Sociedade

Ispiquinglich, maifrendi? (no país dos analfabetos bilíngües)


No artigo
“Bomba em inglês” publicado na Folha de
São Paulo
(6/4/2011), Ruy Castro comentou o resultado de um relatório de
uma instituição internacional, que avalia a habilidade no manejo da língua
inglesa por não-nativos em todo o mundo.

Nesse
relatório foram testadas dois milhões de pessoas, de 16 a 30 anos, em 44 países,
entre eles o Brasil. E o resultado não foi nem um pouco surpreendente, ao menos
para os que estão familiarizados com nossa generalizada indigência cultural

O Brasil
foi classificado no 31.o lugar, isto mesmo: trigésimo-primeiro lugar dos 44 países examinados, ficando
atrás de, por exemplo, Portugal, Argentina, México, Arábia Saudita e até mesmo
El Salvador, pequeno país pobre da América Central.

Mais uma
vergonha nacional!

Como já
mostramos em outro artigo, “Universidade e adversidade”, o lugar ocupado pelo
Brasil na supramencionada avaliação é perfeitamente condizente com o ocupado em
outra: a das universidades do mundo.

Segundo o THE (Times Higher Education) – instituto britânico dedicado à avaliação
das universidades em todo mundo – nossa melhor universidade, a USP, ocupa um
lugar abaixo das 200 melhores em todo o globo terrestre, isto mesmo: abaixo das
duzentas melhores! Imagine só as nossas outras universidades!

Isso é
algo discrepante em relação ao tamanho de nosso PIB, situado entre os 10
primeiros do mundo. Já foi dito e redito incontáveis vezes: “O Brasil é um país
de fortes contrastes”. No caso da relação entre o nível intelectual e a
quantidade de dinheiro em circulação no País, fortíssimo contraste!

Como é
possível explicar esse fenômeno talvez único no mundo? Dizer que se trata de um
país de analfabetos funcionais, alguns poucos dos quais muito endinheirados, é
fazer uma caricatura, ainda que com forte semelhança com a fisionomia do
caricaturado, mas não explica coisa nenhuma. Acho mesmo que nem Freud explica
esse complexo fenômeno.

Ruy
Castro fez uma observação interessante: “É mais uma derrota para as nossas
cores em educação. Isto num país em que, ao sair à rua, ligar a TV ou acessar internet, o cidadão é
assolado, quase à asfixia, pela língua inglesa”.

De fato. Porém,
esse bombardeio de expressões em inglês tem surtido efeitos mais negativos do
que positivos. Posso relatar duas experiências pessoais como exemplos:

Uma vez
entrei numa padaria e pedi ao atendente chá gelado. E obtive como resposta:
“Sinto muito, mas não temos”. Ao que retruquei perplexo: “Mas… e aquelas
latinhas ali?” O rapaz não se deu por vencido com minha evidência insofismável:
“Ah, aquilo é áici ti.”

Não seria
de esperar que aquele jovem, provavelmente semialfabetizado, soubesse que “chá
gelado” e “iced tea” designassem a mesma coisa.

Mas seria
de esperar que o gerente lhe tivesse ensinado a que se referiam os nomes em
inglês de produtos à venda na padaria. Talvez, o gerente pensasse também que iced tea era o nome de outra bebida que
não chá gelado!

Mas que
fazer num país em que até mesmo engenheiros passaram a usar expressões inglesas
como randomic e fuzzy, para designar coisas que, há séculos na língua portuguesa,
dispomos de “aleatório” e “nebuloso”, respectivamente?!

Outra vez
a coisa ocorreu numa loja de Delikatessen (“comestíveis finos” em alemão). Pedi um vidro de cogumelos e a simpática
atendente: “Sinto muito, senhor, não temos”. Novamente vi-me obrigado a
recorrer à linguagem visual: “Mas… e aqueles vidros ali em cima?” E ela
devolveu na paleta: “Ah, aqueles vidros são de champinhom (champignon).

O mesmo
fenômeno, somente que neste caso mushroom (“cogumelo” em inglês) ainda está perdendo em popularidade para champignon e funghi (“cogumelos” em italiano).

Mas temos uma prova inequívoca de que os
brasileiros – cansados de ser analfabetos na sua própria língua – passaram a
ser analfabetos bilíngües e até mesmo polilíngües. Como observou muito bem Ruy
Castro:

“Nenhuma
loja brasileira faz mais liquidações ou dá descontos – oferece sales ou 50% off. Ninguém faz entregas – faz delivery. Ponta de estoque é outlet.
Um “resort” promete all inclusive –café da manhã, almoço e jantar”. (…) A internet ensina como emagrecer sem
fazer dieta ou “trabalhar fora” – quer dizer, “work out”, fazer ginástica.”

“A dieta
da sopa nos proíbe de tomar “soda de dieta” – em inglês, “diet soda”; em português, “refrigerante dietético”.”

