por uma pluralidade de instituições da sociedade civil que funciona não mais pela repressão, mas pela ideologia, veiculando as ideias e os valores que interessam à classe dominante. São elas as instituições religiosa, escolar, familiar, jurídica, política, sindical, de informação (imprensa, rádio, TV, etc), cultural (letras, belas artes, esportes, etc)[66].

O filósofo alemão Jurgen Habermas (1929), inicialmente vinculado à escola de Frankfurt, deve muito de suas ideias ao marxismo. No entanto, não deixa de ser um crítico dessa teoria, à luz das transformações ocorridas no capitalismo, decorrentes da sociedade industrial avançada nos últimos cem anos. Ao analisar o sistema tecnocrático, com seu batalhão crescente de administradores e especialistas, constatou que suas decisões, justificadas em termos técnicos, confere-lhes uma aparência não-ideológica. No seu entender, porém, apesar de a consciência tecnocrática se impor em nome da economia e da eficiência, é possível identificar seu caráter ideológico[67].

Se a interação humana se acha distorcida, na medida em que a ideologia produz relações assimétricas na sociedade, será preciso resgatá-la por meio da ação comunicativa. A novidade do seu pensamento está no fato de que o conhecimento da realidade não se restringe à relação sujeito-objeto nem tem como finalidade agir sobre a natureza e dominá-la. Ampliando essa noção, conhecer resulta do entendimento com outros sujeitos sobre o que pode significar “conhecer objetos” ou “agir sobre eles”. O que está em destaque é o entendimento intersubjetivo que se estabelece em uma comunidade comunicativa[68].

O próprio Habermas reconhece as dificuldades em implantar esse processo na sociedade autoritária, uma vez que a interação comunicativa supõe que todos os membros da sociedade tenham igual oportunidade de usar a palavra e que, portanto, a discussão esteja livre da manipulação e da prepotência. Ou seja: precisamos viver em uma real democracia[69].

3.3. Ideologia e terror: a concepção arendtiana

A relação entre a ideologia e o terror parece determinante, estando na própria base do sistema totalitário e, por consequência, na obra de Orwell. A ideologia (isto é, a lógica de uma ideia) pretende se impor a todos pelo terror e, em contrapartida, o terror justifica todos os crimes em nome da ideologia[70]. Passemos à compreensão da visão de Hannah Arendt acerca deste tema.

Os habitantes de um país totalitário são arremessados e engolfados num processo da natureza ou da história para que se acelere o seu movimento; como tal, só podem ser carrascos ou vítimas da sua lei inseparável. O processo pode decidir que aqueles que hoje eliminam raças e indivíduos ou membros das classes agonizantes e dos povos decadentes serão amanhã os que devam ser imolados. Aquilo de que o sistema totalitário precisa para guiar a conduta dos seus súditos é um preparo para que cada um se ajuste igualmente bem ao papel de carrasco ou de vítima. Essa preparação bilateral, que substitui o princípio de ação, é a ideologia[71].

As ideologias – os ismos que podem explicar, a contento dos seus aderentes, toda e qualquer ocorrência a partir de uma única premissa – são fenômeno muito recente e, durante várias décadas, tiveram papel insignificante na vida política. Somente agora, com a vantagem que nos dá o seu estudo retrospectivo, podemos descobrir elementos que as tornaram tão perturbadoramente úteis para o governo totalitário. As grandes potencialidades das ideologias não foram descobertas de Hitler e de Stálin[72].

Para Arendt, as ideologias são notórias por seu caráter científico: combinam a atitude científica com resultados de importância filosófica, e pretendem ser uma filosofia científica. A palavra “ideologia” parece sugerir que uma ideia pode tornar-se o objeto do estudo de uma ciência, como os animais são objeto de estudo na zoologia, e que o sufixo –logia da palavra ideologia, como em zoologia, indica nada menos que os logoi – os discursos científicos que se fazem a respeito da ideia. Se isso fosse verdadeiro, a ideologia seria realmente uma pseudociência e uma pseudofilosofia, violando ao mesmo tempo os limites da ciência e da filosofia. O deísmo, por exemplo, passaria a ser a ideologia que trata da ideia de Deus, da qual se ocupa a filosofia, à maneira científica da teologia, para a qual Deus é uma realidade revelada. (Uma teologia que não se baseasse na revelação como realidade admitida, mas tratasse Deus como ideia, seria tão louca como uma zoologia que já não estivesse segura da existência física e tangível dos animais.) Contudo, a autora refere que isso é apenas parte da verdade. O deísmo, embora negue a revelação divina, não faz meras afirmações “científicas” a respeito de um Deus que é apenas uma “ideia”, mas usa a ideia de Deus para explicar os destinos do mundo. As “ideias” dos ismos – a raça no racismo, Deus no deísmo, etc. – nunca constituem o objeto das ideologias, e o sufixo –logia nunca indica simplesmente um conjunto de postulados “científicos”[73].

Uma ideologia seria bem literalmente o que seu nome indica: é a lógica de uma ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a “ideia” é aplicada; o resultado dessa aplicação não é um conjunto de postulados acerca de algo que é, mas a revelação de um processo que está em constante mudança. A ideologia trata o curso dos acontecimentos como se seguisse a mesma “lei” adotada na exposição lógica da sua “ideia”. As ideologias pretendem conhecer os mistérios de todo o processo histórico – os segredos do passado, as complexidades do presente, as incertezas do futuro – em virtude da lógica inerente de suas respectivas ideias.[74]

As ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser. São históricas, interessadas no vir-a-ser e no morrer, na ascensão e queda das culturas, mesmo que busquem explicar a história através de alguma “lei da natureza”. A palavra “raça” no racismo não significa qualquer curiosidade genuína acerca das raças humanas como campo de exploração científica, mas é a “ideia” através da qual o movimento da história é explicado como um único processo coerente[75].

A “ideia” de uma ideologia não é a essência eterna de Platão, vislumbrada pelos olhos da mente, nem o princípio regulador da razão, de Kant, mas passa a ser instrumento de explicação. Para uma ideologia, a história não é vista à luz de uma ideia (o que significaria ver a história sob forma de alguma eternidade ideal que, por si, está além do movimento histórico), mas como algo que pode ser calculado por ela. O que torna a “ideia” capaz dessa nova função é a sua própria “lógica”, que é um movimento decorrente da própria “ideia” e dispensa qualquer fator externo para colocá-la em atividade. O racismo é a crença de que existe um movimento inerente da própria ideia de raça, tal como o deísmo é a crença de que existe um movimento inerente da própria noção de Deus[76].

O movimento da história e o processo lógico da noção de história supostamente correspondem um ao outro, de sorte que o que quer que aconteça, acontece segundo a lógica de uma “ideia”. Mas o único movimento possível no terreno da lógica é o processo de dedução a partir de uma premissa. Nas mãos de uma ideologia, a lógica dialética, com seu processo de ir da tese, através da antítese, para a síntese, que por sua vez se torna a tese do próximo movimento dialético, não difere em princípio; a primeira tese passa a ser a premissa, e a sua vantagem para a explicação ideológica é que esse expediente dialético pode fazer desaparecer as contradições factuais, explicando-se como estágios de um só movimento coerente e idêntico[77].

Assim que se aplica a uma ideia a lógica como movimento de pensamento – e não como o necessário controle do ato de pensar – essa ideia se transforma em premissa. As explicações ideológicas do mundo realizaram essa operação muito antes que ela se tornasse tão eminentemente útil para o raciocínio totalitário. A coerção puramente negativa da lógica, a proibição das contradições, passou a ser “produtiva”, de modo que se podia criar toda uma linha de pensamento e forçá-la sobre a mente, pelo fato de se tirarem conclusões através da mera argumentação. Esse processo argumentativo não podia ser interrompido nem por uma nova ideia (que teria sido outra premissa com um diferente conjunto de consequências) nem por uma nova experiência. As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa-de-força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa[78].

As Weltanschauungen e ideologias do século XIX não constituem por si mesmas o totalitarismo. Embora o racismo e o comunismo tenham se tornado as ideologias decisivas do século XX, não eram, em princípio, “mais totalitárias” do que outras; isso aconteceu porque os elementos da experiência nos quais originalmente se baseavam – a luta entre as raças pelo domínio do mundo, e a luta de classes pelo poder político nos respectivos países – vieram a ser politicamente mais importantes que os das outras ideologias. Nesse sentido, a vitória ideológica do racismo e do comunismo sobre todos os outros ismos já estava definida antes que os movimentos totalitários se apoderassem precisamente dessas ideologias. Por outro lado, todas as ideologias contêm elementos totalitários, mas estes só se manifestam inteiramente através de movimentos totalitários – o que nos dá a falsa impressão de que somente o racismo e o comunismo são de caráter totalitário. Mas, no fundo, é a verdadeira natureza de todas as ideologias que se revelou no papel que a ideologia desempenhou no mecanismo do domínio totalitário. Vistas desse ângulo, surgem três elementos especificamente totalitários, peculiares de todo pensamento ideológico[79].

Em primeiro lugar, na pretensão de explicação total, as ideologias têm a tendência de analisar não o que é, mas o que vem a ser, o que nasce e passa. Em todos os casos, elas estão preocupadas unicamente com o elemento de movimento, isto é, a história no sentido corrente da palavra. As ideologias sempre se orientam na direção da história, mesmo quando, como no caso do racismo, parecem partir da premissa da natureza; nesse caso, a natureza serve apenas para explicar as questões históricas e reduzi-las a elementos da natureza. A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos – a explanação total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro[80].

Em segundo lugar, o pensamento ideológico, nessa capacidade, liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer. Assim, o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste na realidade “mais verdadeira” que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar “soldados políticos” nas Ordensburgen do nazismo ou nas escolas do Comintern e do Cominform. A propaganda do movimento totalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade; procura sempre injetar um significado secreto em cada evento público tangível e farejar intenções secretas atrás de cada ato político público. Quando chegam ao poder, os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas. O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração, e isso produz uma mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em seus próprios termos – a verdadeira inimizade ou a verdadeira amizade – mas automaticamente se presume que ela significa outra coisa[81].

