Sociedade

A Tragédia de Santo André

A Tragédia de Santo André

 

 

Gisele Leite &  Denise Heuseler

 

 

Por mais que acreditemos no atavismo genético da violência contido no ser humano, não podemos privilegiar o crime passional, não menos cruel que qualquer outro, pois indubitavelmente a vida em sociedade nos equipa com os freios para os instintos.

 

Os chamados crimes de paixão nos remetem a idéia falsa de nobreza de intenções que mascara, em verdade, um tremendo primitivismo irracional.

 

Não devemos cair no lugar comum e, com esnobe simplicidade, denegrir a atuação dos policiais do GAT, e todos aqueles que uniram esforços no sentido de solucionar, sem vítimas, o trágico incidente.

 

Assim como não podemos julgar friamente o médico que no setor de emergência, durante uma calamidade e, com poucos recursos, tem que escolher o atendimento prioritário.

 

Há uma silenciosa sentença de morte nesse gesto que, no entanto, é mais comum do que possamos imaginar.

 

Bem como a seleção fria, e igualmente forçada, na fila de doação de órgãos.

 

A polícia atuou como pode e, sem dúvida, ao poupar a vida do seqüestrador agiu em conformidade com a lei.

 

Quem, na verdade, sentenciou, torturou e, ao final, matou e feriu, tanto Eloá quanto Naiara, foi Lindemberg.

 

Responderá ele por homicídio qualificado[1] doloso, tentativa de homicídio e seqüestro. Mas, miseravelmente com a atual legislação penal, depois de cumprir em torno de 7 a 8 anos de reclusão, poderá ser liberto e retornar ao seio da sociedade que estará seco, árido e mais vulnerável ainda. Ressalte-se que o homicídio qualificado doloso é crime hediondo ( Lei 8.072/90).

 

Por vezes, a reportagem que entabula entrevista com o algoz lhe dá notoriedade e fama que para uma mentalidade perturbada e alterada pode ser mais perigoso do que deveria. Porém, mesmo sendo a intenção diversa, a interpretação dada pela mente perturbada a deturpa inevitavelmente.

 

Porém, toda a sociedade tem direito à informação de qualidade que deve ser veiculada com isenção e idoneidade.

 

Inclusive, cabe salientar que uma equipe  de reportagem, no exercício de suas funções foi literalmente ameaçada e escorraçadas do local do crime pelos moradores do conjunto habitacional, ou por simpatizantes do seqüestrador, fato ainda não esclarecido.

 

O que é injusto, ilegal e fere, não só a liberdade de imprensa, o direito de ir e vir de cada profissional, e de toda sociedade que fica sem direito à informação.

 

Queremos acreditar que a entrevista com  o seqüestrador pretendeu demovê-lo das maléficas intenções e, dar-lhe garantias de que sairia vivo, respondendo por seus crimes conforme a ordem jurídica vigente.

 

Na verdade, a sua instantânea notoriedade o humanizava e, ao mesmo tempo, o vilanizava.

 

Nem a polícia e nem a imprensa erraram. Tivemos um quadro onde vislumbramos um ser humano jovem psicologicamente perturbado, padecendo de paixão por outra jovem, de 15 anos que, num momento de separação, passado, ameaçou suicidar-se com uma faca, convencendo definitivamente seu algoz do seu incomensurável amor, selando a propriedade eterna de almas.

 

É curial  esclarecer a toda sociedade que o laudo da necropsia venha elucidar a causa mortis e o tempo da morte além de demonstrar até aonde a carne registrou esse “amor bandido”.

 

O que vem a provar que não era um mero namoro, mas uma convivência mais profunda e, portanto, mais vinculante, aumentando a possessividade.

 

No entanto, nada disso justifica o desfecho da tragédia.

 

Outro fato interessante seria a volta da Naiara, que nos faz pressentir um triângulo convivencional. E, coloca em pauta os valores como amizade, lealdade e, cumplicidade.

