Sociedade

Sexualidade Infantil: sob o olhar da sensibilidade institucionalizada na detecção de abusos sexuais em menores.

 

 

 

Conceitos introdutórios

O termo sexualidade designa a condição de ter sexo, de ser sexuado. Assim, a condição da sexualidade humana é inevitável, inexorável e irremovível. Em nenhum momento de sua existência a pessoa encontra-se isenta de sexualidade. Desde o nascimento, a criança fêmea e a criança-macho passam a receber influências socioculturais através da família (ou instituição que a substitua), ampliando o conceito de sexualidade para o chamado sexo da criação. Assim, passam a existir “meninas” e “meninos” onde havia “fêmeas” e machos” (RIBEIRO, 1993).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a sexualidade humana é parte integrante da responsabilidade de cada um. “A sexualidade não é sinônima de coito e não se limita à presença ou não do orgasmo. É energia que motiva a encontrar o afeto, contato e intimidade, e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas se tocam e são tocadas” (BOLETIM, 2000).

Para Costa (1990), a sexualidade é o conjunto de todos os caracteres morfológicos, internos e externos que os indivíduos apresentam, conforme o sexo que pertence. Assim, a sexualidade tem grande relevância no desenvolvimento e na vida psíquica das pessoas, pois independente da potencialidade reprodutiva relaciona-se com a busca do prazer, necessidade fundamental dos seres humanos.

De acordo com Guimarães:

O homem foi elaborando histórica e culturalmente por um conjunto de posturas em torno do sexo, que fez com que este transcendesse o próprio homem. Surgiram tantas exigências, regras, cerimônias, interdições e permissões que tornaram a atividade sexual um tabu. (1995:23).

Já na teoria de Foucault (1997) pode-se destacar que: “A sexualidade é uma interação social, uma vez que se constitui historicamente a partir de múltiplos discursos sobre sexo, que regulam, normatizam e instauram saberes que produzem verdades”.

Ainda de acordo com Foucault (1984), a palavra sexualidade surgiu no início do século XIX. Em sua obra História da sexualidade: o uso dos prazeres, ele trata da questão da sexualidade na antiguidade, analisando as práticas existentes em torno do sexo na Grécia Antiga (séc. IV A.C.). Para ele, trata-se de compreender como o sujeito é levado a se reconhecer parte de uma sexualidade que se estende a campos do conhecimento diversificados e que se pronuncia em um sistema de regras.

Ao citar a sexualidade, o mesmo autor (1984) faz referência às práticas sexuais, que para os gregos da antiguidade eram positivas. Ainda salientam os afrodisia, que são os atos, gestos, contatos que proporcionam uma forma de prazer. Segundo o autor, o ato sexual está ligado ao prazer, que faz nascer o desejo. Os gregos antigos se preocupavam com a prática da sexualidade, ou seja, os atos e desejos difíceis de serem controlados. Portanto não poderia haver prazer em excesso, havia uma postura moral sobre a sexualidade.

Compreender a sexualidade infantil é ir além do desenvolvimento sexual. É estar atento ao desenvolvimento emocional da criança. Levar em consideração seus desejos, suas necessidades como um todo, assim, faz parte do seu desenvolvimento. O corpo todo é erótico, pois é através dele que a criança possui seu primeiro contato com a natureza, com o mundo. É a partir desse contato com o mundo que a criança possui a sua primeira sensação de prazer. Portanto, o prazer não está só na relação sexual, no ato sexual ou na masturbação. (SILVA, 2007).

De acordo com Khan (2005), Freud compreende a sexualidade infantil como o prazer que as crianças descobrem desde muito pequenas, quando se incumbem de funções corporais necessárias. Freud em suas investigações na prática clínica, sobre as causas e funcionamento das neuroses, descobriu que a maioria dos pensamentos e desejos reprimidos referia-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos indivíduos.

