Sociedade

O dia em que Edna foi libertada


O caso de Edna é mencionado em
outros escritos que publiquei. O que diferencia o presente artigo de qualquer
outro, inspirado no mesmo caso judicial, é a abrangência. Aqui é feita
referência a dois processos envolvendo a mesma pessoa. No primeiro processo,
Edna comparece como acusada e é beneficiada por um despacho de soltura. No
segundo processo, comparece na condição de ré e é absolvida.

Vejamos pois o relato dos
casos.

No dia nove de agosto de 1978
compareceu a minha presença, no Fórum de Vila Velha (ES), Edna S., grávida de
oito meses, que estava presa na Cadeia da Praia do Canto, em Vitória,
enquadrada no artigo 12 da Lei de Tóxicos (tráfico) porque foi presa com gramas
de maconha.

Diante do quadro dramático –
uma pobre mulher grávida, encarcerada –, proferi, em audiência, despacho que a
libertou.

Anteriormente, Edna vira-se
envolvida noutro processo, enquadrada em crime de lesões corporais leves
porque, utilizando-se de um pedaço de vidro, ferira Neuza M. A.

O motivo da agressão de Edna a
Neuza foi ter Neuza abandonado a Escola de Samba “Independente de São Torquato”
para desfilar na Escola de Samba “Novo Império”.

Neuza era figura importante do
desfile, como porta-bandeira da Escola, na qual também Edna desfilava, como
passista.

Depondo em audiência, um ano
após ter Edna sido solta para dar à luz, disse Neuza, a vítima das agressões
que, se dependesse dela,

“pediria que a Justiça fosse
mais calma com a acusada, pois o fato ocorreu por provocação de outra pessoa, a
acusada tem uma filha pequena e, além disso, está se regenerando”.

Diante dos fatos proferi
sentença absolutória, por entender que

“a Justiça Criminal, dentro de
uma visão formalista, localiza-se no passado, julga o que foi. A Justiça
Criminal, numa visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro.”

O despacho que libertou Edna,
no processo de tóxicos, e a sentença absolutória, no processo de lesões
corporais, são transcritos a seguir.

A) Despacho libertando Edna, a
que ia ser Mãe.

“A acusada é multiplicadamente
marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo
latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser
prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa
vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada
pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se
ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social,
em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.

É uma dupla liberdade a que concedo neste
despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do
ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da
palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para
lutar, sofrer e sobreviver.

Quando tanta gente foge da
maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento,
são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à
vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os
comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis,
mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que
traz dentro de si.

Este Juiz renegaria todo o seu
credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se
permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.

Saia livre, saia abençoada por
Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança
que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia
cristão.”

Foi ao vê-la grávida,
incomodada com o peso do feto, pois recusou sentar-se dizendo que ficava mais à
vontade de pé, que eu pude compreender a dimensão do sofrimento de Edna. Foi
diante de Edna mulher, Edna ser humano, que pude perceber o que significava
para ela estar presa.

B) Sentença absolvendo Edna.

A Justiça Criminal, dentro de
uma visão formalista, localiza-se no passado, julga o que foi. A Justiça
Criminal, numa visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro. A
Justiça Criminal não é uma máquina calculadora que só fecha suas contas quando
o saldo é zero. A Justiça Criminal é sobretudo um ofício de consciência, onde
importa mais o valor da pessoa humana, a recuperação de uma vida, do que a
rigidez da lógica formal.

A prova testemunhal convence
que Edna é hoje uma pessoa inteiramente recuperada para o convívio social. Como
ficou demonstrado, sua vida está inteiramente dedicada a sua casa. Compareceu
hoje perante este Juízo com uma filha nos braços. Insondáveis caminhos da
vida… Da última vez que veio a esta sala de audiências, a criança, que hoje
traz nos braços, ela a trazia no ventre. Por despacho deste juiz, foi naquela
ocasião posta em liberdade.

Creio que a sentença justa, no
dia de hoje, é a sentença que absolve a acusada. Não se trata da sentença
sentimental, da sentença benevolente, como se julga tantas vezes, erradamente,
sejam as sentenças deste juiz. É a sentença que crê no ser humano, é a sentença
convicta de que muitas vezes pessoas marginalizadas pelas estruturas sociais
encontram, no contato com o julgador, o primeiro relacionamento em nível de
pessoa. Absolvo a acusada, em voz alta, sentença ouvida, palavra por palavra,
pela acusada, para que ela sinta que desejo tenha uma vida nova. Liberto-a
deste processo e espero que nunca mais fira quem quer que seja.

Considerando tudo que foi
ponderado, atendendo ao gesto de perdão da vítima Neuza M. A., atento à criança
que Edna traz no colo, sua filha Elke, desejando que esta sentença seja um voto
de confiança que Edna saiba compreender – ABSOLVO a acusada da imputação que
lhe foi feita.

João Baptista Herkenhoff, 74
anos, magistrado aposentado, é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá
de Vila Velha (ES) e escritor. Autor do livro Dilemas de um juiz: a aventura
obrigatória (Rio, GZ Editora). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage:
www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. O dia em que Edna foi libertada. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/o-dia-em-que-edna-foi-libertada/ Acesso em: 16 abr. 2024