Sociedade

A lição das Cinzas

Creio que a
lição das Cinzas transpõe o horizonte católico e até mesmo o horizonte cristão.
Há uma grande pedagogia na imposição das cinzas. As cinzas não nos lembram
apenas que somos pó e em pó nos converteremos, segundo a frase latina de grande
impacto: “Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.” A
advertência das cinzas vai além, como tentaremos demonstrar neste artigo.

À face das
cinzas, o Padre Antônio Vieira mostrou-se perplexo, num dos seus mais belos e
famosos sermões, justamente aquele proferido na Quarta-Feira de Cinzas de 1670,
na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em Roma.

Disse Vieira:
“O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó
presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.”

A fim de
provar que o pó presente é verdadeiro, não obstante de difícil apreensão, ou
seja, que já somos pó, Vieira desenvolve rigorosa argumentação, vazada num
estilo límpido e elegante. Não foi sem razão que Rui Barbosa deu três conselhos
a todos aqueles que pretendam, não apenas aprender Português, mas descobrir as
riquezas e maravilhas da Língua Portuguesa. Primeiro conselho: ler Vieira.
Segundo conselho: reler Vieira. Terceiro conselho: ler mais uma Vieira.

Voltemos à
questão que colocamos no primeiro parágrafo deste texto: por que a lição das
cinzas ultrapassa o horizonte cristão?

Creio que as
cinzas não são apenas um ensino de Fé, mas também uma lição de vida, endereçada
às mais diversas situações diante das quais nos defrontamos. As cinzas revelam
a transitoriedade das coisas, motivo pelo qual as vaidades são ilusórias.

Lembra-te,
jovem, de que és jovem hoje, mas não serás jovem sempre. Respeita o idoso,
presta tributo à velhice.

Lembra-te, tu
que estás usufruindo de perfeita saúde, és sadio hoje mas poderás ser enfermo
amanhã. Visita os que estão doentes, comprometa-te com a defesa da saúde
pública exigindo dos governos que esse item tenha prioridade na agenda
política.

Lembra-te, tu
que estás no apogeu da fama ou da riqueza, que o brilho de que desfrutas não é
eterno. Procura ser humilde.

Lembra-te, tu
que exerces função pública de destaque e deténs uma cota de poder, tua função é
transitória, os que hoje te bajulam amanhã te desprezarão, procura servir com
devotamento à causa pública pois o que fizeres de bom será consolo e alimento
de tua alma quando a penumbra chegar.

Lembra-te, tu
que estás a produzir tesouros no domínio das ciências, das artes ou das letras,
os dotes do espírito podem fenecer e nem mesmo tens a garantia de desfrutar
para sempre de lucidez intelectual. Foge do orgulho e da empáfia.

Lembra-te, tu
que estás vivo e fulgurante, que o túmulo é o teu destino final. Respeita a
reverencia a morte, cultiva a memória dos que partiram.

As cinzas
dizem a todos, cristãos ou não cristãos, crentes ou incrédulos, que tudo é
passageiro porque realmente somos pó e em pó haveremos de nos tornar.

Não é uma
lição de pessimismo, um convite ao desânimo, mas uma advertência para coibir o
egoísmo e apontar para a solidariedade, a simplicidade e a virtude.

João Baptista
Herkenhoff, 74 anos, é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila
Velha (ES). Autor do livro Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória. (GZ
Editora, Rio de Janeiro). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage:
www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. A lição das Cinzas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/a-licao-das-cinzas/ Acesso em: 20 abr. 2024