Por fim, pode-se afirmar que o desenvolvimento sexual normal caracteriza-se pela curiosidade e exploração, que deve ser divertida, espontânea e consensual e está inserido num vasto leque de interesses de menores de idade. Por seu desenvolvimento sexual, uma criança sexualmente agredida pode apresentar comportamentos sexuais compulsivos, agressivos, desequilibrados, incluindo atos próprios de adultos. As atividades sexuais são, muitas vezes, dirigidas a crianças mais novas e vulneráveis, não sendo consensuais, mas sim baseadas na força e coerção (SANDERSON, 2005).

Construção teórica

Historicamente podemos observar que a sociedade humana se iniciou com uma proibição ao livre exercício da sexualidade, o tabu do incesto (DOR, 1989). A religião também exerceu e ainda exerce grande influência no comportamento sexual dos indivíduos. Segundo a interpretação da igreja católica sobre a criação do mundo, Adão e Eva foram expulsos do paraíso porque se tornaram sexuados. No paradigma monástico do início da era cristã, todas as pessoas sexuadas eram consideradas pecadoras. Só os monges, que viviam isolados no deserto eram puros.

Na Grécia Antiga, o homem já tinha sua esposa, suas amantes e um jovem que o acompanhava nas guerras. A mulher era um bem de valor sexual e reprodutivo. A sexualidade estava voltada ao grande homem que era merecedor de um jovem companheiro, essa relação era marcada pela amizade, gratidão, lealdade e fidelidade. Com os romanos, houve uma transculturação dos gregos, foram feitas adaptações das leis gregas para unificar o povo conquistado. A orgia fazia parte desse cotidiano, não existiam regras nem limites ao prazer corpóreo (NUNES, 1987).

Já o cristianismo surge, trazendo a castidade como símbolo máximo, aparece para apagar da história o liberalismo sexual romano. José é casto, Maria é virgem e Jesus é o homem livre dos pecados humanos. Na era medieval, o corpo é o pecado. A sexualidade tinha de ser contida e controlada. No final do século VII, tudo sobre sexo é proibido. Sexo é o próprio demônio e deveria ser punido. Todos aqueles que geravam tentação deveriam ser queimados. Essa tortura partiu da Igreja, pois o Estado era subjugado às crenças religiosas (FOUCALT, 1984).

O termo sexualidade surgiu no século XIX, marcando algo diferente do que apenas um remanejamento de vocabulário. O uso dessa palavra foi estabelecido em relação a outros fenômenos, como o desenvolvimento de campos de conhecimento diversos; a instauração de um conjunto de regras e de normas apoiadas em instituições religiosas, judiciais, pedagógicas e médicas. Mudanças do modo pelos quais indivíduos são levados a dar sentido e valor a sua conduta, desejos, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos (FOUCALT, 1998).

A sexualidade é parte integrante da personalidade de cada um, como uma energia motivada a encontrar amor, contato e intimidade, e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas tocam e são tocadas, é ser sensual e sexual. Ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e integrações, portanto, a saúde física e mental (WHO, 2006).

No tocante a sexualidade infantil, que é um processo natural e cultural desenvolvido desde as primeiras experiências afetivas do bebê com a mãe, o respeito à manifestação da sexualidade é um direito da criança. Cabe ao adulto assegurar esse direito, permitindo que ela vivencie e conheça as atividades sexuais próprias da idade (RIBEIRO, 2009).

Freud, em sua teoria da sexualidade, descreve a sexualidade infantil presente desde a mais tenra infância, contrariando a opinião popular que pensava a sexualidade estar “ausente na infância e só desperta no período da vida designado de puberdade”. Para Freud, a sexualidade é infantil e o inconsciente atemporal (FREUD, 1905).

Freud afirma que, desde o início da vida, há uma função sexual, tendo a sexualidade papel importante desde o nascimento e que a libido é a energia das pulsões sexuais. Há erotização do corpo desde o princípio da vida deste; existindo, dessa maneira, um desenvolvimento gradual no progresso referente às formas de bonificação e de relação com determinado objeto.

As fases sexuais podem ser definidas da seguinte forma ((FREUD, 1905):

• Fase oral (0 a 2 anos): A ação de ingestão do alimento e a excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal proporcionam o prazer nessa fase, fazendo com que o alvo sexual esteja na incorporação do objeto.

