Sociedade

Violência e cidadania

Violência e cidadania

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Todos sabem que a finalidade primordial do Estado é assegurar a paz social, para garantir a felicidade do cidadão. O atendimento dessa função tem por norte a Constituição Federal, que, consagrando princípios e garantias, indica as diretrizes da vida em sociedade. A ordem é estabelecida por regras jurídicas, a serem espontaneamente respeitadas por todos. Para assegurar o cumprimento da lei, são cominadas sanções em caso de inadimplemento.

 

Na hipótese de descumprimento dessas verdadeiras pautas de conduta, surge o dever do Estado de recompor a harmonia social, pois detém o monopólio da jurisdição, reservando-se a exclusividade da aplicação do Direito.

 

Ainda que, em escassas hipóteses, a lei delegue ao cidadão o direito de proteger-se, é vedada a justiça de mão própria. Não é autorizada a autotutela, havendo limitações à segurança privada. É proibida a prática de quaisquer atividades substitutivas divorciadas do aparato estatal.

 

Na busca de soluções para combater a maior chaga de nossa sociedade, a violência, descabido que se fique comodamente apontando as dificuldades existentes.

 

Dentro da clássica divisão dos Poderes, cada um deles deve garantir primordialmente a qualidade de vida do cidadão. Assim, é necessário definir competências e identificar responsabilidades para o desempenho do papel de garantidor da cidadania.

 

Cabe reclamar do Executivo que melhore a infra-estrutura material e humana das polícias, para assegurar um aparato apto a garantir a aplicação da lei penal. Quer mediante o aparelhamento dos órgãos encarregados da segurança pública, quer por meio da adequada estruturação dos estabelecimentos carcerários, mister que o aprisionamento possa atender à finalidade ressocializante dos apenados.

 

De outro lado, há que se promover uma reforma legislativa, não se mostrando suficiente a mera exacerbação das penas, como forma de coibir a violência. Certamente, não é com a pena de morte ou com a severidade exagerada das leis penais ou por meio da supressão das garantias dos apenados que se vai exercer o controle social. A despropositada reação punitiva, que se verifica, por exemplo, nos chamados crimes hediondos ou na impossibilidade de concessão de fiança nos crimes contra a fauna, resta por constranger os magistrados, que, por vezes, relutam em sua aplicação e, para evitar medidas injustas, acabam por gerar decisões inclusive contrárias à lei.

 

Havendo a consciência de que a pena privativa de liberdade, como sanção principal, não leva à readaptação do delinqüente, é necessário encontrar soluções criativas, como a pena alternativa de prestação de serviços, com saliente caráter educativo. Imperiosa a generalização de medidas socioeducativas, como a liberdade assistida, que estão previstas exclusivamente no Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Finalmente, cabe exigir celeridade e eficiência do Judiciário, a evitar a impunidade pelo advento da prescrição. Mister atentar em um dado: 70% dos processos que tramitam na Justiça envolvem infrações penais de gravidade mínima. Tal dificulta um tratamento mais cuidadoso dos delitos de maior lesividade, impedindo a redução do prazo da instrução e a condenação em tempo mais abreviado, para tornar certa a punição.

 

A ausência de uma resposta imediata leva à certeza da impunidade e à descrença da população na repressão dos ilícitos, perpetrados cada vez com mais freqüência e maior violência. Mas não basta apontar falhas sem ver que, muitas vezes, os embaraços advêm do exacerbado formalismo da própria estrutura processual e da verdadeira sacralização do direito de defesa, como, por exemplo, a obrigatória suspensão do processo enquanto o réu se encontra foragido.

 

Por tudo isso, indispensável que se volte a sociedade à atividade de prevenção à criminalidade difusa, que tem levado ao incremento assustador da violência no meio social, em todos os seus níveis. Para essa importante missão, há que apelar ao cidadão, conscientizando-o de sua indelegável tarefa de não ser um agente multiplicador da violência.

 

É chegada a hora de erradicar a violência doméstica, acabando com o sentimento de superioridade masculina, decorrente do ranço preconceituoso da hierarquização da família. O reconhecimento da existência de um poder punitivo patriarcal chancela a agressão física à mulher e aos filhos.

 

Imperioso também conscientizar a sociedade da necessidade de sua efetiva participação, seja preservando o sigilo do comunicante, seja criando mecanismos que prestem informações, dêem orientações e tomem as providências necessárias de forma imediata a toda e qualquer denúncia.

 

Descabe considerar função privativa dos órgãos públicos a tutela dos valores primordiais da convivência humana, a ser levada a efeito exclusivamente pelo Estado, que se quer cada vez menos intervencionista.

 

Se, por um lado, a função punitiva em face do desrespeito à lei é monopólio estatal, sua prevenção compete ao cidadão. E é nessa sede que se há de conjugar as expressões violência e cidadania e vê-las como sinônimas, e não antônimas.

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

                                                                                     

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Violência e cidadania. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/violencia-e-cidadania/ Acesso em: 19 abr. 2024