Sociedade

O Rubor da Pólvora

Publicado originalmente na revista Dicta&Contradicta

 

Dados técnicos: Cormac McCarthy. Meridiano de sangue ou O rubor crepuscular no Oeste. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.

 

Até publicar Meridiano de sangue, Cormac McCarthy era um autor relativamente desconhecido, mesmo nos EUA. Ganhou uma bolsa em 1981 que lhe permitiu dedicação integral à escrita do livro, que veio a ser publicado em 1985. Foi um sucesso instantâneo. Quem o leu sabia que estava diante de obra maiúscula, uma das maiores do gênero publicada nos Estados Unidos do final do século XX.

 

McCarthy nasceu em Rhode Island, nos Estados Unidos. Estudou na Universidade do Tennessee, em Knoxville, e serviu na Força Aérea entre 1953 e 56. Desde o primeiro romance, de 1965, já teve nove obras publicadas. No Brasil, vários de seus títulos estão disponíveis pela Editora Objetiva e pela Companhia das Letras. Foi também agraciado com importantes prêmios literários, como o National Book Award e o National Book Critics Circle Award.

 

Meridiano de sangue foi publicado no Brasil originalmente em 1991 pela Nova Fronteira, cuja edição estava esgotada. Agora, a Objetiva nos presenteou com essa nova edição. Uma leitura obrigatória para aqueles que querem estar atualizados com o que há de melhor na literatura mundial – além do fato de que McCarthy ficou mais conhecido no Brasil depois da adaptação do livro Onde os fracos não têm vez (No country for old man) para o cinema, em película dirigida pelos irmãos Coen, ganhadora de quatro Oscars.

 

     O entusiasmo do público e da crítica por Meridiano de sangue pode ser medido pelos comentários de Harold Bloom, feitos em mais de uma ocasião: “Hoje”, declarou a um repórter, “conheço quatro romancistas americanos ainda em atividade e dignos de nosso louvor. Thomas Pynchon ainda escreve. Meu amigo Philip Roth, que ora dividirá com Stephen King o prêmio [da National Book Foundation] pelo ‘valor da obra’, é um grande comediante e certamente teria algo engraçado a dizer sobre isso. Há Cormac McCarthy, cujo romance Meridiano de sangue é digno de Moby-Dick de Hermann Melville, e Don DeLillo, autor do grande livro Submundo”. Em outra entrevista, Bloom afirmou que McCarthy “alcançou a genialidade com esse livro”. Não é para menos.

 

A história é ambientada em meados do século XIX na fronteira do Texas com o Novo México e conta a saga rumo ao oeste, objeto de tantas obras na literatura e no cinema. A narrativa começa em 1833, data de nascimento de Kid, o personagem principal do romance, junto com o Juiz Holden. Partindo do fato histórico de que as autoridades governamentais mandaram expedições de caça e extermínio aos índios, pagando por escalpo, McCarthy constrói seu argumento em torno desse evento. Jamais idealiza os índios, cuja moralidade é retratada no mesmo nível da dos recém chegados; a violência é não apenas a parteira da história, é a parteira da vida e a indutora da civilização; o livro é uma reflexão profunda sobre o mal e seu papel na marcha civilizadora, com ecos de Heráclito e seu polemos, a guerra como a origem de todas as coisas.

 

O Juiz Holden é este personagem enigmático. Inevitável vê-lo como uma forma de Mefisto. Sua psicologia remete às seitas gnósticas dos primeiros séculos, especialmente àquelas cultuadoras da dualidade de Deus e mesmo da supremacia do mal. Não há como não associar sua figura às seitas ofitas e cainitas, derrotadas pela ortodoxia cristã.

 

     O que faz, segundo o romance, a diferença entre os civilizados e os bárbaros é o rubor da pólvora. O Juiz dá a pólvora, feito um Prometeu modernizado. Aqui reside o abismo. Na passagem em que o Juiz fabrica a pólvora, sob o forte cheiro infernal do enxofre, salvando os celerados do massacre certo, decifra-se a charada: a pólvora enviava as almas ao diabo.

 

     É neste momento que o juiz Holden faz o seu discurso de apologia à guerra, na passagem mais marcante de toda a obra: “A guerra é o jogo supremo porque a guerra é em última instância um forçar da unidade da existência. A guerra é deus”. Será ele quem levará a guerra à Cosmópolis? É neste momento que Cormac McCarthy dá o seu aviso profético: o de que o ocidente resplandecerá no rubor da destruição e da violência.

 

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. O Rubor da Pólvora. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/o-rubor-da-polvora/ Acesso em: 25 abr. 2024