• Fase anal (entre 2 a 4 anos, aproximadamente): O prazer está ligado ao controle dos esfíncteres (anal e uretral); assim a zona erógena é o ânus e o modo de relação do objeto é de “ativo” e “passivo”.

• Fase fálica (de 3 a 6 anos): A erotização está no órgão sexual. A distinção que marca a oposição fálico-castrado, substituta do par atividade-passividade, é o interesse que o menino possui pelo próprio pênis em confronto à descoberta da ausência deste órgão na menina, para a qual tal verificação motiva o aparecimento da “inveja do pênis” e o consequente ressentimento em relação à mãe por esta não lhe ter dado esse órgão. Assim é caracterizado o período de latência, que se estende até a puberdade e, nesse tempo, há sublimação total ou parcial das atividades das pulsões sexuais.

• Fase Genital – A última fase atinge-se na adolescência, em razão de o objeto desejado estar no outro e não mais no próprio corpo; existindo uma busca de satisfação erótica e interpessoal.

Entretanto, a sexualidade não existia no período infantil por causa da falta de maturação do menor de idade, nesse sentido o mesmo não teria capacidade de atuar sexualmente.

A atitude de negação da sexualidade infantil, imposta pela sociedade, contribui fortemente para a dificuldade na observação de comportamentos sexuais em crianças. Este fato, somado com as inerentes questões éticas, limitam a realização de estudos na área. Deste modo, muitos dados científicos são de estudos retrospectivos sobre a vivência da sexualidade infantil, com os seus naturais enviesamentos e limitações amnésicas (FÁVERO, 2003).

Lacan em seu retorno a Freud afirma:

Não ver que a sexualidade está aí, na jovem criança, desde a origem, e mesmo, ainda muito mais, durante a fase que precede o período de latência, é ir ao sentido contrário a toda aspiração e descobertas freudianas (LACAN, 1995).

Nas civilizações primitivas, segundo Freud (1913), a primeira escolha de objeto para amar, entre crianças e adolescentes, deveria ser incestuosa. O referido autor também afirma que o desejo original de fazer a coisa proibida persistia, em qualquer dos clãs. Freud descreve que, inconscientemente, nesses clãs, não existia nada que mais gostassem de fazer do que violar os menores de idade, porém temiam fazê-lo; temiam precisamente porque gostariam, e o medo era mais forte que o desejo. O desejo era inconsciente, embora em cada membro individual da tribo.

Assim, Freud afirma que:

Para a psicanálise não existia uma aversão inata às relações incestuosas. Os primeiros desejos sexuais humanos foram sempre de natureza incestuosa e estes desejos reprimidos desempenhavam um papel muito importante como causa das neuroses posteriores.

A esta prática pode-se pensar a ideia de que a criança ou adolescente era um objeto ou propriedade para o adulto e não um sujeito dotado de desejos, vontades e direitos. Segundo Freud (1913), para as duas primeiras relações parentais, as normas legais de cuidados existiam desde as mais remotas eras, antes mesmo das leis. Estas consistiam em dois princípios fundamentais, que sempre regiam a convivência entre as pessoas – a proibição do canibalismo e a proibição do incesto. Freud conferiu um lugar privilegiado à sexualidade na constituição do sujeito, e tal é a sua importância, que ela está na base das perturbações psíquicas.

A descoberta da infância somente começou no século XIII, contudo ainda não existiam crianças com suas características próprias, para que se pudesse falar do que era ser criança. A evolução da infância pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia também nos séculos seguintes, XV e XVI. Durante os séculos XIV e XV, pela representação da arte e da iconografia, a criança começou a ficar mais nítida, apesar de estar ainda em segundo plano, ou seja, ainda não aparecem sozinhas, mostrando forte mistura das crianças com os adultos. Surgem, então, os anjos adolescentes: os anjos de Angélico, de Botticelli e de Ghirlandajo (ARIÈS, 1981).

