Sociedade

Quando a gramática torna-se dramática

 

Confesso que me senti perplexo, horrorizado e indignado com a publicação do livro didático do MEC da professora Heloísa Ramos intitulado – sem nenhuma intenção irônica – Por Um Mundo Melhor. Trata-se de um livro de Português distribuído para 500.000 alunos da rede pública de ensino.

 

Entre outras coisas, o referido compêndio acha perfeitamente aceitáveis erros de concordância tais como: “A gente fomos ao cinema”; “Os livro está em cima da mesa”, etc., sob a alegação de que se o povo fala assim, deve escrever assim. Além disso, aqueles que procedem desse modo não devem ser corrigidos por quem fala corretamente, pois tal coisa não passa de mero preconceito lingüístico-classista dos que cultuam a chamada “norma culta”. Por que não a inculta?

 

É como dizia um parente meu lá dos verdes pagos, índio velho, montado em seu pingo manero e pitando seu cigarro de palha: “Barbaridade, tchê! Eu ainda não vivi bastante para ver tudo!”.

 

Num país em que um Presidente da República agredia a gramática a socos e pontapés e, não obstante, orgulhava-se de seu atroz despreparo, não causa espécie nem gênero que uma professora escreva um despautério dessa natureza, o que me deixa de cabelos em pé é o MEC publicar essa espécie de subliteratura para ser usada como material didático nas escolas públicas – um verdadeiro insulto àqueles que se esforçam tanto, para que crianças e adolescentes aprendam a se expressar corretamente!

 

Ainda pretendo dizer mais coisas sobre esse crime pedagógico cometido pelo MEC, mas, antes de fazer isso, acho conveniente dizer alguma coisa sobre a relação entre a língua falada e a escrita. Não se trata evidentemente de duas línguas stricto sensu, porém de dois aspectos da mesma coisa.

 

Nada sabemos sobre a origem da linguagem. Isto é coisa que se perde na noite dos tempos. No século XIX, ainda eram levantadas várias hipóteses, porém a carência de dados as transformaram em mera especulação carente de embasamento capaz de torná-las hipóteses heurísticas.

 

Não obstante esse impasse, sabemos que a linguagem falada antecedeu historicamente a escrita – só mesmo o filósofo pós-moderno Jacques Derrida põe em dúvida essa evidência histórica. No entanto, origem da língua escrita não é proveniente de um só, porém de vários lugares bastante afastados um dos outros.

 

As primeiras formas de escrita surgiram na China – uma escrita pictográfica que se transformou em ideogramática; na Suméria, com uma escrita cuneiforme e no Egito, com a escrita hieroglífica decifrada no século XIX por Champolion.

 

É equivocado supor que nessas três primeiras formas, a linguagem escrita era um meio de comunicação verbal acessível a todos os falantes quando, na realidade, era um privilégio restrito um grupo ou classe social.

 

Na China, só se dedicavam à escrita a classe dos mandarins e no Egito um grupo de funcionários especializados a serviço dos faraós: os escribas. Não só a escrita era um privilégio de poucos, como também só se gravava em pedra, tijolos de argila, papiros, etc. assuntos relacionados com os deuses e/ou com dinastias e feitos notáveis dos governantes.

 

Mesmo assim, tratava-se de uma história seletiva, se é que podemos dizer assim em uma analogia com a conhecida “memória seletiva”, ou seja: As mancadas e as derrotas militares dos governantes eram espertamente omitidas. Akhnaton e Ramsés III que o digam.

 

A palavra “hieróglifo” é uma evidência do caráter sagrado da escrita, pois em grego hieroglyphikós quer dizer: “escritura sagrada”. Reforça isto, o fato de o chinês mandarim ser escrito em sentido vertical e de cima para baixo, como se fosse uma revelação dos excelsos deuses aos míseros mortais.

 

Além disso, não se tratava de escritas moldadas na língua falada em que letras correspondem a fonemas. Os ideogramas chineses não representam fonemas, mas sim imagens estilizadas de coisas e de ideias.

 

 Por exemplo: o sol atrás de uma árvore quer dizer “sol nascente” e, por extensão: “lugar do sol nascente”, “oriente”. Um ideograma quer dizer “mulher”, dois ideogramas do mesmo tipo quer dizer: “mexerico”, e três: “confusão”.

 

Se depararmos com um ideograma para “mulher” encimado por outro para “telhado”, entenderemos prima facie a representação de “mulher dentro de casa”, e isto quer dizer: “paz”. Há a insinuação sutil de que quando a mulher está em casa há paz, mas quando ela sai de casa a paz acaba. E isto é o mesmo que dizer que o lugar da mulher é no tanque e no fogão, para o inenarrável horror de nossas feministas modernas. Mas que fazer se os antigos chineses, a igual exemplo de outros povos patriarcais, eram de fato machistas?!

 

O grande passo para a dessacralização e a popularização da escrita foi dado pelos fenícios. É preciso saber que, diferentemente de uma teocracia como o Egito e de formas de governo autoritárias como a da China e da Suméria, a Fenícia era um pouco diferente.