Em terceiro lugar, como as ideologias não têm o poder de transformar a realidade, conseguem libertar o pensamento da experiência por meio de certos métodos de demonstração. O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade. A dedução pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos. Atinge-se a compreensão pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos “cientificamente” demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação. A argumentação ideológica, sempre uma espécie de dedução lógica, corresponde aos dois elementos das ideologias que foram mencionados acima – o elemento do movimento e o elemento da emancipação da realidade e da experiência –, primeiro, porque o movimento do pensamento não emana da experiência, mas gera-se a si próprio e, depois, porque transforma em premissa axiomática o único ponto que é tomado e aceito da realidade verificada, deixando, daí em diante, o subsequente processo de argumentação inteiramente a salvo de qualquer experiência ulterior. Uma vez que tenha estabelecido a sua premissa, o seu ponto de partida, a experiência já não interfere com o pensamento ideológico, nem este pode aprender com a realidade[82].

O expediente que ambos os governantes totalitários usaram para transformar suas respectivas ideologias em armas, com as quais cada um dos seus governados podia obrigar-se a entrar em harmonia com o movimento do terror, era enganadoramente simples e imperceptível: levavam-nas mortalmente a sério e orgulhavam-se, um, do seu supremo dom de “raciocínio frio como o gelo” (Hitler), e o outro, da “impiedade de sua dialética” (Stálin), e passaram a levar as implicações ideológicas aos extremos da coerência lógica que, para o observador, pareciam despropositadamente “primitivos” e absurdos: a “classe agonizante” consistia em pessoas condenadas à morte; as raças “indignas de viver” eram pessoas que iam ser exterminadas. Quem concordasse com a existência de “classes agonizantes” e não chegasse à consequência de matar os seus membros, ou com o fato de que o direito de viver tinha algo a ver com a raça e não deduzisse que era necessário matar as “raças incapazes”, evidentemente era ou estúpido ou covarde. Essa lógica persuasiva como guia da ação impregna toda a estrutura dos movimentos e governos totalitários. Deve-se exclusivamente a Hitler e a Stálin, que, embora não acrescentassem um único pensamento novo às ideias e aos slogans de propaganda dos seus movimentos, só por isso merecem ser considerados ideólogos da maior importância[83].

Esses novos ideólogos totalitários distinguiam-se dos seus predecessores por já não serem atraídos basicamente pela “ideia” da ideologia – a luta de classes e a exploração dos trabalhadores, ou a luta de raças e a proteção dos povos germânicos – mas sim pelo processo lógico que dela pode ser deduzido. Segundo Stálin, nem a ideia nem a oratória mas “a força irresistível da lógica subjugava completamente o público” (de Lênin). Verificou-se que a força, que Marx julgava surgir quando a ideia se apossava das massas, residia não na própria ideia, mas no seu processo lógico, que, ‘como um poderoso tentáculo, nos aperta por todos os lados, como um torno, e de cujo controle não temos a força de sair; ou nos entregamos, ou nos resignamos à mais completa derrota’[84]. Essa força somente se manifesta quando está em jogo a realização dos objetivos ideológicos, a sociedade sem classes (no caso do comunismo) ou a raça dominante (no caso do nazismo). No processo da realização, a substância original que servia de base às ideologias no tempo em que buscavam atrair as massas – a exploração dos trabalhadores ou as aspirações nacionais da Alemanha – gradualmente se perde, como que devorada pelo próprio processo: em perfeita consonância com o “raciocínio frio” e a “irresistível força da lógica”, os trabalhadores perderam, sob o domínio bolchevista, até mesmo aqueles direitos que haviam tido sob a opressão czarista, e o povo alemão sofreu um tipo de guerra que não tinha a mais leve ligação com as necessidades humanas de sobrevivência da nação alemã. É da natureza das políticas ideológicas – e não simples traição cometida em benefício do egoísmo ou do desejo de poder – que o verdadeiro conteúdo da ideologia (a classe trabalhadora ou os povos germânicos), que originalmente havia dado azo à “ideia” (a luta de classes como lei da história, ou a luta de raças como lei da natureza), seja devorado pela lógica com que a “ideia” é posta em prática[85].

O preparo das vítimas e dos carrascos, que o totalitarismo requer em lugar do princípio de ação de Montesquieu, não é a ideologia em si – o racismo ou o materialismo dialético –, mas a sua lógica inerente. Nesse ponto, o argumento mais persuasivo – argumento muito do gosto de Hitler e de Stálin – é: não se pode dizer A sem dizer B e C, e assim por diante, até o fim do mortífero alfabeto. Parece ser esta a origem da força coerciva da lógica: emana do nosso pavor à contradição. Quando o expurgo bolchevista faz com que as vítimas confessem delitos que nunca cometeram, confia principalmente nesse medo básico e argumenta da seguinte forma: todos concordamos com a premissa de que a história é uma luta de classes e com o papel do Partido nessa luta. Sabemos, portanto, que, do ponto de vista histórico, o Partido sempre tem razão (nas palavras de Trótski, ‘só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos concede outro meio de termos razão’). Nesse momento histórico, que obedece à lei da história, certos crimes certamente serão cometidos, e o Partido, conhecendo a lei da história, deve puni-los. Para esses crimes, o Partido necessita de criminosos; pode suceder que o Partido, conhecendo os crimes, não conheça inteiramente os criminosos; porém, mais importante que ter certeza quanto aos criminosos é punir os crimes, porque, sem essa punição, a História não poderia progredir, e até mesmo o seu curso poderia ser tolhido. Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo Partido para desempenhar o papel de criminoso – de qualquer forma, é objetivamente um inimigo do Partido. Se não confessares, deixarás de ajudar a História através do Partido, e te tornarás um verdadeiro inimigo. A força coerciva do argumento é: se te recusas, te contradizes e, com essa contradição toda a tua vida perde o sentido; pois o A que pronunciaste domina toda a tua vida através das consequências do B e do C que se lhe seguem logicamente[86].

Para a limitada mobilização das pessoas, que nem ele pode dispensar, o governante totalitário conta com a compulsão que nos impele para a frente; essa compulsão interna é a tirania da lógica, contra a qual nada se pode erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania da lógica começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos. Através dessa submissão, ele renuncia à sua liberdade interior, tal como renuncia à liberdade de movimento quando se curva a uma tirania externa. A liberdade, como capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um espaço que permita o movimento entre os homens. Contra o começo, nenhuma lógica, nenhuma dedução convincente pode ter qualquer poder, porque o processo da dedução pressupõe o começo sob forma de premissa. Tal como o terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz, também a força autocoerciva da lógica é mobilizada para que ninguém jamais comece a pensar – e o pensamento, como a mais livre e a mais pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do processo compulsório de dedução. O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria força de vontade do homem para forçá-lo a mergulhar naquele gigantesco movimento da História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora nascimento ou morte[87].

Por um lado, a compulsão do terror total – que, com o seu cinturão de ferro, comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhes dá apoio num mundo que para elas se tornou um deserto – e, por outro, a força autocoerciva da dedução lógica – que prepara cada indivíduo em seu isolamento solitário contra todos os outros – correspondem uma à outra e precisam uma da outra para acionar o movimento dominado pelo terror e conservá-lo em atividade. Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e meramente tirânica, arruína todas as relações entre os homens, também a autocompulsão do pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia; pois, juntamente com esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)[88]. Passemos a buscar compreender como a ideologia política do Grande Irmão se relaciona com o fenômeno do etnocídio.

4. Considerações sobre a obra 1984 de George Orwell e sua relação com o etnocídio

Nesta parte do trabalho, passaremos a destacar como determinados fatos descritos na obra 1984 configuram o etnocídio, sobretudo como uma ideologia política pode ser objeto desta prática. Por primeiro, será apresentado uma contextualização, na história, da obra do autor, seguindo pela sua biografia. A seguir, serão apresentadas as características principais da obra e, posteriormente, abordar-se-á como a obra 1984 é marcada pelo contexto do etnocídio, salientando três exemplos de configuração desta forma de violência: a imposição da novilíngua, a tortura e conversão de Winston à ideologia do Grande Irmão, e a conversão de Julia.

4.1. Contextualização e biografia do autor

Quando a obra 1984 começa a ser escrita, em 1947, e quando se publica (1949), a Europa segue recuperando-se da situação vivida durante a Segunda Guerra Mundial. Tem passado poucos anos desde o fim daquela guerra, iniciada pela Alemanha Nazi, que deixou episódios tais como o Holocausto ou o uso de armas nucleares e que submeteram a Europa a um duro estado de desconcerto, sofrimento e pobreza. Uma das consequências da guerra foi a distinção de duas superpotências que dividiram o mundo em dois eixos: Estados Unidos (eixo capitalista junto com Europa Ocidental) e a União Soviética (eixo comunista junto com Europa Oriental)[89].

Assim, a Segunda Guerra Mundial trouxe consigo o medo aos movimentos totalitários. Este medo, que seguia arraigado, se incrementou com o início de uma guerra entre as duas superpotências conhecida como Guerra Fria, que começou praticamente com o fim da Segunda Guerra Mundial, ainda que as tensões entre as potências vinham de antes, e que duraria até a dissolução da União Soviética[90].

O Reino Unido também teve um papel neste conflito. O medo ao comunismo no Reino Unido por parte do governo crescia. Os intelectuais de esquerda apoiavam este movimento e isto conduziu a um movimento massivo de propaganda antissoviética que se emitia através dos meios de comunicação e outros meios, como os discursos políticos. Ademais, o país passava por um período de crise econômica que repercutia na indústria de guerra e defesa, e incrementava o medo de que o inimigo comunista adentrasse nas colônias britânicas. Este momento de debilidade fez o país perder o status de “grande poder”. Em definitivo, o Reino Unido se viu rodeado por um inimigo poderoso que avançava pelo leste. As consequências mais notáveis desta situação para o Reino Unido foi o medo ao idealismo político[91].

Na esteira destes acontecimentos, George Orwell se aventurou a escrever a novela distópica 1984, que tratava das preocupações com a sociedade em que vivia. Orwell escolheu o cenário da Inglaterra e a cidade de Londres no futuro, para especular sobre uma possível sociedade dominada por um regime totalitário[92].