O mesmo autor também afirma que, é a partir do século XVIII que se desenvolve o que ele chama de “sentimento da infância”. Enquanto na Idade Média a passagem da criança pela vida e pela sociedade era desconsiderada e sem valor, na era Moderna houve uma valorização do mundo infantil, e a atenção voltou-se para ela, privilegiando-a. No século XIX, o homem passou a ser definido como sujeito da sexualidade e, pode-se dizer que, mediante colaboração de Freud, de suas teorias e casos clínicos, que esta definição perpetua-se até hoje.

Em 1990, o Guia Escolar (2001) cita que a violência sexual contra crianças e adolescentes foram incluída na agenda pública da sociedade civil como questão relacionada com a luta nacional e internacional pelos direitos humanos, preconizados na Constituição Federal Brasileira de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. Em abril de 1993, o Congresso Nacional respondeu com a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a apurar responsabilidades pela exploração e prostituição infanto-juvenil – a CPI da Prostituição Infantil. Participaram dessa discussão e da elaboração do Plano Nacional, representantes do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, de órgãos dos executivos federal, estaduais e municipais, de ONGs brasileiras e internacionais, assim como representantes juvenis e integrantes dos conselhos tutelares e do meio acadêmico. O Plano Nacional foi aprovado na Assembleia Ordinária do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente – CONANDA – em 12 de julho de 2000.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o abuso sexual infantil é considerado um dos maiores problemas de saúde pública. Estudos realizados em diferentes partes do mundo sugerem que 7-36% das meninas e 3-29% dos meninos sofreram abuso sexual (WHO, 2003). As estatísticas, portanto, não são dados absolutos. Trabalha-se com um fenômeno que é encoberto por segredo, um “muro de silêncio”, do qual fazem parte os familiares, vizinhos e, algumas vezes, os próprios profissionais que atendem as crianças vítimas de violência (BRAUN, 2002).

Assim, buscou-se refletir, com base na história, sobre o abuso sexual com crianças e a sua sexualidade, presente desde sempre. Observou-se como a prática de maus tratos com a criança e adolescente, incorporada ao cotidiano desde os tempos mais remotos, assumiu várias máscaras, sendo vista em certos momentos até mesmo como uma prática habitual. Com o advento da psicanálise, tornar-se imprescindível a construção de identidades que não sejam a de vítima de abuso sexual, fazendo o sujeito sair da posição de objeto e colocando-o como responsável pela causa de seu desejo.

A violência é um fenômeno social global, considerando-se como um problema de saúde pública que perpassa as diferentes classes sociais, culturas, relações de gênero, raça e etnia. As relações interpessoais são situações em que pode ocorrer violência, caracterizando-se a violência interpessoal.

Concernente à violência de gênero, sabe-se que mesmo em suas modalidades intrafamiliares e domésticas, é proveniente de uma organização social de gênero que privilegia o masculino (SAFFIOTI, 1999). Num estudo recente da OMS (2005), o qual envolveu múltiplos países, foram entrevistadas mais de 24.000 mulheres em 10 países: Bangladesh, Brasil, Etiópia, Japão, Peru, Namíbia, Samoa, Iugoslávia, Tailândia, e República Unida da Tanzânia. Foi-lhes perguntado se elas haviam sido tocadas sexualmente por alguém ou se haviam sido forçadas a fazer algo de natureza sexual contra a sua vontade antes dos 15 anos de idade. Na verdade, pelo menos metade de todas as mulheres em Bangladesh, na província da Etiópia, Peru, Samoa, e a República Unida da Tanzânia, disse que tinham sido atacadas fisicamente ou sexualmente desde essa idade. Em geral, a grande maioria dessa violência foi praticada por um parceiro íntimo. Apenas em Samoa as mulheres possuíam menor risco de violência advinda por seu marido ou parceiro íntimo, comparada a estranhos ou outras pessoas conhecidas. Assim sendo, a violência física e sexual por parceiros, possui uma variação, indo de 15% na cidade japonesa a 71% na província da Etiópia. De acordo com a OMS, os dados são consistentes com estudos semelhantes em países industrializados, e desafia a percepção comum de que o lar é um lugar de segurança ou de refúgio para mulheres.