 

Povo de grandes navegadores e comerciantes cujo lema era: “Navegamos para comerciar e ver” (Entenda-se: “conhecer outras terras”), os fenícios foram os inventores do alfabeto ou ao menos de um tipo de alfabeto que foi a origem dos alfabetos grego, hebraico e latino.  Da letra fenícia “a” (álif) veio o hebraico áleph e o grego alpha e, por extensão, o alfabeto (neologismo composto das duas primeira letras gregas alfa e beta) que usamos atualmente.

 

Não saberíamos dizer se eles criaram a própria escrita alfabética com base nos fonemas, pois o alfabeto sânscrito – em que as letras também foram criadas em correspondência com os sons da língua falada – foi criado na Índia e não estamos certos se ele é mais antigo ou menos antigo do que o fenício.

 

Importa saber que mesmo nas línguas do grande tronco indoeuropeu (latim, grego, germânico antigo, eslavo antigo etc) e suas derivadas (neolatinas, neogermânicas, neoeslavas, etc.) há escritas mais próximas da língua falada (russo, italiano, espanhol, etc) e mais distantes (francês, inglês). Por exemplo, em francês escreve-se “eau”(água), mas se lê “ô”; em inglês escreve-se Worcestershire sauce, mas se pronuncia “uústechê sóss”, o tradicional “molho inglês”.

 

Creio que esse grande distanciamento da linguagem falada da escrita deveu-se à influência de dialetos celtas, tanto em francês como em inglês. Mas mesmo em escritas bastante próximas da língua falada, como é o caso do espanhol e do alemão, observa-se uma tendência compreensível, mas não justificável, de seus usuários escreverem tal qual falam. Chamada de foneticismo, a referida tendência pode ser observada em pessoas  semialfabetizadas ou recentemente alfabetizadas.

 

 Mas que importância tem uma pessoa escrever “kilo” e não “quilo”, tal qual está escrito Comida à Kilo (e com crase!) em letreiro luminoso num restaurante em frente do antigo prédio da Academia Brasileira de Letras? Se o leitor não acredita em mim, vá lá, faça a constatação e depois conclua comigo: o Brasil é mesmo um país de fortíssimos contrastes!

 

Que importância tem escrever “xuxu” e não “chuchu”; “assucar” e não “açúcar”, uma vez que a compreensão daquilo que foi escrito não é prejudicada; uma vez que entendemos perfeitamente do que se trata?

 

Ocorre que em determinados casos a mudança da forma ortográfica pode acarretar uma mudança de significado. Por exemplo: quando escrevemos “acento”, estamos nos referindo a um sinal indicativo da sílaba tônica e/ou de uma vogal aguda ou grave, mas quando escrevemos “assento”, estamos nos referindo a uma coisa para sentar. Quando escrevemos “caçar”, estamos nos referindo à atividade do caçador, mas quando escrevemos “cassar”, estamos nos referindo à atividade de quem cassa um mandato. Os que não são desmemoriados ainda se lembram do “Caçador de Marajás” que acabou sendo cassado pelos próprios.

 

Esta é uma das razões pelas quais a gramática estabelece a forma ortográfica de uma língua. Ortografia é a parte da gramática que estabelece a grafia correta (do grego: ortho: “correto” + graphia: “escrita”). Mas a razão de ser mais importante da ortografia é a de controlar o uso das formas corretas de escrita das palavras, para que não seja gerado um caos de formas alternativas capaz de prejudicar gravemente a boa comunicação dos usuários de uma língua.  Será que há quem deseje isso? Há sim: a professora Heloísa Ramos, que em sua defesa pode até dizer: “Sou só eu?  E o MEC?”

 

Sabemos que as línguas neolatinas tiveram sua origem no latim. Esta era a língua falada em Roma e em todas as províncias do Império Romano. É interessante notar que quanto mais distantes da capital do Império, mais diferentes do latim se transformaram as línguas.

 

Compare-se, por exemplo, o italiano com o francês e com o romeno. O toscano – dialeto em que Dante escreveu A Divina Comédia e que se tornou modelo para o italiano moderno – é a língua mais próxima do latim; o francês moderno (langue d’oïr, não langue d’oc) se encontra mais distante, e o romeno – falado na longínqua província da Romênia – ainda possui muitas palavras semelhantes às da língua latina. O próprio nome “Romênia” ou “Rumânia” evidencia sua derivação de “Romano”.

 

A distância de Roma e a ausência de escolas públicas fizeram com que pouca gente fosse alfabetizada e o resultado foi a difusão do latim, que se transformou em várias línguas. Se não tivéssemos alfabetização em massa, se não tivéssemos jornais, revistas e livros resguardando a língua escrita, correríamos o risco de as línguas neolatinas se desdobrarem em novas línguas. O mesmo podendo ser dito de todas as línguas pertencentes aos grandes troncos lingüísticos além do indoeuropeu.