A interpretação da obra foi bastante variada, já que os críticos não entravam em acordo com os temas sobre os quais o texto fazia uma reflexão. Assim, alguns consideravam que o texto era uma crítica do capitalismo, totalitarismo, socialismo, tecnologia moderna, propaganda de massa, o partido trabalhista britânico, os intelectuais ingleses, a Guerra Fria, as armas nucleares, e a isolação e anomia da vida moderna. As diferentes possíveis interpretações conduziram os críticos a refletir sobre a orientação política do próprio autor que havia sido associada à esquerda da qual parecia distanciar-se. Assim, Orwell foi definido por adjetivos como anarquista, socialista desiludido ou um conservador reacionário. No entanto, apesar dos variados significados da novela, a maioria de críticos resumia que era um ataque à União Soviética e ao comunismo, devido à data de sua publicação que coincidia com o apogeu da Guerra Fria, e inclusive ao socialismo em geral[93].  

Não obstante, o pensamento de Orwell não se separava totalmente do marxismo. Atacava o sistema de classes, o imperialismo e defendia a igualdade econômica. No entanto, afirmava que o regime de União Soviética não era socialismo nem marxismo, senão outra forma, sem valores morais, do sistema capitalista. É possível que esta visão antissoviética do escritor conduzisse a uma redução de sua novela a simplesmente uma crítica do comunismo da União Soviética[94].

Devido a esta oposição ao marxismo e em que pese o fato de que Orwell seguia sendo considerado membro dos intelectuais de esquerda, o texto foi utilizado por ambos os extremos como propaganda de seus respectivos pensamentos. Nos Estados Unidos, o texto se reproduziu massivamente e se utilizou para defender o capitalismo como “a causa do mundo livre”. Pelo contrário, na União Soviética, 1984 sofreu a censura das autoridades. As cópias reduzidas que circulavam se vendiam como uma defesa do comunismo e uma exaltação das falhas do capitalismo e do fascismo, ainda que os contrários ao regime dentro da União Soviética também viam o texto como uma crítica exclusiva ao comunismo soviético[95].

Em definitivo, a intenção de Orwell era mostrar as possíveis consequências de uma sociedade regida por um governo totalitário, sem a necessidade de nomear um lado da balança a que pertencia este regime imaginário que o escritor representou através do Grande Irmão. Portanto, a associação exclusiva do sentido da novela à crítica ao comunismo ou do fascismo seria limitar seu significado, já que o que se reflete é o perigo de ambos os extremos, é dizer, de qualquer tipo de totalitarismo[96].

Para entender 1984 temos que conhecer a vida de George Orwell. Nascido em 1903 em Montihari (Índia), Eric Arthur Blair é filho de um funcionário do governo imperial. É enviado à Inglaterra, onde sua mãe, de origem anglo-francesa, lhe ensina sobre a leitura e desperta seus dotes literários: com a idade de cinco anos compõe um poema o qual mais tarde renegaria, aduzindo que se tratava de uma cópia do “Tigre, tigre”, de William Blake. Após sua passagem pela escola de St. Cyprien obtém uma bolsa para estudar no colégio de Eton, em que Aldous Huxley foi seu professor de francês durante um curso. Sua origem humilde lhe traz problemas em ambos os centros, sempre no ponto de vista de seus companheiros mais classistas: é seu primeiro contato com a luta de classes. Renuncia a seguir estudos universitários e em 1922 se alista na Polícia Imperial, servindo na Birmânia durante cinco anos. Ali observa autênticas atrocidades por parte de seus companheiros de armas, o qual lhe leva a afirmar: “Quando o homem branco se converte em tirano, destrói sua própria liberdade”[97].

Sua renúncia à Polícia Imperial segue acompanhada por uma dupla renúncia: a seu nome (a partir de agora será conhecido pelo pseudônimo George Orwell: George, por São Jorge, patrono da Inglaterra; e Orwell, por um rio que conheceu em sua infância) e a sua classe social: passa uma década à beira da indigência, alternando a escrita com a vida entre as classes mais humildes. Fruto desta experiência é seu primeiro livro, Sem branco em Paris e Londres (1933). A paulatina aquisição de consciência social, que o tem levado a se distanciar das forças de ocupação imperiais para aproximar-se da pobreza, dá passo a uma nova etapa em que Orwell exerce o periodismo de denúncia. Até agora, Orwell tem vivido a situação das classes inferiores; a partir de agora consagra seu tempo a explicar e divulgar esta situação. Seu novo objetivo são os mineiros e obreiros desempregados de uma região industrial atrasada. Ao término do livro, O caminho de Wigan Pier (1936), Orwell radicaliza seu discurso. Descobre o socialismo. No entanto, a ditadura do proletariado propugnada pelo comunismo soviético o inquieta: não deixa de ser uma ditadura[98].

Após contrair matrimônio com Eileen O’Shaughnessy, viaja à Espanha. O livro resultante, Homenagem à Catalunha (1938), sua obra de destaque, vai um passo além em seu discurso. Orwell viaja como periodista, porém se filia a uma milícia do POUM (Partido Obreiro de Unificação Marxista), de Andreu Nin e Joaquím Maurím, de raiz trotskista. É testemunha de uma série de fatos que transtornam suas convicções ideológicas. A experiência da autogestão coletivizadora na frente aragoneza, em um ponto a ponto entre trotskistas e anarquistas contrasta com os sucessos que presencia em 1937 em Barcelona. Ferido na frente, Orwell regressa a Barcelona. Durante sua convalescência, presencia um fato de guerra civil dentro da guerra civil. Os enfrentamentos armados entre o exército regular republicano (bem equipado pela União Soviética) e as milícias anarquista-trotskistas dão lugar a uma autêntica purga à maneira das soviéticas, e levam a um desarme das milícias. As convicções de Orwell sofrem duro revés. O comunismo ortodoxo, segundo ele, é outra forma de ditadura equiparável ao nazismo, duas caras da mesma moeda que não fazem senão despojar as classes trabalhadoras. A manipulação informativa e propagandística pode esquecer os fatos em Barcelona como se não houvessem existido. Nada diferencia o capitalismo do fascismo ou do estalinismo. Orwell já maneja os pontos centrais de 1984[99].

A Segunda Guerra Mundial termina de oferecer-nos um quadro cabal das inquietudes político-literárias de Orwell. Durante o conflito é membro da Home Guard, colabora na BBC e é diretor literário do periódico Tribune. É, pois, um personagem de relevo na vida cultural britânica. Enquanto Londres padece dos bombardeios das V-2, Orwell escreve a Revolução dos Bichos (1945). Traz uma aparência de uma inofensiva fábula acerca dos animais que despojam o proprietário de uma granja e se lançam à autogestão da mesma, uma paródia definitiva do comunismo estalinista. O porco Mayor é uma imagem de Lênin, que antes de morrer marca as pautas a seguir até a definitiva libertação do jugo dos humanos (o capitalismo). Seus herdeiros, Napoleão (Stálin) e Bola de Neve (Trótski), terminam enfrentando-se pelo controle da granja[100].

Esta fábula mostra a progressiva degradação dos ideais revolucionários, o linchamento público da memória do porco traidor (Bola de Neve), a instauração da ditadura mais opressiva, a implantação de slogans (se passa do “quatro patas sim, dois pés não”, identificando a classe animal, a “quatro patas sim, dois pés melhor”, com o que se adverte para o abandono definitivo dos princípios revolucionários por parte da classe dirigente) e o ressentimento de Orwell contra um comunismo traidor de seus próprios ideais[101].

Ainda que Bernard Crick opine que a data de elaboração da obra date de 1945 e que em todo caso sua publicação demorou em função da escassez de papel, a tradição afirma que Orwell concluiu este livro no final de 1943. No entanto, teve que tentar por mais de um ano, de editor em editor, uma espécie de censura editorial: ninguém estava disposto a publicar um livro que era um ataque frontal à União Soviética, em um momento em que a mesma resultava a maior e melhor garantia de triunfo na guerra frente ao fascismo internacional. ‘Qualquer crítica séria ao regime soviético, qualquer revelação de fatos que o governo russo prefira manter ocultos, não sairá à luz’ escreve Orwell em seu ensaio “A liberdade de imprensa”. ‘Vemos, paradoxalmente, que não se permite criticar o governo soviético, ao passo que se é livre de fazer com o nosso. Será raro que alguém possa publicar um ataque contra Stálin, no entanto é muito frequente atacar Churchill desde qualquer classe de livro ou periódico’[102].

Este é George Orwell que, desencantado definitivamente com a classe política britânica (mais zelosa, segundo ele, de defender os comunistas soviéticos que a seus próprios políticos), com a censura exercida pelos meios de comunicação (fato que lhe leva a se demitir da BBC), com a vida mesma (sua mulher falece em 1945), com sua própria saúde (seus problemas de tuberculose se acentuam), elabora sua obra mais conhecida, seu testamento literário, a novela que marcou o devir da literatura fantástica de caráter político na segunda metade do século XX e, por que não, o devir da própria humanidade. Falece em 21 de janeiro de 1950, recém desposado com Sonia Brownel. Orwell já havia dito o que tinha que dizer[103]. Passemos às características gerais da obra 1984.

4.2. Aspectos gerais da obra

Pode-se dizer que 1984 é uma obra distópica. A distopia seria o oposto à utopia. Se na utopia temos um lugar imaginário, que descreve um futuro estado feliz da humanidade, em que cada pessoa tem satisfeitas suas necessidades e existe um governo benévolo que provê todo o necessário, na distopia temos a descrição de uma sociedade opressiva e fechada em si mesma, geralmente sob o controle de um governo autoritário. A distopia é o pior dos mundos, a submissão definitiva e absoluta[104]. É o contrário do paraíso cristão ou dos mitos de felicidade eterna[105].

Durante os anos de entre guerras se produzem três obras fundamentais na chamada literatura distópica; três obras que à sua maneira influenciam 1984 e que constituem advertências muito sérias de quão terrível poderia chegar o futuro se o poder recair em mãos dispostas a cortar os direitos do indivíduo. Estas obras são Nós, de Yevgueni Zamiátin (1921), Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932) e A Guerra das Salamandras, de Karel Capek (1936)[106].