Neste
particular, confesso que até eu fui traído durante muito tempo pela indigência
cultural brasileira. Como havia um tipo de refrigerante chamado “soda”, eu
pensava que era algo da mesma família do guaraná, não o nome genérico
“refrigerante” em inglês.

Todavia,
a coisa não seria tão grave caso ficasse limitada ao linguajar popular e à
precariedade do especial jargão da maioria de nossos gerentes de
estabelecimentos comerciais usando esse mostrengo do “portinglês”, filhote de
jacaré com cobra d’água que não é português nem inglês.

Como observou
pertinentemente Ruy Castro, a coisa se estende às nossas traduções,
principalmente às das legendas de filmes. Há algum tempo foi publicada uma
tradução de um livro denominado “O Físico”. Assim traduziram o original em
inglês: The Physician, que contava a
vida de um médico (physician) na
Inglaterra no século XVII.

“Num
único filme, a neta, granddaughter,
se torna ‘a filha mais velha’”. E num outro filme, como eu mesmo pude
constatar”, um “old father” era chamado constantemente por sua netinha de “pai
velho”, não de vovô.

E mais
contundente ainda: “O rapaz pergunta à moça: “Are you in love?” (“Você está
apaixonada?”). E a legenda: “Você está no amor?”. Mas hilariante mesmo é o
personagem que se descabela e grita: “I can’t help myself!, I can’t help myself!”
(“Não consigo evitar, não consigo evitar!”), enquanto a legenda diz: “Não posso
ajudar a mim mesmo!”.

E se um
anfitrião tivesse dito a um convidado: “Help yourself, please!”, talvez não tivessem traduzido como:
“Sirva-se, por favor!”, mas sim como “Ajude a você mesmo, por favor!”

Parece
até que os tradutores dessas legendas fizeram uso dessas fajutas maquininhas de
tradução inglês-português, incapazes de traduzir expressões em contextos
específicos e expressões idiomáticas. Digo isto, porque sei o que estou
dizendo: comprei uma, fiz alguns testes e devolvi imediatamente ao vendedor.

Mas devia
ter denunciado essa fraude à Secretaria de Defesa do Consumidor! Uma máquina é
vendida como tradutor automático quando, na realidade, não passa de um rudimentar
dicionário bilíngüe.

Convenhamos
que somente um aterrador desconhecimento de inglês faz traduções literais de
expressões idiomáticas tão corriqueiras. É como traduzir “all the better” por
“tudo o melhor” em vez de “tanto faz” ou então “so far so good” por “tão longe
tão bom” em vez de “até agora, tudo bem”.

E Ruy
Castro conclui: “Pensando bem, o 31.o lugar está muito bom”. Meu avó,
por sua vez, concluiria que “para quem é bacalhau basta”. Mas como as coisas
mudaram e o bacalhau há muito tempo deixou de ser comida de pobre, diríamos:
“Quem nasceu pra lagartixa nunca chega a jacaré”

Não
obstante, essa lagartixa pretensiosa e desconhecedora de sua precariedade
intelectual e de seu aterrador despreparo pensa que já cresceu e ganhou os
poderosos caninos de um grande crocodilo do Rio Níger.

Acha que
pode fazer parte do G-7 e a Rússia (incluída só porque ainda é uma grande potência
bélica!), ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – a grande quimera de Lula e Celso Amorim –
quando é na realidade a Suévia, com impostos mais altos do que os da Suécia e
serviços públicos mais precários do que os da Bolívia.

[A
propósito, foi instalado há algum tempo na cidade de São Paulo o Impostômetro,
um aparelho que mede o crescimento constante da carga tributária do país mais
tributado do mundo!].

Sem boa
educação para todos não há solução para ninguém. Com esse arremedo de educação
que temos, só seremos “um país do Primeiro Mundo” na baba demagógica e
bajuladora do discurso de Barack Obama no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Mas por
que não nos miramos no exemplo de países como a Coréia do Sul? Nas décadas de 50 a 60, um país arrasado pela
guerra contra a Coréia do Norte – que continua comunista e na pindaíba! Investiu
pesadamente em recursos humanos e na educação, para uns vinte anos depois
começar a colher os frutos do que plantou.

Hoje é um
dos tigres asiáticos, país próspero com excelente distribuição de renda e alto nível educacional, como mostra seu IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano). Tem estado sempre nos primeiros lugares em
todas as avaliações internacionais, juntamente com o Japão e a Finlândia. Alem
disso, exporta os excelentes carros KIA para muitos países, inclusive para o
País dos Analfabetos Bilíngües.

* Doutor
em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ.
Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e
Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro
Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de
Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível
(Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto
Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica
(Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto
Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL,
Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002).
Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas
Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento
da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse
(Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995);
Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71
comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem
escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br ,
www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho
editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. Ispiquinglich, maifrendi? (no país dos analfabetos bilíngües). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/ispiquinglich-maifrendi-no-pais-dos-analfabetos-bilinguees/ Acesso em: 25 abr. 2024