Sociedade

Estou curado?


Não tenho pejo de dizer de problemas ou
experiências pessoais nos textos que escrevo. Suponho que a recusa de falar de
si decorre de um pudor desarrazoado. Se é com simplicidade que fazemos este ou
aquele relato, nosso testemunho pode ser útil a outro que vive ou viveu a mesma
angústia.

Rigorosamente, no
atual estágio da Ciência, não pode alguém ser dado como definitivamente curado
do tipo de câncer que me acometeu. Isto dentro de um rigor científico.

Depois da cirurgia
a que me submeti, tenho de fazer exames periódicos e apresentá-los ao Dr.
Roberto Zanandréa e ao Dr. Miguel Srougi, que são os médicos que me assistem.
Ainda não fui dispensado desses cuidados justamente porque não há até esta data
condições para apor na minha ficha – “definitivamente curado”.

As empresas não
aceitam, por exemplo, firmar contrato de seguro de vida em benefício de quem
teve câncer. A doença integra o elenco de moléstias que impedem a contratação.

Procurei diversas
seguradoras mas todas, invariavelmente, recusaram minha proposta.

Poderia obter a
adesão se omitisse a doença. Mas isso seria mentira, pois há, no formulário
próprio para o seguro, pergunta explícita sobre diversas moléstias, o câncer
incluído. Não me pareceu correto fazer o seguro, a partir de uma falsidade.

Mas penso como
Chico Buarque que, em maravilhosa composição, falou daquela pessoa que cuidou,
cuidou, cuidou porém “morreu em frente à companhia de seguros”.

Se dentro de uma
visão estritamente clínica os médicos não podem firmar declaração de que estou
de todo curado, eu posso firmar essa declaração, sem qualquer dúvida: “estou
definitivamente curado”, “eu me declaro definitivamente curado”.

Mas o que é isto de
estar definitivamente curado? É estar livre da morte? Obviamente que não.
Talvez nenhuma verdade, na face da Terra, seja tão evidente quanto esta: todos
vamos morrer.

Estar curado,
depois de uma doença, não significa ter passaporte para a vida eterna no curso
desta existência que é, de si e por si, transitória. Estar curado nem mesmo é a
garantia absoluta de morrer de enfermidade diversa daquela que nos atingiu um
dia.

Parece-me que outro
deve ser o conceito de cura.

Cura é saúde depois
da doença. Esta saúde depois da doença tem um sentido bem mais amplo do que o
significado textual.

Eu me sinto curado
porque me sinto sadio. Eu me sinto curado, não apenas porque estou vivo, mas
porque minha vida, depois da enfermidade, ganhou um significado maior. Cura é
na verdade um novo estágio da vida.

Antes da doença, eu
supunha que minha vida fosse eterna, a morte não me dizia respeito, morte era
fato que acometia outras pessoas, de morte eu só tomava conhecimento para me
solidarizar com viúvas e filhos órfãos. As mortes que atingiram minha própria
família, até aquele momento, não tinham sido frequentes e, na maior parte dos
casos, tinham levado parentes já bem idosos.

Hoje tenho
consciência da radical transitoriedade da vida. A cada manhã eu me prostro
diante de Deus para agradecer “aquele dia que é me é concedido”, como se cada
dia concentrasse a existência inteira.

Eu me sinto curado
porque sorvo a vida que me foi acrescentada.

Eu me sinto curado
porque é com alegria que celebro a vida, este supremo dom de Deus.

Eu me sinto curado
porque, depois da cirurgia feita, partilhei com minha mulher todos estes belos
anos de convivência; celebrei o casamento de meu filho; vivenciei com tantos
amigos alegrias e tristezas; pude servir a muitos que de mim solicitaram apoio,
ajuda, conselho ou palavra; escrevi livros; publiquei artigos em jornal; fiz
palestras para milhares de jovens; viajei pelo Brasil e pelo mundo; transmiti
crenças e esperanças; testemunhei valores.

João Baptista
Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, é Professor pesquisador da
Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor. Autor do livro Dilemas de um
juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora).

E-mail:
jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage:
www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. Estou curado?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/estou-curado-2/ Acesso em: 26 abr. 2024