Pode-se afirmar, portanto, que 1984 apresenta uma distopia. Nela, o mundo está dividido em três grandes potências: Oceania, Eurásia e Lestásia. A primeira delas compreende a América, Austrália, Grã-Bretanha e o sul da África. Eurásia é o resultado da absorção da Europa por parte da União Soviética. Lestásia compreende China, Japão e Indochina. O resto do planeta padece de uma guerra interminável que as três potências travam, em um cambiável ir e vir de alianças e rompimento das mesmas. No início da novela, a Oceania está em guerra com a Eurásia; sempre esteve em guerra com a Eurásia e está aliada à Lestásia[107].

Winston Smith é um funcionário do departamento de Registro do Ministério da Verdade, que ironicamente é o organismo encarregado de falsear a realidade e manipular a opinião pública. É um quadro inferior do todo-poderoso Partido, muito longe do nível de vida alcançado pelos membros do Partido Interior (a autêntica elite da sociedade, cujo topo é o todo-poderoso Grande Irmão), e muito por cima das privações dos proletas, a classe inferior. Winston Smith é, pois, um representante da chamada classe média de um dos Estados mais repressores que a literatura tem apresentado[108].

Porém Winston tem dúvidas. Um incidente isolado, ocorrido anos antes, lhe faz suspeitar de que o Partido manipula a realidade até extremos inauditos. Por erro, caiu em suas mãos um documento que demonstrava que três dissidentes políticos caídos em desgraça (Jones, Aaronson e Rutherford), a quem ele mesmo havia visto em uma ocasião, haviam sido considerados heróis do Partido para, em continuação, desaparecer de qualquer fonte documental como se nunca houvessem existido. O trabalho de Winston consiste precisamente nisto: em alterar a imprensa de tal maneira que as notícias que incomodam o Partido sejam substituídas por outras que se adequem à verdade oficial. Ao desaparecer da imprensa e de qualquer outro meio de comunicação, se pode dizer que estas notícias nunca existiram. De maneira análoga, as pessoas caídas em desgraça aos olhos do Partido deixam de existir aos olhos do mundo. Mais ainda: nunca existiram. São nãopessoas. Oceania pode estar em guerra com a Lestásia, e mais ainda: Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia; porém, se o Partido diz que a Oceania está em guerra com a Eurásia, deve-se crer no Partido: Oceania está em guerra com a Eurásia; mais ainda: Oceania sempre esteve em guerra com a Eurásia. A faculdade de mudar de ideia ao compasso dos ditames do Partido se conhece como duplipensar. Um objeto branco pode ser negro se o Partido disser que é negro, e a tarefa do bom membro do Partido (e por conseguinte, do bom duplipensador) consiste em adquirir a habilidade mental necessária para convencer-se a si mesmo de quando um objeto branco é negro. A capacidade do duplipensar de gerar paradoxos se manifesta na nomenclatura dos órgãos governamentais: o Ministério da Verdade se encarrega de manipular a mente dos cidadãos; o Ministério da Abundância (da fartura ou da pujança) gere cada vez mais escassos recursos alimentícios e matérias primas; o Ministério da Paz é o que trata da guerra; e o Ministério do Amor é encarregado de exercer a coação física e mental sobre a população[109].

O duplipensar é só um estado mental conducente a estabelecer uma concepção imutável da história; uma ferramenta intelectual, que encontra sua base na novilíngua (ou novafala), uma linguagem artificial criada pelo Partido e que modelará a mentalidade dos súditos do Grande Irmão. A linguagem determina a estrutura do pensamento humano. Ao prescindir de determinadas palavras, se prescinde de seu conceito. Deste modo, o Partido pode controlar e uniformizar com maior facilidade os pensamentos de seus membros, para assim evitar o maior dos delitos concebíveis na sociedade da Oceania: o crimental (ou pensamento-crime). O delito de pensamento oposto ao duplipensar e às diretivas do Partido (o Ingsoc, ou Socing, ou socialismo inglês). Um cidadão pode ter uma conduta irreprovável, ser um modelo do Partido, cantar seus hinos e dominar a novilíngua; no entanto, em seu foro íntimo não está convencido da verdade do Ingsoc, e tarde ou cedo se delatará a si mesmo mediante o crimental. Um fato, um indício, um simples pensamento ou inclusive uma frase murmurada em sonhos bastará para acabar com essa pessoa. E esse “acabar com essa pessoa” funciona tanto no sentido individual (será vaporizado) como no coletivo (ao ser uma nãopessoa, nunca haverá existido; nada demostrará que tem existido; ninguém o recordará)[110].

O medo de cometer um crimental é o primeiro sinal de que se está cometendo um crimental. E Winston já alcançou essa fase desde o momento em que começa a escrever um diário. Não existe intimidade. Qualquer ato solitário é antissocial, contrário aos princípios do Ingsoc e leva ao crimental[111].

A primeira manifestação de submissão ao Partido é o acatamento de seus três grandes slogans: A guerra é a paz; a liberdade é a escravidão; a ignorância é a força. Estas três frases constituem o resumo do pensamento do Ingsoc, são tudo que um bom membro do Partido necessita saber para ser um cidadão de comportamento correto. A única maneira de alcançar a paz é manter-se em estado de guerra contra as outras potências, pois cedo ou tarde Oceania haverá de triunfar. A submissão ao Partido é a única maneira de manter um pouco de liberdade; caso contrário, morres, deixa de existir. O falseamento da realidade é a base do sistema: crer nas mentiras impostas nos fará fortes para manter-nos dentro do jogo proposto pelo Partido; quanto mais ignorantes sejamos, menos risco de descobrir incoerências, menos possibilidade de cair em crimental[112].

O segundo ato que produz submissão é a abstinência sexual. Winston odeia com todas as suas forças duas mulheres: sua ex-esposa Katharine e Julia. Ambas são o protótipo de mulher entregue ao Partido. Sua ex-esposa não quis dar-lhe descendência ao considerar a maternidade um ato de submissão ao Partido: está condicionada para considerar o sexo por prazer como uma abominação, sua frigidez é sua força. Julia encarna a mulher militante na Liga Juvenil Antisexo, que trabalha no departamento de ficção do Ministério da Verdade; é dizer, se encarrega de escrever novelas pornográficas que logo são distribuídas clandestinamente entre os proletas, para fazerem crer que consomem produto proibido. Seu cinturão de castidade é a recordação de que o sexo é intrinsecamente abominável. Proibido o amor, que outra alternativa tem os habitantes da Oceania? O ódio[113].

O ódio. O terceiro a mais forte motor de coesão da sociedade de 1984. Mas ódio a quê? Ao estranho, ao estrangeiro, ao contrário ao Partido. As manifestações populares mais fortes são as imagens de propaganda bélica, as execuções de prisioneiros de guerra inimigos e sobretudo os Dois Minutos de Ódio. Que são os dois minutos de ódio? A ração diária de ódio necessária para fazer funcionar o sistema. Quem é objeto de ódio? Emmanuel Goldstein. O grande inimigo da Oceania, do Partido e do Grande Irmão. O adversário necessário. O traidor ao Ingsoc. O artífice da revolução que se vendeu às potências estrangeiras. A população expressa seu ódio irracional, válvula de escape de todos os seus instintos primários, enquanto se apresentam imagens de Goldstein com um fundo de matanças e atrocidades do inimigo escolhido, seja Eurásia ou Lestásia. Os cidadãos estão condicionados para odiar Goldstein. Odiar Goldstein é amar o Partido e ao Grande Irmão e tudo o que representa o Ingsoc. Duvidar da maldade de Goldstein é a pior forma de crimental[114]. E Winston caiu nela.

Winston odeia o Partido. Odeia o Grande Irmão. Sabe que o Partido manipula a informação, altera a percepção cotidiana da realidade. Sabe porque ele mesmo tinha em suas mãos uma prova desta fraude. Mas ao mesmo tempo sabe que outros como ele também odeiam o Partido. Por exemplo, O’Brien, um destacado membro do Partido Interior, que aparece em sonhos prometendo-lhe um encontro “no lugar onde não há escuridão”. Guiado por uma cumplicidade inexplicável, mais intuitiva que fundamentada, Winston segue os passos de O’Brien, convencido de que ele pode aclarar dúvidas acerca da existência de Confraria (ou Irmandade), uma organização clandestina, não se sabe se existente ou não, inimiga do Partido e do Grande Irmão, talvez impulsionada pelo próprio Goldstein, o inimigo[115].

Porém, antes de ir até O’Brien, Winston deve consumar seu crimental, deve transgredir todas as regras impostas pelo Partido. A primeira parte da novela nos refere ao processo mental que Winston segue antes de estar preparado para saltar esta fase. O ato de escrever o diário faz Winston questionar cada vez mais sobre o funcionamento do Partido e seu sistema de mentiras. É a tomada de consciência por parte de Winston de que a pretendida utopia não é senão uma terrível distopia. Isto leva Winston a cada vez mais contestar o regime. Logo chega à conclusão de que a única solução possível é a queda do Grande Irmão. Porém os membros do Partido, sujeitos à férreos condicionamentos, não serão a força capaz de acabar com a opressão. Winston fixa seus olhos nos proletas, os proletários, aqueles cidadãos alheios ao jugo do Grande Irmão. Os proletas levam Winston a querer recordar uma existência anterior ao Grande Irmão. Winston, que carece de família (foi separado de sua mãe e sua irmã na infância) foi criado pelo Partido, e recorda linhas soltas de uma canção da infância, que converterá em símbolo de sua individualidade e de sua rebeldia. Esta rebeldia o leva a alugar uma habitação em um bairro proletário. Ali poderá escrever seu diário, longe da visão onipresente das teletelas[116].

Após a tomada de consciência, a comissão do crimental, é hora de passar à ação. A segunda parte da novela nos mostra a aproximação entre Winston e Julia. Em princípio odiada, ela se revela como uma sediciosa. Porém, ao contrário de Winston, a rebeldia de Julia é acrítica e intuitiva. Julia carece de base teórica, todas as ideias de Winston a favor dos proletas e contra o Partido são incompreensíveis. A rebeldia de Julia é de outra índole. Ela busca a liberdade sexual. O amor clandestino de Julia e Winston é desesperado: ambos sabem que seus dias estão contados. Não tem planos para o futuro. Neste instante entra O’Brien em ação[117].