 

Na China, em que ainda vige a escrita ideogramática, houve uma grande dispersão e surgiram muitos dialetos. Até hoje, o que garante a uniformidade de comunicação é a língua escrita. Cada dialeto pronuncia de um modo os ideogramas, mas eles são os mesmos em todo o país.  De tal modo que um chinês de Cantão (sul da China) pode se comunicar com outro do extremo norte, usando um bloquinho em que escreve os ideogramas.

 

Já pensou se os falantes de cada dialeto não seguissem o desenho oficial dos ideogramas impostos pelo MEC chinês?

 

Eles não se entendem falando, mas não tem a menor dificuldade de se entender por meio da linguagem escrita. E isto porque a uniformidade da escrita mandarim – bastante simplificada pela revolução comunista de Mao-Tsê-Tung – tem sido rigidamente conservada pelo Estado. Os chineses podem ser comunistas, mas não são modernosos e irresponsáveis como certos intelectualóides de botequim brasileiros que desprezam a norma culta!

 

Outra coisa, no entanto, é a forma gramatical. Os semialfebetizados não costumam cometer somente erros ortográficos: cometem também erros de caráter morfológico e sintático. Erros de concordância, colocação de pronomes, regência verbal, etc.

 

Assim como no caso dos erros de ortografia que não prejudicam a comunicação, esses outros erros, em geral, também não prejudicam. Dizendo melhor: tais coisas não constituem empecilhos para que os falantes se entendam e sejam entendidos por aqueles que se expressam de modo correto.

 

Uma criança por volta dos quatro anos, vivendo numa comunidade lingüística qualquer, já aprendeu basicamente falar uma língua: aprendeu-a na prática por ensaios e erros. Quando ela vai para a escola, ela já sabe falar uma língua. E não vai para a escola aprender o que ela já sabe, mas sim aprender o que ele não sabe ou não sabe bem: falar e escrever sua língua materna.

 

Se ela costuma falar coisas tais como: “nós vai”, “a gente queremos”, “os livro está em cima da mesa”, “Ele truxe menas coisas”, etc. e a escola não ensina a ela as formas corretas, a escola é absolutamente inútil, pois saber falar ela já sabe. O que ela precisa aprender é falar e escrever corretamente.

 

Desse modo, a professora Heloísa Ramos, com a publicação de Por um mundo melhor, em vez de concorrer para a atenuação de preconceitos lingüístico-classistas, pela aceitação dos erros gramaticais dos alunos, está, na realidade, dando um atestado de óbito para as escolas públicas que, se seguirem sua orientação, só estarão dando provas cabais de sua completa inutilidade.

 

E o que é pior: a coisa vai se voltar contra aqueles que ela pretendia justamente proteger. Ou será que quando as vítimas dessa pedagogia criminosa prestarem vestibular suas redações não serão corrigidas com base na norma culta? Será que o MEC obrigará os professores que corrigem as provas a aceitar esse oba-oba gramatical?

 

 Ou quando forem procurar um emprego seus possíveis empregadores não se importarão com seu indigente linguajar, assim como não se importam nem um pouco com coisas tais como piercings, tatuagens, cabelos pintados de azul, etc., entre outros sinais assaz reveladores de indesejáveis costumes e condutas? E depois os pobres coitados não entendem por que não conseguem arranjar um emprego…

 

Será que a intenção de nossos governantes é criar um povo de analfabetos imbecilizados e totalmente desprovidos de senso crítico, verdadeiros zumbis ambulantes, pois assim serão mais facilmente massificados pela propaganda política esquerdista? Esta não é uma hipótese descabida, tendo em vista uma série de descalabros propostos ultimamente nesses governos petistas.

 

Num de seus Diálogos, já dizia oportunamente Platão: “As faltas cometidas contra a gramática não são apenas deslizes de linguagem, porém faltas cometidas contra a correta expressão do pensamento”. Ao afirmar tal coisa, ele tinha em mente algo mais grave do que erros de ortografia e de concordância.

 

Consideremos um indivíduo que pretende comunicar a outro que as ideias deste outro estão de acordo com as suas. Assim sendo, ele abre sua boca e diz: “Meu caro, suas ideias vêm de encontro às minhas”.

 

Ao dizer isto, ele disse exatamente o contrário do que pretendia dizer. Se queria expressar concordância de ideias, deveria ter dito: “Suas ideias vêm ao encontro das minhas”. Contudo, expressando-se como se expressou, ele quis dizer que as ideias do outro se chocavam com as suas, como um carro indo de encontro a um poste. 

 

Existe coisa pior do que ter a intenção de expressar algo, mas expressar o justamente contrário?! Para um grande filósofo como Platão, acho que é difícil encontrar coisa pior, mas para a professora Heloísa Ramos e os luminares do PT-MEC,  tal coisa não tem a menor importância: tanto faz como tanto fez nesta birosca da dona Inês.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. Quando a gramática torna-se dramática. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/quando-a-gramatica-torna-se-dramatica/ Acesso em: 28 mar. 2024