 

Nesse particular, cabe um alerta aos pais, verifiquem sempre que possível as amizades e vínculos sociais de seus filhos.

 

Às vezes, o perigo[2] mora ao lado e, sequer o percebemos, até que um estopim desencadeie uma seqüência de transtornos ou atrocidades.

 

Perguntas que não querem calar: Naiara ao retornar ao cativeiro, seja por vontade própria ou não, permaneceu junto dos amigos.

 

Questiona-se: Pretendia se autopromover ou apenas cuidar da amiga que já teria sido alvejada pelo seqüestrador? Quais seriam suas verdadeiras intenções?

 

Permitam-nos mencionar o adágio popular cruel: “de boas intenções, o inferno está cheio!”.

 

De fato, o retorno de Naiara não poderia ser autorizado, nem mesmo por seus pais, com base na tutela protetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente[3], que veda a exposição de menores a situações de risco de vida. Bem como o Código Penal que igualmente veda esta permissividade expositiva.

 

Pois, deveria a polícia ter impedido o retorno de Naiara ao cativeiro.

 

Aguardemos ansiosos, o depoimento de Naiara que poderá definitivamente aclarar os fatos que antecederam ao desfecho trágico. Procurar o culpado, além do óbvio, é inútil.

 

Talvez consigamos com a tragédia aprender sobre como devemos educar os filhos principalmente no aspecto emocional.

 

O diálogo e exercício de amor podem resgatar a saúde das famílias e a perpetuação da espécie.

 

Ou seja, conseguir entender esse intrincamento do convívio social e, detectar as causas que possam ser tratadas para se evitar novas tragédias.

 

Pois quando se morre aos quinze anos, de forma tão brutal e repentina, uma geração inteira corre o sério risco de deixar de existir por causa do canibalismo sentimental.

 

O curioso foi saber que o seqüestrador segundo o depoimento recente de Naiara aponta que Lindemberg se sentia o “príncipe do gueto”, logo após desferir os tiros[4] em Eloá, demonstrando o que era outrora amor, tornara-se apenas uma alavanca para galgar a fama e o respeito no submundo.

 

Precisamos desatar os nós deste faroeste caboclo. E, sendo livres e sobreviventes, lutarmos pela soberania da vida mesmo até em face de nossos sentimentos.

 

 

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[1] Homicídio doloso qualificado é aquele cuja prática ocorre alguma das hipóteses enumeradas no §2º do art. 121 do CP. As circunstâncias qualificadoras podem ser divididas por motivo (paga, promessa de recompensa, ou outro motivo torpe ou fútil, incisos I e II); por meio (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio que possa resultar perigo comum, inciso III); por modos (traição, emboscada, mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, inciso IV); e por finalidade (para assegurar a execução, a ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime, inciso V).

 

[2]  Cumpre esclarecer que o motivo torpe é aquele que é baixo, vil, repugnante e que causa repulsa à coletividade. A vingança pode ser ou não um motivo torpe. O ciúme, por si só, não pode ser equiparado ao motivo torpe no entendimento de Celso Delmanto (in Código Penal Comentado, 6ª edição atualizada, 2002, Editora Renovar).

[3] Vide ECA, artigo 249, que prevê crime de quem descumprir dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio poder (poder familiar) ou decorrente de tutela ou guarda, bem como determinação de autoridade judiciária ou Conselho Tutelar

[4]Motivo fútil é aquele destituído de razão que deixa o crime, esvaziado de motivação. Não equivale ao motivo injusto. Deve ser ter como parâmetro o comportamento do homem médio. O motivo fútil não pode coexistir com o homicídio privilegiado.

Por outro lado, caracteriza-se como torpe o motivo, se o acusado par satisfazer reprovável ódio vingativo, age  com o intuito de desforra, pelo fato de antes ter sido surrado pela vítima.

Como citar e referenciar este artigo:
HEUSELER, Gisele Leite & Denise. A Tragédia de Santo André. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/a-tragedia-de-santo-andre/ Acesso em: 29 mar. 2024