O’Brien, em um primeiro momento, introduz Winston e Julia na Confraria. Perpetrado o crimental, violada a abstinência sexual, Winston penetra no mundo do ódio graças a O’Brien, e ele e Julia são iniciados. Juramentados ambos, Julia e Winston brindam com O’Brien pelo passado. Pelo passado que existiu, não pelo passado eternamente mutável que defende o Partido. É o momento em que ambos passam a formar parte da Confraria. Por fim, podem ler o livro chave da rebelião, o tratado teórico escrito por Emmanuel Goldstein: Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico. Em realidade, se trata de um ensaio analítico, uma descrição das instituições e história da Oceania. É a resposta à pergunta que Winston havia formulado em seu diário: “Compreendo como. Não compreendo por quê”. A certeza do porquê das coisas, a compreensão por parte de Winston de por que odeia o partido e tudo o que encarna é o último passo em sua trajetória moral e política. Somente agora, e não antes, poderá enfrentar a seguinte etapa, referida na terceira parte da novela: sua tortura[118].

Evidentemente, Winston não podia fugir de seu destino: ser encarcerado. O próprio O’Brien, comissário da polícia do pensamento (ou polícia das ideias), se encarrega de capturá-lo e conduzi-lo ao Ministério do Amor. Ali, sofrerá todas as humilhações imagináveis, uma lavagem cerebral que o leve a amar o Partido e o Grande Irmão. A temível sala 101 marca o final de Winston como pessoa; nela enfrenta os fantasmas mais terríveis. Uma vez superada a humilhação lá dentro, Winston está disposto a crer em qualquer coisa que diga o Partido. Os discursos doutrinadores de O’Brien surtem efeito. Winston já é capaz de duplipensar. Vê cinco dedos quando O’Brien lhe mostra quatro. Melhor ainda, ama o Grande Irmão[119].

Após este resumo da novela, podemos nos deter em quatro aspectos fundamentais da exposição de Orwell: o controle social, a ditadura, o falseamento da realidade e a violência.

No que tange ao controle social, pode-se afirmar que o sistema político apresentado por Orwell está encaminhado para alienar o indivíduo, a fazê-lo virtualmente incapaz de pensar por si mesmo. Seguindo a definição anteriormente exposta sobre a distopia, trata-se de uma sociedade fechada sobre si mesma, que se apresenta como a sociedade perfeita. Somente isolando as influências externas se poderá realizar o ideal do Ingsoc. O exterior só pode ser mau. Somente o Grande Irmão e o Partido são capazes de oferecer algo bom ao cidadão da Oceania. A guerra exterior frente aos inimigos identificáveis (um inimigo físico: as potências que enfrentam a Oceania; um inimigo ideológico: Goldstein) é um fator de coesão, que chega onde o Grande Irmão não alcança[120].

Existem muitos meios coercitivos para assegurar este controle. O Ministério do Amor dispõe de um aparato repressor sem fissuras. Não é infrequente que teu próprio filho te delate, à semelhança dos jovens camisas pardas nazis. Assim, pois, vemos que existem diversos níveis de controle social:

1) A guerra exterior contra o inimigo físico e ideológico. É a razão de ser última do Estado. Há que odiar Goldstein e a potência inimiga; só assim, por contraposição, se poderá amar o Grande Irmão[121].

2) A guerra interior contra o crimental. Fomenta a participação de seus próprios cidadãos em seu sistema repressor. Passa ineludivelmente pela aprendizagem e repetição dos aspectos fundamentais do Partido. É o segundo nível de coesão: o amor ao Grande Irmão[122] [123].

3) A guerra contra a verdade. Orquestrada pelos meios de comunicação, consiste em uma lavagem cerebral permanente das massas. Configura a realidade que o Partido quer impor. À falta de provas em contrário, termina por ser A Verdade. É um nível mais profundo de coesão do sistema: se o recurso ao inimigo externo e ao desvio ideológico não são suficientes, se encarrega de anular as últimas manifestações espontâneas de contestação. Não só há que amar o Grande Irmão: há que agradecer-lhe o bem-estar atual. Todos os logros, sejam da índole que sejam, são obra exclusiva do Grande Irmão[124].

4) A guerra contra os costumes. Consiste em dar aparência de virtuosismo a todos os atos cotidianos. Nenhuma conduta pode ser considerada errônea, sob pena de incorrer em crimental. Há que praticar a abstinência sexual. Há que sustentar os autos de fé contra os inimigos do Partido e do Estado. Há que gritar nos dois minutos de ódio. Há que estar sempre visível para a teletela. O Grande Irmão te vigia e, como corresponde a uma figura fortemente paternalista, está disposto a castigar o filho que trai sua confiança e deprecia seu amor[125].

Quanto à ditadura, trata-se do regime característico da Oceania. Se exerce um autoritarismo sem limites. Não se contempla nenhuma instituição de participação cidadã, nem sequer um parlamento fictício em que exista uma democracia fingida. Não há que convencer a ninguém das bondades do regime. Ao estar fechado ao exterior, o Estado não tem que render contas à instituição ou potência estrangeira alguma. Ao ser a ditadura perfeita, a opinião pública é irrelevante. E mais: a opinião pública não existe[126].

Como já conhecemos a trajetória de George Orwell, sabemos de suas reflexões internas no seio das forças esquerdistas. Estamos a par dos seus desencantos com os partidos obreiros. A teor de suas experiências na frente aragoneza e em Barcelona durante a guerra civil espanhola, descritas em Homenagem à Catalunha, e à raiz do lido em A Revolução dos Bichos, resultaria muito fácil ceder à tentação de catalogar 1984 como uma obra anticomunista. O qual é certo, porém inexato[127].

Orwell se cuida de traçar um mapa geopolítico em que tem existência três totalitarismos ferozes e sem fissuras, produto de uma repartição do mundo que, pelo sugerido na novela, se produziu em algum momento em torno da década de 1950. A Lestásia caiu sob a influência da China, e já sabemos que a China é um estado comunista desde que Mao Tsé Tung depôs Chiang Kai Chek da China continental e instaurou seu regime, por volta de 1949, período em que 1984 estava em processo de redação. A Eurásia é uma colônia da União Soviética, em funcionamento desde o triunfo da Revolução Bolchevique de 1917; no entanto, com o status de superpotência mundial desde que em 1945, ao vencer o nazismo alemão de Hitler, tomou controle da Europa do Leste, após a constituição, em 1949, do Conselho de Ajuda Econômica (COMECON), germe do Pacto de Varsóvia. Oceania é o resultado da absorção por parte dos Estados Unidos da América de todos os países da língua inglesa (Canadá, Grã-Bretanha, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia) mais suas colônias naturais (de acordo com o estabelecido na Doutrina Monroe e a Doutrina do Destino Manifesto, México, América central e América do Sul). Vemos, pois, que se a crítica de Orwell houvesse tido como objetivo o comunismo estalinista, haveria feito cair a Grã-Bretanha sob influência da Eurásia, algo que desde o ponto de vista geográfico teria mais sentido. O Grande Irmão pratica uma ideologia, o Ingsoc, indistinguível do comunismo estalinista (o que é certo), porém também indistinguível do nazismo ou de qualquer outra forma de fascismo. Seu antissemitismo (Goldstein é um apelido judeu) pode ser tão próprio de um nazi alemão como de um comunista soviético, ou como de um ultrarepublicano estadunidense (Henry Ford, por exemplo, foi cabeça visível do antissemitismo em seu país) ou um tory britânico. Sua xenofobia adentra suas raízes na supremacia da raça branca e na primazia da língua inglesa, que somente será superada pela novilíngua, de raízes igualmente inglesas[128].

Se Orwell quisesse, o Grande Irmão poderia haver sido russo, ou chinês, ou alemão. Mas não. O Grande Irmão é anglo-saxão. Oceania é uma ditadura, uma de três ditaduras globais surgidas na raiz da Segunda Guerra Mundial, e acompanha o comunismo estalinista soviético e ao comunismo maoísta chinês, porém não se trata de nenhum dois, ainda que comparta de elementos ideológicos e de modus operandi. Também possui todos os atributos que convertem em ditadura totalitária ao fascismo italiano e ao nazismo. Porém não é nenhuma delas. Não se pode identificar com nenhum totalitarismo existente no momento da redação da novela. É uma extrapolação do que se poderia ser um comunismo ou um fascismo à lá anglo-saxão. De onde devemos chegar à conclusão de que Orwell está criticando todos os tipos de totalitarismo. Sua crítica é de caráter universal, e tanto da forma que este totalitarismo adquire: comunismo, nazismo, fascismo ou Ingsoc[129].

Com relação ao falseamento da realidade, outro aspecto fundamental da exposição de Orwell, trata-se da única forma de perpetuar um regime ditatorial: perpetuando a mentira. Para que o sistema funcione, há que acabar com a dissidência. O crimental é o maior delito, e para evitá-lo há que acabar com as causas que conduzem ao mesmo. Há que manipular o passado, fazê-lo inexistente se é necessário. ‘Quem controla o presente, controla o passado. Quem controla o passado, controla o futuro’. Este axioma tem uma interpretação evidente: o futuro será daquele que manipular o passado ao ponto de modelá-lo à sua vontade. Mediante a anulação de qualquer tempo que não seja o mesmo presente se poderá evitar a contestação do regime: a dissidência recorre a fatores históricos, a um passado em que as coisas não eram como agora, e esse recurso ao passado conduz a retificar o presente e melhorar o futuro. Anulando a linha temporal se apagam estas possibilidades. O único passado existente é aquele que o Partido dispõe, e pode mudar à sua vontade; se o plano trienal não se cumpre, se a produção de chocolate não aumenta, se líderes antirrevolucionários devem ser vaporizados, tudo é modificado. Qualquer discordância entre o passado e a propaganda oficial pode induzir a pensar que o presente não é perfeito e não está completamente controlado. Ante a impossibilidade de viajar no tempo para modificar esses processos descontrolados, a única maneira possível de eliminar o problema é apagando da memória. Se se manipulam e adulteram, os novos registros passarão a ser a única verdade. A antiga verdade nunca existiu, logo não será verdade. Não será. Uma pessoa incômoda para o regime, um culpado confesso de crimental (pois o crimental sempre leva a uma confissão de culpabilidade), será anulado como pessoa; primeiro se despojará de sua personalidade e mais tarde, quando seu exemplo vivente já tenha sido interiorizado pelo súdito, será vaporizado, será uma nãopessoa. Não será. Não terá sido nunca[130].