Assim, constata-se então que os níveis de violência notificados nos diversos países diferem consideravelmente. Além disso, em países onde as grandes cidades e as configurações provinciais foram estudadas, os níveis globais de violência por parceiro íntimo foram sempre superiores nas configurações da província, que tinham populações mais rurais, que nas áreas urbanas, segundo a OMS (2005).

Em adição, identificou-se que a violência física por parceiro é quase sempre acompanhada de violência sexual, mas em algumas situações (especialmente em Bangladesh, na província da Etiópia e Tailândia), uma parte considerável de mulheres sofreu violência sexual exclusivamente por parceiro íntimo. No nível individual, foi encontrada uma série de semelhanças nos padrões de violência por parte dos parceiros. Geralmente, as mulheres que eram separadas/divorciadas e que viviam com um parceiro masculino sem serem casadas relataram uma maior prevalência de violência física ou sexual, ou ambas, por um parceiro íntimo (OMS, 2005).

Como agravante, em algumas circunstâncias, as meninas são vistas como cúmplice em casos de violência sexual e são responsabilizadas pelo ato sexual, seja forçado, violento ou não, em vez de seus agressores. Em alguns países, se o agressor negar o ato e não houver testemunhas, uma menina com mais de 12 anos de idade pode ser severamente punida por um estupro e outros tipos de agressão sexual (LANDINI, 2003).

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF), nos países industrializados, 5% a 10% das crianças são vítimas de abusos sexuais com penetração. A UNICEF concluiu ainda que nos países mais ricos, todos os anos, pelo menos 4% das crianças sofrem de maus- tratos físicos. Por seu lado, uma criança em cada dez é vitima de negligência ou de maus-tratos psicológicos. O documento também aponta que, em todo o mundo, duas em cada três crianças são alvos de abusos corporais e todos os anos são mais de 500 milhões os casos que se tornam conhecidos.

Vários fatores colaboram para os baixos índices de notificação em todo o mundo. Dentre eles, Santos (1992) aponta a falta de conscientização social, o desconhecimento das atitudes a serem tomadas diante dos casos, medo de revanchismo e temor de transtornos legais ou acusação de falsa denúncia. No Brasil, até a presente data não foram realizados estudos para estimar a prevalência e a incidência do abuso sexual no país como um todo. No entanto, na última década, várias fontes revelaram que o problema tem presença marcante na nossa sociedade.

Conforme o Instituto Promundo e Noos, 51,4 % dos homens entrevistados afirmou ter praticado algum tipo de violência (física, sexual ou psicológica), sendo que 17% relataram ter forçado a companheira à prática sexual, compararam a companheira com outras mulheres, ridicularizaram o corpo e/ou desempenho sexual da companheira, praticaram violência psicológica para conduzi-la à prática sexual (SOUZA; ADESSE, 2004).

É notável a existência de poucos estudos no Brasil sobre esta temática. O presente estudo informa que a pesquisadora desconhece a proporção real de crianças afetadas pelo abuso e bem como os fatores associados à sua ocorrência. Algumas fontes de dados disponíveis referem-se às informações coletadas nos serviços que atendem crianças nesta situação: a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), o Programa de Atenção à Vítima de Abuso Sexual (PAVAS), o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância de Campinas (CRAMI-Campinas), o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD (CRAMIABCD) e o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), entre outras.

A detecção de ocorrências, por parte dos serviços, depende de um grande número de fatores, tais como: presença e gravidade de lesões resultantes do abuso; circunstâncias familiares e comunitárias que bloqueiem a comunicação; visibilidade da instituição e a sensibilidade de profissionais da saúde e da educação para a detecção de abusos, entre outros. A utilização científica de dados dos serviços é restrita, já que a literatura internacional indica que somente 3% dos casos são reportados (LEVENTHAL, 1998).

Como bem observaram Leal & César (1998), compreender e enfrentar o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes é um desafio para pesquisadores e profissionais. Isto porque requer a articulação das dimensões conceituais com as operacionais, das qualitativas com as quantitativas e das pesquisas observacionais com as de intervenção.

