Sociedade

Só duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez brasileira

 

Excelente o artigo de Cláudio de Moura Castro em Veja ano 43, n.o 36. Ele começa fazendo alusão a uma coleção que marcou a adolescência de muitos espíritos bem formados e informados: O Tesouro da Juventude em que havia um livro assaz interessante: O Livro dos Porquês.

 

Foi justamente esse livro que ensejou ao referido autor o esboço de um outro que ele bem poderia ter escrito e chamado de O Livro dos Porquês na Terra dos Papagaios. Um exemplo dos menos contundentes: “Se vivemos nos trópicos, porque as casas são construídas como estufas, mais próprias para a Sibéria?” Posso acrescentar outro: Por que muitas pessoas, no Brasil, se recusam a comer carne bovina na Semana Santa e se obrigam a comer carne de peixe?

 

Ambos os exemplos, no entanto, pertencem à categoria dos menos contundentes, não acarretando drásticas consequências. Limitam-se a caracterizar levemente a tradicional e atávica ignorância brasileira.

 

Seguem-se outros produtores das mais nocivas consequências: “Por que paramos de economizar energia elétrica?” Esta eu respondo: Porque o brasileiro em geral é imediatista. Paramos de economizar, simplesmente porque passou a fase do pós-apagão e diminuiu bastante o risco de ter que recorrer às velas e aos lampiões. A validade de economizar energia, por razões de médio e longo prazo, é algo que nunca passou pelas imprevidentes cabeças dos perdulários desta Terra Brasilis.

 

Outros porquês são de diferente natureza. Por exemplo: “Por que se cria uma empresa em minutos nos Estados Unidos [e em tempo menor na Austrália, acrescento eu] e no Brasil são necessários 152 dias?”

 

Confesso não saber a(s) causa(s) desse fenômeno, mas posso aventar hipóteses: Será porque há uma grande criação de dificuldades, para não menor venda de facilidades?  Será que tinha razão Oliveira Vianna quando disse que o capitalismo – entendido como regime da livre iniciativa, da concorrência no mercado, etc – nunca aportou às praias da Terra dos Papagaios? Será que isto ocorre por causa da irracionalidade em si de nossa mastodôntica burrocracia?

 

Mas Cláudio prossegue em seus oportunos porquês. E se indaga a razão pela qual nos Estados Unidos, “uma pessoa pode trabalhar um dia ou mil dias sem contrato de trabalho. Aqui não pode, porque será?”

 

Ora, esta é facílima de responder: é porque lá não tem Carta del Lavoro do corporativismo fascista de Mussolini, que aqui recebeu uma maquiagem e se transformou em CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), na época do peleguismo de Vargas, o grande precursor do neopeleguismo de Lula.

 

E essa é mais saborosamente irracional: “Por que um menor, no seu emprego, não pode subir em uma escadinha ou carregar uma caixa, se na academia escala paredes e levanta peso?”.

 

Confesso ignorar o espírito da lei, mas desconfio que se trata do espírito de corpo. Ou de porco?! A minudência das normas no Brasil vai às raias da imbecilidade. É coisa de fazer o excesso de regulamentação do mercantilismo de Colbert – Ministro da Fazenda de Luís XIV – virar brincadeira de criança. Ah! Neste particular, nada mais parecido com o insaudoso Império do Mal – entenda-se: a finada União Soviética – do que o “Brasil brasileiro” onde há  “coqueiro que dá côco”, de Ary Barroso!

 

E tem mais: “Por que é quase impossível fechar uma empresa no Brasil?” Creio que por motivo semelhante a abrir uma. No entanto, nada mais fácil e menos dispendioso do que abrir ou fechar uma nova igreja ou registrar em cartório uma nova escola de samba.

 

Mas por que misteriosa razão “a polícia verifica febrilmente os carimbos e impostos e não verifica luzes, freios e poluição, causadores de incômodos e acidentes?” De minha parte, penso que às verificações geralmente não feitas pode-se acrescentar mais uma: o excesso de peso dos caminhões nas estradas, que não só provoca acidentes como também danifica o asfalto.

 

Mas muito pior que todas essas coisas, é a longérrima fila no Detran-RJ a que é submetido o portador de automóvel ao ter de fazer a vistoria anual e perder seu precioso tempo. Deve ser por essa e por outras que há, no Estado do Rio de Janeiro, um grande número de carros com a placa de Curitiba –PR, sem seu dono nunca ter ido ao Paraná, a não ser para emplacar a viatura.

 

E ainda: “Por que, para fretar um ônibus, é preciso levar ao Detran o número da carteira de identidade de todos os que farão a viagem?” Talvez, por motivos semelhantes a uma coisa que aconteceu comigo. Uma vez, ao ir ao dentista, o porteiro do edifício disse que eu tinha que deixar minha carteira de identidade na portaria, quando há uma lei muito justa proibindo a retenção de documentos de qualquer cidadão. Recusei veeementemente! Não sou obrigado a fazer nada, a não ser por força de lei. Trata-se de mais uma das leis que não pegaram e tornou-se facultativa, se é que uma lei pode ser tal coisa!

 

“Dirijo-me ao aeroporto, em outro município. Por que os táxis voltando não podem pegar passageiros, já que isso economizaria combustível e permitiria cobrar metade da tarifa (sem perda para o taxista)?”