Esta realidade configura um futuro perfeito. O passado, em perpétuo movimento, dará lugar a um futuro imóvel, em que não existe dissidência porque já não existirá palavra para dissidência. A novilíngua se encarregará disso. A linguagem modelará a mentalidade dos homens e mulheres futuros, na mesma medida da manipulação da História. Chegará um momento em que o tempo se estanca, pois, como todo corpo perfeito, a entropia haverá desaparecido e se encontrará um estado de repouso absoluto. Só neste momento será igual o passado, posto que só se viverá no presente. Este momento não está longe. Os especialistas prevêem que até 2050 se publicará a edição definitiva do Dicionário de novilíngua. Esta é a data que o Ingsoc tem marcado para controlar a realidade. Uma data talvez utópica, porquanto (e isto somente pode significar que o Partido está próximo a alcançar seus fins) Winston não tem a certeza de em que data ele vive. Elege 1984 como data para começar seu diário por aproximação, não porque lhe conste. É provável que a ação de 1984 nem sequer transcorra em 1984. O tempo está deixando de existir[131].

No entanto este ideal pode não ser alcançado. Enquanto não se apagam todos os registros do passado que possam comprometer o presente, e enquanto não se tenha aperfeiçoado a estrutura mental dos habitantes da Oceania futura, existe o risco do livre pensamento. E somente com a violência se pode erradicar o germe do individualismo[132].

Por fim, no que concerne à violência, deve-se salientar que o Estado deve exercer coerção para assegurar o cumprimento das leis. Isto é aplicável a qualquer tipo de Estado, seja totalitário ou democrático. Somente o nível em que se exerce essa coerção determina o tipo de regime político. Um Estado em que se destacam os mecanismos violentos de coerção é um estado totalitário. A Oceania de 1984 o é. Sob a aparência de utopia, todos sabem o que lhes espera se caem em desgraça. O crimental é arbitrário, não respeita ninguém, pais ou família ou membros do Partido. Nem sequer Syme, ideólogo da novilíngua, escapa à prisão, às sinistras masmorras do Ministério do Amor. A violência é o último recurso, ao que tarde ou cedo chegarão todos os culpados de crimental, e se exerce de uma maneira desmedida. O Grande Irmão parece um deus bíblico, exercendo seu castigo. O’Brien é uma figura quase paternalista, e tenta por todos os meios ensinar a Winston seus erros, buscando convencê-lo de sua atitude errônea modelando sua mente à vontade do Partido, induzindo-o ao duplipensar. Para isto, Winston deve trair aquilo que mais quer e, em que pese Orwell se utiliza sem piedade das cenas de tortura física, o mais terrível da novela é o que acontece dentro da sala 101, onde Winston enfrenta o que mais teme. Violência intelectual e violência física estão unidas em um binômio indissolúvel que somente tem uma finalidade: perpetuar o Estado de terror e opressão, e não só isso, senão fazê-lo com o beneplácito e a firme adesão e convicção dos cidadãos oprimidos[133].

Estabelecidas estas características fundamentais da obra de Orwell, passemos a apresentar como a ideologia política do Grande Irmão é assimilada, apontando três fatos da obra que, sob a nossa leitura, caracterizam o etnocídio.

4.3. A conversão forçada a uma ideologia política como instrumento para a prática do etnocídio: uma análise da obra 1984

Como visto anteriormente, o etnocídio se traduz em uma conversão forçada, que se perpetra no corpo do indivíduo, mas que tem reflexos além do corpo. Medidas como destruição da língua de um povo e imposição de outra; destruição da religião e imposição da crença do dominador; e destruição da cultura de um povo e imposição da cultura do repressor são circunstâncias em que se configura o etnocídio. Esta prática, portanto, se traduz como a imposição da língua, cultura ou religião para estender um domínio espiritual sobre um povo específico, mediante a violência.

No entanto, como demonstraremos neste tópico, uma ideologia política também pode ser instrumento para a prática do etnocídio. Na obra 1984 de Orwell, trata-se claramente da imposição da ideologia política do Grande Irmão sobre a população da Oceania; trata-se de um Estado etnocida; a população deve renunciar à sua liberdade individual e adotar de corpo e alma a ideologia do Socing (ou IngSoc). Para demonstrar como o etnocídio está presente em 1984, abordaremos três fatos descritos na obra de Orwell que, ao nosso juízo, configuram essa forma de violência: por primeiro, a destruição da língua inglesa e a imposição da novilíngua (ou novafala); segundo, a tortura de Winston e seu diálogo com O’Brien; e, terceiro, a conversão de Julia à ideologia do Socing e ao Grande Irmão.

No que concerne à destruição da língua inglesa e à imposição da novilíngua (ou Novafala), podemos verificar esta hipótese quando Syme, amigo de Winston, expõe como é realizada a destruição da língua inglesa e a imposição da novilíngua, no momento em que fala sobre o dicionário deste idioma[134]:

‘A Décima Primeira Edição é a edição definitiva’ (…) ‘Estamos dando os últimos retoques na língua – para que ela fique do jeito que há de ser quando ninguém mais falar outra coisa. Depois que acabarmos, pessoas como você serão obrigadas a aprender tudo de novo. Tenho a impressão de que você acha que a nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras – dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que venha a se tornar obsoleta antes de 2050’.

(…)

‘Que coisa bonita, a destruição de palavras! Claro que a grande concentração de palavras inúteis está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que também podem ser descartados. Não só os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, o que justifica a existência de uma palavra que seja simplesmente o oposto de outra? Uma palavra já contém em si mesma o seu oposto. Pense em ‘bom’, por exemplo. Se você tem uma palavra como ‘bom’, qual é a necessidade de uma palavra como ‘ruim’? ‘Desbom’ dá conta perfeitamente do recado. É até melhor, porque é um antônimo perfeito, coisa que a outra palavra não é. Ou então, se você quiser uma versão mais intensa de ‘bom’, qual é o sentido de dispor de uma verdadeira série de palavras imprecisas e inúteis como ‘excelente’, ‘esplêndido’ e todas as demais? ‘Maisbom’ resolve o problema; ou ‘duplimaisbom’, se quiser algo ainda mais intenso. Claro que já usamos essas formas, mas na versão final da Novafala tudo o mais desaparecerá. No fim o conceito inteiro de bondade e ruindade será coberto por apenas seis palavras – na realidade por uma palavra apenas. Você consegue ver a beleza da coisa, Winston? Claro que a ideia partiu do ‘G. I’.

Neste ponto, Syme declara claramente que a Novafala (ou novilíngua) será imposta a todos, e que a língua inglesa está sendo destruída. Trata-se, evidentemente, de uma prática etnocida.

Adiante, Syme esclarece em sua fala[135]:

‘Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. Na Décima Primeira Edição já estamos quase atingindo esse objetivo. Só que o processo continuará avançando até muito depois que você e eu estivermos mortos. Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor. Mesmo agora, claro, não há razão ou desculpa para cometer pensamentos-crimes. É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas, no fim, nem isso será necessário. A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é Novafala’.

(…)

‘Lá por 2050 – ou antes, talvez – todo conhecimento real de Velhafala terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída’.

Destarte, o objetivo da Novafala (ou novilíngua) não era somente fornecer um meio de expressão compatível com a visão de mundo e os hábitos mentais dos adeptos do Socing (ou IngSoc), mas também inviabilizar todas as outras formas de pensamento. A ideia era que, uma vez definitivamente adotada a Novafala e esquecida a Velhafala, um pensamento herege – isto é, um pensamento que divergisse dos princípios do Socing – fosse literalmente impensável, ao menos na medida em que pensamentos dependem de palavras para ser formulados. A Novafala foi concebida para restringir os limites do pensamento[136].  

O segundo fato que se passa na obra de Orwell e que se configura como etnocídio é a tortura de Winston e seu diálogo com O’Brien. Depois de Winston ser apanhado pela polícia do pensamento (ou polícia das ideias), ele é levado ao Ministério do Amor, que tem como característica controlar cada vez mais severamente a população, praticando a tortura como mecanismo de conversão dos indivíduos. Passemos a apresentar as passagens do livro que evidenciam esta prática etnocida.

De início, dentro do Ministério do Amor, O’Brien revela a Winston o motivo pelo qual este foi trazido ao Ministério. Revela que foi para curá-lo e transformá-lo. O’Brien diz[137]:

‘(…) Não! Não é apenas para obter sua confissão nem castigar você. Será que preciso explicar por que o trouxemos para cá? Foi para curá-lo! Para fazer de você uma pessoa equilibrada! Será que é tão difícil assim você entender, Winston, que ninguém sai deste lugar sem estar curado? Não estamos preocupados com aqueles crimes idiotas que você cometeu. O partido não se interessa pelo ato em si: é só o pensamento que nos preocupa. Não nos limitamos a destruir nossos inimigos; nós os transformamos. Entende o que estou querendo dizer?’.

Nesse contexto o etnocídio se evidencia. Se na conquista da América o recurso da violência foi determinante para destruir as religiões indígenas e impor a religião católica, aqui em 1984 tem-se o mesmo método. Não se trata de apenas extirpar a identidade do indivíduo. Deve-se transformá-lo, integrá-lo ao modelo imposto pelo repressor. Tanto na conquista da América quando em 1984, o modelo de violência é semelhante.