De fato, a política nacional que traça as diretrizes para a atuação do setor saúde na questão da violência no Brasil também reconhece o abuso sexual como uma questão peculiar, ao destacar a necessidade da “criação de eventos específicos para a discussão de questões polêmicas como o atendimento, encaminhamento e acompanhamento de vítimas de abuso sexual” (BRASIL, 2001).

Em decorrência, todas as normas penais, como mecanismo de controle da convivência social, devem ter limites precisos, marcados pelo reconhecimento da liberdade humana e, em geral, dos direitos fundamentais, sob pena de ineficácia, posto que sem fundamentação legal (art. 224, Código Penal).

É inegável a ocorrência de uma revolução sexual, nos últimos anos, que determinou profundas modificações nos padrões sexuais comportamentais das crianças e adolescentes e que influiu decisivamente para o alcance de uma maturidade sexual precoce por parte desses. Nesse sentido, a negação da capacidade de autodeterminação sexual estabelecida no art. 224 do Código Penal (CP), de forma irrestrita, a toda pessoa menor de 16 anos de idade, se mostra afastada do momento histórico-cultural experimentado, merecendo séria reflexão. A subtração ao adolescente do direito de exercer sua sexualidade, por não ter ainda alcançado a idade fixada por lei, foi imposta por concepções morais dominantes na sociedade.

Com o início de vigência do Código Penal de 1890, a quase unanimidade dos doutrinadores tendeu para o entendimento de ser a presunção em matéria sexual indiscutível, houvesse ou não consentimento da vítima, conhecesse ou não a idade desta na data do fato, sob a alegação de que a lei considerava o menor até a idade de 16 anos como incapaz de consentir livremente. Assim, seria inadmissível qualquer indagação acerca de sua honestidade e bons costumes.

Enfim, defendia-se que o consentimento do menor seria sempre juridicamente irrelevante, mesmo que tivesse desenvolvimento físico e mental superior a sua idade, ainda que de sua parte a iniciativa ou mesmo provocação para o ato sexual, sob o argumento de que a idade de 16 anos fazia parte do tipo e que as outras duas situações do art. 224, do CP, configuravam casos de presunção relativa, pelos seus próprios enunciados, o que não ocorria com a situação dos menores.

Tendo como perspectiva a prevenção de situações sociais de risco, a política preventiva implica na conscientização e mobilização da sociedade, em relação à proteção integral a que têm direito as crianças e adolescentes brasileiros (BRASIL, 1990).

O adolescente tem direito à educação sexual, ao acesso à informação sobre contracepção, ao sigilo sobre sua atividade sexual e sobre a prescrição de métodos anticoncepcionais, a optar por procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou profiláticos e de assumir o seu tratamento. Os pais ou responsáveis somente serão informados sobre o conteúdo das consultas com o consentimento do adolescente (BRASIL, 2006).

A educação sexual deve ser integrada na educação cujo objetivo é a pessoa, o respeito, e certamente não separada de tudo isto e reduzida apenas a uma educação sobre a anatomia, por um lado, e a funcionalidade do órgão por outro. Os programas de prevenção do abuso sexual de menores a implementar nas escolas devem inserir-se nos programas de educação sexual ou nos programas de promoção para a saúde (ANDREOLI, 1998).

O conteúdo foi estruturado de acordo com as três modalidades de prevenção de maus-tratos sugeridas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) das Nações Unidas: primária, secundária e terciária. A prevenção primária tem por objetivo por eliminar ou reduzir os fatores sociais, culturais e ambientais que propiciam os maus-tratos (SANTOS; IPPOLITO, 2004).

As ações propostas buscam atingir as causas da violência sexual juntamente com a implementação de políticas sociais básicas, destacam-se aqui as ações educativas devem ser dirigidas a toda população, grupos de mães, pais, adolescentes, escolas e igrejas de todos os credos (SANTOS; IPPOLITO, 2004).

Ações voltadas para a prevenção da violência (BRASIL, 2006):

· Intensificar parcerias interinstitucionais e intergovernamentais e com a sociedade civil organizada, para a implantação e implementação de ações articuladas de promoção da cultura da paz, prevenção da violência, assistência e proteção a adolescentes vítimas de violência.