 

Por mais que eu faça uma aeróbica nos meus neurônios, não consigo vislumbrar o misterioso espírito da lei. Mas, como no Brasil até mendigos vão às vias de fato em defesa de seus pontos comerciais, recentemente um taxista, que não era da patota corporativista, resolveu ir ao Aeroporto Tom Jobim para ver se pegava um passageiro e acabou levando socos e pontapés dos membros do clube.

 

“Por que a Advocacia Geral da União obstrui o Judiciário, recorrendo em todas as causas perdidas?” Ora, porque ela, assim como o Ministério Público, é obrigada a cumprir a lei que manda recorrer em todo e qualquer processo. Logo, se há algo errado, culpem-se os legisladores e não aqueles que cumprem as péssimas leis feitas pelo Poder Legislativo.

 

“Por que algumas causas simples se arrastam por mais de dez anos?” Ora, basicamente por dois motivos: (1) A Constituição de 1988 transformou em lei constitucional um excessivo número de tópicos devendo unicamente pertencer à legislação ordinária, e isto enseja recursos para quase tudo.

 

(2) No Brasil, fala-se em todos os tipos de reforma, mas só rarissimamente ouço falar numa das mais prementes: a reforma de nossos códigos processuais, que abrigam uma quantidade absurda de recursos, permitindo empurrar com a barriga um caso durante longérrimo tempo. Se há um culpado, novamente a culpa deve ser remetida aos nossos sábios e probos legisladores no Congresso.

 

“Por que presos que terminaram sua pena continuam encarcerados?” Realmente, uma das mais graves injustiças! [Acho que poucos deles sabem que podem requerer na Justiça indenização por essa arbitrariedade do Estado]. Mas ela não é cometida por magistrados, mas sim pela precariedade da estrutura administrativa do Poder Judiciário.

 

Um detento na referida condição só pode ser liberado mediante um mandado judicial, mas este não pode ser emitido por qualquer juiz, porém por um magistrado especial a quem cabe emitir alvarás de soltura. Tempos atrás, no Estado do Rio de Janeiro, só havia um juiz para realizar tal função. Hoje não sei se o número aumentou, já que diminuir seria quase impossível. Mas sei que continua sendo insuficiente, assim como o número de Defensores Públicos assoberbados de trabalho.

 

“Por que os cartórios guardam papel, quando os arquivos eletrônicos são mais seguros?” Não sei dizer se este é realmente o caso dos cartórios ou da maioria deles. Mas uma coisa eu sei. Burocratas amam mais papéis, carimbos e firmas reconhecidas do que os brasileiros em geral amam popozudas, cerveja e futebol. É coisa atávica! Como dizia o doce e sereno Nelson Rodrigues: “Subdesenvolvimento não se improvisa: é obra de séculos”.

 

“Por que há 2 milhões de processos trabalhistas em curso?” Ora, porque nossas leis trabalhistas são jurássicas e, a pretexto de defender os interesses dos trabalhadores, só dificultam a contratação dos mesmos, bem como os legítimos interesses dos empregadores. Elas são como as obrigações trabalhistas que tem um custo de mais de 100% dos salários, prejudicando igualmente empregados e empregadores.

 

E no que diz respeito à educação – a especialidade de Cláudio de Moura e Castro – há tantos porquês que dá vontade de sentar no meio-fio e chorar copiosamente lágrimas de sangue!

 

“Pensando nas escolas, por que ensinam coisas que nem os professores sabem para que servem?” Bernard Shaw acertou na mosca, mesmo sem ter conhecido a tragédia da educação no Brasil: “Quem sabe sabe, quem não sabe ensina”. Professores fazem de conta que estão ensinando e alunos fazem de conta que estão aprendendo.

 

“Por que fazer livros que só um gênio consegue entender?” Talvez, porque os autores de livros didáticos os escrevem temendo mais as críticas de seus colegas do que amando o aprendizado de seus leitores. Ou talvez porque, no Brasil, só escrevam livros didáticos os que não tem nível para escrever livros mais complexos. Ou mesmo porque confundem verdadeira complexidade com deliberada complicação fornecedora de um ar de profundidade!

 

 Escrever numa linguagem simples e direta é o maior de todos os pecados de um escritor de quaisquer livros teóricos. Sei disso, porque ainda estou pagando meus pecados…

 

A esses porquês referentes à educação, eu acrescento mais um: por que, em vez de melhorar o ensino no primeiro e no segundo grau, resolveram piorar o mesmo no terceiro grau, mediante a criação desse atentado à meritocracia: o tal do sistema de cotas?!

 

 Além disso, esta coisa monstruosa é nitidamente inconstitucional, uma vez que, segundo a Carta Maior, o ingresso no ensino superior deverá ser feito mediante a avaliação da competência dos candidatos.  Cor da pele é critério para avaliação de competência? Ou nada mais do que mero efeito epidérmico causado por excesso de melanina?!

 

E Cláudio termina seu artigo dizendo: “Alguém pode responder a essas perguntas? Algum candidato à Presidência se aventura? Do meu lado, só consigo me lembrar de Einstein: ‘Apenas duas coisas são infinitas, o universo e a estupidez humana’”.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. Só duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez brasileira. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/so-duas-coisas-sao-infinitas-o-universo-e-a-estupidez-brasileira/ Acesso em: 19 abr. 2024