Mais adiante no livro, O’Brien expõe sobre eventos passados que não teriam sido frutíferos para os repressores. Como primeiro exemplo ele cita a inquisição. Diz que ela teria sido um fracasso, porque as pessoas morriam e não renunciavam às suas verdadeiras crenças. Por segundo, retrata sobre os totalitários do século XX, dizendo que as confissões das pessoas eram falsas, o que não teria igualmente sido satisfatório. Nesse sentido, O’Brien aduz que o Partido não comete esses erros passados, porque todas as confissões proferidas no Ministério do Amor são verdadeiras. Eles fazem com que sejam verdadeiras. E, sobretudo, não permitem que os mortos se levantem contra eles[138].

Mais adiante, podemos verificar como O’Brien esclarece como a política etnocida do Estado é realizada[139]:

‘Você é uma peça defeituosa, Winston. Uma nódoa a ser limpa. Não acabei de dizer que somos diferentes dos perseguidores do passado? Não nos contentamos com a obediência negativa nem com a submissão mais abjeta. Quando finalmente se render a nós, terá de ser por livre e espontânea vontade. Não destruímos o herege porque ele resiste a nós; enquanto ele se mostrar resistente, jamais o destruiremos. Nós o convertemos, capturamos o âmago de sua mente, remodelamos o herege. Extirpamos dele todo o mal e toda a ilusão; trazemos o indivíduo para o nosso lado, não de forma superficial, mas genuinamente, de corpo e alma. Antes de eliminá-lo, fazemos com que se torne um de nós. É intolerável para nós a existência, em qualquer parte do mundo, de um pensamento incorreto, por mais secreto e impotente que seja. Nem no momento da morte podemos permitir o mínimo desvio. Antigamente, o herege ia para a fogueira ainda herege, proclamando sua heresia, regozijando-se dela. Até a vítima dos expurgos russos tinha permissão pera levar a revolta armazenada no crânio enquanto avançava pelo corredor, à espera da bala. Nós tornamos o cérebro perfeito antes de destroçá-lo. A ordem dos antigos despotismos era: ‘Não farás’. A ordem dos totalitários era: ‘Farás’. Nossa ordem é: ‘És’. Ninguém que seja trazido para este lugar se rebela contra nós. Todos passam por uma lavagem completa’.

Destarte, mostra-se claramente como o etnocídio está presente na obra de Orwell. A conversão é realizada de corpo e alma, o que é característico do etnocídio. O’Brien deixa Winston em um estado no qual não há retorno[140]. ‘Vamos espremê-lo até deixa-lo vazio, e depois o preencheremos conosco mesmos[141]. Em seguida, refere que se o indivíduo atingir a submissão total e completa ao Partido, se conseguir abandonar sua própria identidade, se conseguir fundir-se com o Partido a ponto de ser o Partido, então será todo-poderoso e imortal[142]. No caso, Winston está renunciando à sua liberdade individual para se converter em um membro do Partido, de corpo e alma, sem qualquer resquício de individualidade. A única lealdade será para com o Partido. O único amor será o amor ao Grande Irmão. O único riso será o do triunfo sobre o inimigo derrotado. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência[143].

Em seguida, O’Brien diz a Winston[144]:

‘E lembre-se de que é para sempre. O rosto estará sempre ali para ser pisoteado. Os heréticos, os inimigos da sociedade estarão sempre ali para ser derrotados e humilhados o tempo todo. Tudo o que você tem sofrido desde que caiu em nossas mãos – tudo isso continuará e ficará pior. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos nunca cessarão. Será um mundo de terror, tanto quanto um mundo de triunfo. Quanto mais poderoso for o Partido, menos tolerante será. Quanto mais fraca a oposição, tanto mais severo será o despotismo. Goldstein e suas heresias viverão para sempre. Todos os dias, todos os momentos, eles serão derrotados, desacreditados, ridicularizados. Cuspirão neles – e mesmo assim eles sempre sobreviverão. Este drama em que eu e você estamos atuando há sete anos continuará ocorrendo continuamente, geração após geração, sob formas cada vez mais sutis. Sempre teremos os hereges aqui, à nossa mercê, gritando de dor, alquebrados, desprezíveis – e, por fim, em total penitência, salvos deles próprios, rastejando a nossos pés por livre e espontânea vontade. Esse é o mundo que estamos preparando, Winston. Um mundo de vitória após vitória, triunfo após triunfo: uma sucessão infinita de pressões, pressões, pressões sobre o nervo do poder. Vejo que você está começando a perceber como será esse mundo. Mas no fim você fará mais do que simplesmente entendê-lo. Você o aceitará, ficará contente com ele e fará parte dele’.

Nesse aspecto, O’Brien, quando refere que Winston fará parte deste mundo que o Partido está construindo, está praticando o etnocídio, de forma explícita, ao buscar converter Winston a aderir à ideologia política vigente na Oceania.

Por fim, surge a derradeira prova em que O’Brien executa sobre Winston, onde aquele busca destruir as ideias de liberdade deste e fazer com que este ame o Grande Irmão, outro fato evidente de etnocídio. Não basta obedecer ao Grande Irmão; tem de amá-lo[145] e Winston, finalmente após enfrentar a tortura no Quarto 101, passa a amar o Grande Irmão.

Por derradeiro, temos a conversão de Julia. Não obstante o fato de termos pouquíssimas informações a respeito do caso dela, no diálogo entre Winston e O’Brien fica evidente quando este refere que foi uma “conversão perfeita”[146].

‘O que fizeram com a Julia?’

(…)

‘Ela traiu você, Winston. Imediatamente – incondicionalmente. Raras vezes vi alguém passar para o nosso lado com tamanha presteza. Você mal a reconheceria se a visse. Sua rebeldia, sua astúcia, sua loucura, sua mente suja – tudo foi extraído dela. Foi uma conversão perfeita, um caso para figurar em nossos livros-textos’.

Como fica evidente nesta passagem do livro, Julia é convertida forçadamente à ideologia do Socing, configurando o etnocídio. Trata-se de uma conversão forçada, uma assimilação como a de Winston. Para tanto, temos aqui as três circunstâncias que caracterizam o etnocídio no livro 1984 de Orwell, e como o Estado do Grande Irmão se define como um Estado etnocida por excelência. A seguir, passaremos às considerações finais.

5. Considerações finais

Nestas linhas deste trabalho, expusemos como o etnocídio se concretiza na obra 1984 de Orwell. Para tanto, podemos afirmar que o trabalho proposto se resume em três conclusões:

1) Como o Estado do Grande Irmão é um Estado etnocida por excelência;

2) Como, através da concepção de etnocídio e de ideologia, uma ideologia política pode servir para a prática do etnocídio; e

3) Apontando, a partir do estudo da obra, os fatos que demonstram a prática do etnocídio no regime vigente na Oceania.

Ademais, para se chegar a estas conclusões descritas acima, teve-se de se apresentar primeiramente no que consiste o etnocídio. Sua definição e características foram fundamentais para esclarecer como esta forma de violência opera, para posteriormente relacioná-la com a novela 1984. Por segundo, tivemos que examinar igualmente a concepção de ideologia, a fim de compreender melhor o universo ideológico da obra de Orwell. Tanto a concepção marxista de ideologia, quanto a concepção arendtiana foram importantes para entender o processo da ideologia nos movimentos totalitários, como é o caso de 1984.

Por fim, adentramos na análise da obra, primeiro apresentando a contextualização e a biografia do autor, para posteriormente examinar as características e o teor da mesma. Ao final, apresentamos como a conversão forçada a uma ideologia política pode servir como instrumento para a prática do etnocídio, examinando as passagens do livro em que se destaca este fenômeno.

6. Referências

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[1] Graduado em Direito pela FARGS – Faculdades Rio-Grandenses. Especialista em “Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos”, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisador na área de Direitos Humanos e Direito Penal Internacional, notadamente dos processos de genocídio e etnocídio. Advogado. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5314330486978346>. E-mail para contato:  gjcorreia@gmail.com.

[2] Nesse sentido, vide VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos. Revista Lex Humana, Petrópolis, vol. 3, n. 1, 2011. Disponível em: <http://seer.ucp.br/seer/index.php/LexHumana/article/view/106>. Acesso em: 07 mai. 2019, p. 2.

[3] Ibidem, p. 2.

[4] Ibidem, p. 2. Nesse sentido, para mais informações sobre o tema do poder e da repressão, vide FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Trata-se do estudo de Foucault sobre o problema da guerra, a fundação da sociedade civil e a temática da raça.

[5] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 2.

[6] Ibidem, p. 3.

[7] Ibidem, p. 3.

[8] Ibidem, p. 3.

[9] Ibidem, p. 4.

[10] Ibidem, p. 4.

[11] Ibidem, p. 4.

[12] Ibidem, p. 4.

[13] Cabe ressaltar que o termo genocídio é em grande medida resultado dos trabalhos de Rafael Lemkin, especialista em Direito Penal Internacional. Este autor visualizou duas fases existentes no genocídio – o que podemos transpor para o etnocídio: a destruição dos modelos nacionais dos grupos oprimidos e, mais tarde, a imposição dos padrões nacionais do grupo opressor. Para ele, o genocídio não precisava de uma aniquilação física; era suficiente um programa de destruição cultural. Dado que Lemkin acreditava que a essência de uma nação era sua cultura, a destruição da cultura nacional (através dos ataques a sua religião ou seu idioma) era uma espécie de genocídio. Nesse sentido, vide MORRISON, Wayne. Criminología, civilización y nuevo orden mundial. Barcelona: Anthropos editorial, 2012, p. 88-89; e LEMKIN, Raphael. El domínio del Eje en la Europa ocupada. Buenos Aires: Prometeo libros; Caseros: Universidad Nacional Tres de Febrero, 2009, p. 154.

[14] Ressalte-se que Lemkin defendia a ideia de que haveriam oito técnicas de genocídio: político, social, cultural, econômico, biológico, físico, religioso e moral. Vide NOVIC, Elisa. The concept of cultural genocide – an international law perspective. Oxford: Oxford Univesity Press, 2016, p. 18.

[15] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 4.

[16] Ibidem, p. 5.

[17] Ibidem, p. 5.

[18] Ibidem, p. 5.

[19] Ibidem, p. 5.

[20] Ibidem, p. 5.

[21] Ibidem, p. 5.