· Fomentar a organização de Espaços Jovens, estimulando a participação comunitária e juvenil.

· Estimular a organização de pactos comunitários contra a violência intrafamiliar visando a não-legitimação institucional e social da violência, o empoderamento dos setores mais vulneráveis da comunidade, a valorização do papel comunitário na resolução de conflitos sem violência, acordando metas e valores coletivos.

· Reorganizar serviços de assistência às vítimas de violência, com as respectivas referencias e contra referências.

· Garantir a contracepção de emergência e a profilaxia das DST/AIDS em todos os serviços que atendam adolescentes vítimas de violência sexual.

· Garantir o apoio psicológico e social e o direito legal à interrupção da gravidez de adolescentes que sofreram violência sexual, caso seja a sua decisão pessoal. Garantir, também, os direitos daquelas que decidirem levar a gravidez adiante, com acompanhamento especificam e apoio psicológico e social, no pré-natal e no puerpério.

· Capacitar as equipes de saúde da família para orientarem as famílias, com ênfase na realização de ações educativas, sobre os fatores intervenientes na violência, para identificarem fatores de risco e para prevenção da violência contra crianças e adolescentes.

· Humanizar as práticas terapêuticas no atendimento de adolescentes no pré-natal, parto e nascimento, incentivando a presença dos parceiros nessas ações, para fortalecimento do vínculo da mãe e/ou pai com o bebê, como medida preventiva contra violência intrafamiliar.

· Esclarecer e fortalecer como dever profissional a denúncia da violência, cabendo lembrar que esta é obrigatória por parte do serviço de saúde e que deve ser encaminhada às Varas de Infância e Juventude e/ou Conselhos Tutelares.

Simultaneamente, devem-se desenvolver ações que visem a responsabilização do abusador e assistência a lhe ser prestada, contribuindo para quebrar o ciclo de impunidade e, consequentemente, o ciclo do abuso sexual (BRASIL, 2006).

Discussão final

A educação sexual deve ser integrada na educação cujo objetivo é a pessoa, o respeito, e certamente não separada de tudo isto e reduzida apenas a uma educação sobre a anatomia, por um lado, e a funcionalidade do órgão por outro.

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno complexo, envolvendo questões jurídicas, psicológicas, sociais para compreender as múltiplas facetas do abuso.

Já que a violência sexual constituir-se como uma violação de quase todos os direitos fundamentais, não adianta apenas se procurar punir o autor do fato delituoso para que se apaguem todos os traumas de uma situação de abuso. É sabido que as vivências abusivas tornam a mente e o corpo desprovidos de investimentos. A vida pode propiciar ao indivíduo vitimado experiências restauradoras que permitam que ele possa tornar-se sujeito do desejo e do fazer desenvolvendo o potencial criativo do seu ser, de modo que as marcas do passado deixem de pesar e de obstaculizar as vivências do presente e as perspectivas do futuro.

Por fim, buscar-se-á uma reflexão a respeito dos que se deparam e prestam assistência às vítimas de abuso sexual, que devem ser incentivados a serem profissionais mais sensíveis e “humanos”. Estes devem buscar uma maior integração e aproximação com as vítimas, respeitar a individualidade de cada caso e seu sigilo, como também estimular a resiliência nas mesmas.

Há necessidade de mais pesquisa sobre o abuso sexual contra menores (crianças e adolescentes): prevalência, incidência, desdobramentos legais e consequências para a vida futura da vítimas. Devem ser criados e mantidos equipes multidisciplinares, capazes de lidar com os diversos aspectos do problema.

 

Referências

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SILVA, L. O estranhamento causado pela deficiência: preconceit

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DONATO, Fabiana Juvêncio Aguiar. Sexualidade Infantil: sob o olhar da sensibilidade institucionalizada na detecção de abusos sexuais em menores.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2013. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/sexualidade-infantil-sob-o-olhar-da-sensibilidade-institucionalizada-na-deteccao-de-abusos-sexuais-em-menores/ Acesso em: 28 mar. 2024