[22] Ibidem, p. 6. Para mais informações, vide JAULIN, Robert. La Paz Blanca – Introdución al etnocidio. Buenos Aires: Tiempo Contemporaneo, 1973.

[23] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 6.

[24] Ibidem, p. 6.

[25] Ibidem, p. 6.

[26] Ibidem, p. 6.

[27] Nesse sentido, vide La UNESCO y la lucha contra el etnocidio: declaración de San José, diciembre 1981. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000049951_spa?posInSet=1&queryId=fc90db91-2504-4fd3-9d6b-eff5b4e720c4>. Acesso em: 07 mai. 2019, p. 1.

[28] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 7.

[29] Ibidem, p. 7.

[30] Contudo, conforme se verá na exposição deste estudo, o etnocídio também pode ser praticado mediante a imposição de uma ideologia política, visando exterminar a ideologia política diversa daquela empregada pelo dominador-repressor. Trata-se de um aspecto fundamental da obra 1984, qual seja, o extermínio de ideologias políticas que busquem a liberdade individual, e a imposição do culto e adoração ao Grande Irmão, como se verá adiante neste trabalho.

[31] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 8.

[32] DAVIDSON, Lawrence. Cultural genocide. New Brunswick, New Jersey and London: Rutgers University Press, 2012, p. 17.

[33] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 9.

[34] MORIN, Edgar. Cultura e barbárie europeias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, p. 51.

[35] Cabe ressaltar que no Genocídio Armênio havia um programa de turquificação e islamização dos armênios. O partido no poder (Comitê de União e Progresso) implementou uma política de homogeneização étnica e religiosa, com a imposição da religião muçulmana aos cristãos armênios, dentre outras medidas. Para mais informações, vide AKÇAM, Taner. El crimen de lesa humanidad de los jóvenes turcos – el genocídio armênio y la limpeza étnica en el Imperio Otomano. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016.

[36] VIEIRA, Gustavo José Correia. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos humanos, op. cit., p. 10.

[37] Para mais informações, vide CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

[38] VIEIRA, Gustavo José Correia. Extermínio cultural como violação de direitos humanos: o contexto criminal do etnocídio e seu desenvolvimento no campo do saber jurídico-penal. 2011. 224f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 117.

[39] Ibidem, p. 83.

[40] Trata-se de uma clara medida adotada pelo Estado do Grande Irmão na obra 1984 de George Orwell, como abordaremos posteriormente.

[41] VIEIRA, Gustavo José Correia. Extermínio cultural como violação de direitos humanos: o contexto criminal do etnocídio e seu desenvolvimento no campo do saber jurídico-penal, op. cit., p. 120.

[42] Ibidem, p. 120.

[43] BÁEZ, Fernando. A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010, p. 49.

[44]Nesse sentido, para mais informações sobre a temática da corporalidade e da memória vide VIEIRA, Gustavo José Correia. Crimes contra a humanidade e a perspectiva anamnética da justiça: a relação entre a corporalidade e a memória. Revista Jurídica Unigran, v. 19, n. 37, p. 149-157, 2017. Disponível em: <https://www.unigran.br/revista_juridica/ed_anteriores/37/sumario.php>. Acesso em: 25 jun. 2018.

[45] Pode-se referir que todo poder etnocida busca colocar sua marca no corpo. Este é o receptáculo da vontade de poder de destruir e de estabelecer uma nova identidade, qual seja, a identidade imposta pelo repressor. Para mais informações, vide SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 25-26.

[46] Vide WILL, Karhen Lola Porfirio. Um retrato do genocídio cultural no campo jurídico internacional. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RTrib_n.969.06.PDF>. Acesso em: 11 abr. 2018, p. 02.

[47] JAULIN, Robert. El etnocidio a través de las américas. Madrid: Siglo XXI editores, 1976, p. 333.

[48] ESPARZA, José Javier. El etnocidio contra los pueblos: Mecánica y consecuencias del neo-colonialismo cultural. Disponível em: < http://www.robertexto.com/archivo12/etnocidio.htm>. Acesso em: 08 mai. 2019, p. 1.

[49] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 25.

[50] Ibidem, p. 25.

[51] Ibidem, p. 28.

[52] Ibidem, p. 32.

[53] Ibidem, p. 32.

[54] Ibidem, p. 32-33.

[55] CHAUI, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 117-118.

[56] Ibidem, p. 126.

[57] Ibidem, p. 126.

[58] CHAUI, Marilena. O que é ideologia, op. cit., p. 73.

[59] Ibidem, p. 79.

[60] Ibidem, p. 79-80.

[61] Ibidem, p. 82.

[62] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 2005, p. 150.

[63] Ibidem, p. 150.

[64] Ibidem, p. 150.

[65] Ibidem, p. 151.

[66] Ibidem, p. 151.

[67] Ibidem, p. 151.

[68] Ibidem, p. 151.

[69] Ibidem, p. 151.

[70] SÉMELIN, Jacques, op. cit., p. 60-61.

[71] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 520.

[72] Ibidem, p. 520.

[73] Ibidem, p. 521.

[74] Ibidem, p. 521.

[75] Ibidem, p. 521.

[76] Ibidem, p. 521.

[77] Ibidem, p. 521-522.

[78] Ibidem, p. 522.

[79] Ibidem, p. 522.

[80] Ibidem, p. 523.

[81] Ibidem, p. 523.

[82] Ibidem, p. 523-524.

[83] Ibidem, p. 524.

[84] Discurso de Stálin de 28 de janeiro de 1924. Ibidem, p. 524.

[85] Ibidem, p. 525.

[86] Ibidem, p. 525.

[87] Ibidem, p. 525-526.

[88] Ibidem, p. 526.

[89] MARTÍNEZ, Bárbara Martínez. 1984 y los peligros del totalitarismo. Disponível em: <https://revistas.ucm.es/index.php/RFRM/article/viewFile/55868/50646>. Acesso em: 16 ago. 2018, p. 155.

[90] Ibidem, p. 156.

[91] Ibidem, p. 156.

[92] Ibidem, p. 156.

[93] Ibidem, p. 157.

[94] Ibidem, p. 157.

[95] Ibidem, p. 157.

[96] Ibidem, p. 157.

[97] SANTIAGO, Juan Manuel. 1984, de George Orwell. Disponível em: <http://www.bibliopolis.org/articulo/1984.htm>. Acesso em: 16 ago. 2018, p. 01.

[98] Ibidem, p. 02.

[99] Ibidem, p. 02.

[100] Ibidem, p. 02.

[101] Ibidem, p. 02.

[102] Ibidem, p. 03.

[103] Ibidem, p. 03.

[104] Ibidem, p. 03.

[105] MOISÉS, citado por RONCATTO, Gabriel Muttoni. George Orwell: modernidade e contemporaneidade em 1984. 2011. 59 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 15. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/39424>. Acesso em: 17 ago. 2018.

[106] SANTIAGO, Juan Manuel, op. cit., p. 04.

[107] Ibidem, p. 05.

[108] Ibidem, p. 05.

[109] Ibidem, p. 05.

[110] Ibidem, p. 05.

[111] Ibidem, p. 06.

[112] Ibidem, p. 06.

[113] Ibidem, p. 06.

[114] Ibidem, p. 07.

[115] Ibidem, p. 07.

[116] Ibidem, p. 07. As teletelas são dispositivos televisores existentes nos locais públicos e privados que captam o movimento e o som de todas as pessoas da Oceania.

[117] SANTIAGO, Juan Manuel, op. cit., p. 07.

[118] Ibidem, p. 08.

[119] Ibidem, p. 08.

[120] Ibidem, p. 09.

[121] Ibidem, p. 09.

[122] Ibidem, p. 09.

[123] Pode-se afirmar que o amor (ou o culto e adoração) ao Grande Irmão se configura como uma religião política, ou seja, é aquela que politiza e se apropria de certos elementos religiosos, com o fim de unir os membros de uma sociedade em torno de uma ideologia. Estes seguidores estão guiados por um guia, espiritual e político, que é o máximo expoente de dita ideologia. Nesse sentido, LÓPEZ-ZURIAGA, Eloísa Suárez. Estalinismo y religión política: entre la ficción y los acontecimientos históricos. Disponível em: <https://revistas.uam.es/bajopalabra/article/view/3592>. Acesso em: 08 mai. 2019, p. 166. Para mais informações sobre a questão da religião política, vide ZUO, Jiping. Political Religion: The case of the Cultural Revolution in China. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/261825261_Political_Religion_The_Case_of_the_Cultural_Revolution_in_China>. Acesso em: 08 mai. 2019; MAIER, Hans. Political Religion: a Concept and its Limitations. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14690760601121614>. Acesso em: 08 mai. 2019; e ROGGERO, Franco Savarino. Fascismo y sacralidad: Notas en torno al concepto de “religión política”. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5236234.pdf>. Acesso em: 08 mai. 2019.

[124] SANTIAGO, Juan Manuel, op. cit., p. 09.

[125] Ibidem, p. 09.

[126] Ibidem, p. 09.

[127] Ibidem, p. 09.

[128] Ibidem, p. 10.

[129] Ibidem, p. 10.

[130] Ibidem, p. 11.

[131] Ibidem, p. 11.

[132] Ibidem, p. 11.

[133] Ibidem, p. 11.

[134] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 67-68.

[135] Ibidem, p. 68-69.

[136] Ibidem, p. 348-349.

[137] Ibidem, p. 296-297.

[138] Ibidem, p. 297-298.

[139] Ibidem, p. 298-299.

[140] Ibidem, p. 300.

[141] Ibidem, p. 300.

[142] Ibidem, p. 309.

[143] Ibidem, p. 312.

[144] Ibidem, p. 312-313.

[145] Ibidem, p. 328.

[146] Ibidem, p. 303.

Como citar e referenciar este artigo:
VIEIRA, Gustavo José Correia. Etnocídio e a obra 1984, de George Orwell: a conversão forçada à ideologia política do Estado-repressor. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/etnocidio-e-a-obra-1984-de-george-orwell-a-conversao-forcada-a-ideologia-politica-do-estado-repressor/ Acesso em: 19 abr. 2024