Sociedade

O Pensamento de Miguel Reale

O Pensamento de Miguel Reale

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

Faleceu Miguel Reale. De longe, o maior jurista e o maior filósofo brasileiro.

 

Sua teoria tridimensional do direito supera, em visão dialética, todas as tridimensionalidades conformadas anteriormente por sua concreção à realidade, tirando do campo da mera teoria a fenomenologia jurídica.

 

Espanha e Portugal, alguns anos atrás, reuniram filósofos e juristas de todo o mundo para a reflexão sobre a obra de Miguel Reale, sendo sua compreensão amplificada do direito, além do mero formalismo instrumental, descortinadora da verdadeira função do operador do direito, que deve ir muito além do singelo domínio das técnicas legislativas e da percepção do direito posto.

 

O dinamismo de sua teoria tridimensional, em que o fato valorado gera norma, que se transforma em novo fato a gerar nova norma modificadora após a valorização da realidade a ser juridicizada, em um infinito processo dialético de tese, antítese e síntese, a gerar nova tese, talvez tenha sido a maior contribuição ao pensamento jurídico mundial durante o século 20.

 

Talvez por sua densa formação filosófica é que também permitiu notável reanálise da fenomenologia husserliana.

 

Miguel Reale, entretanto, não era apenas filósofo e jurista insuperável. Era pessoa de fino trato, tendo, ainda nas últimas reuniões em que participou na Academia Paulista de Letras, nos meses de fevereiro e março, intensamente debatido com seus confrades e confreiras temas da atualidade cultural.

 

Fui seu aluno na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1958 e continuo ainda hoje seu aluno. Distinguiu-me, há algum tempo, com o maior privilégio que um jurista pode ter, aquele de escrever uma apresentação ao seu notável livro O conflito das Ideologias, em que sugere uma terceira via entre as divergências neoliberais e socialistas.

 

Dificilmente o Brasil terá no futuro alguém da dimensão maiúscula de Miguel Reale. E eu, pessoalmente seu aluno e amigo, sofro ainda mais, porque sempre tive nele o grande exemplo que um operador de direito deve ter. O do grande homem e o do fantástico ser humano.

 

Perdeu o Brasil uma de suas maiores expressões culturais. Homem digno de Plutarco, foi admirável ser humano, legando à intelectualidade brasileira obra maiúscula.

 

Não é fácil o exame de sua polifacetada personalidade e estupenda bagagem jusfilosófica, jurídica e literária. Desde a figura do poeta, do ensaísta, do cronista até aquela do jurista e do filósofo, o toque diferencial de seus escritos é manifesto.

 

Sua obra é de variado espectro, pois cultivou, também com igual grandeza, o estudo histórico e a reflexão literária, sobre manter percuciente observação da política brasileira, com escritos críticos e orientadores, tendo sido, Miguel Reale, parte da história nacional, no seu desenrolar nestes últimos 60 anos.

 

Merece especial relevo, em seus estudos, a crítica que fez a doutrina hegeliana, à luz da fenomenologia de Husserl, assim como a análise do pensamento de Hegel, em face de sua concepção ontognoseológica (teoria da relação entre o ser que conhece e o objeto conhecido) e sua “dialética da complementariedade”, objeto amplamente exposto no livro “Experiência e Cultura” de 1977, traduzido para o francês em 1990.

 

Bertrand Russel, ao estudar a dialética de Hegel, acentua a experiência histórica que a inspirou, levando o filósofo da “Fenomenologia do Espírito” a entender que a guerra era superior à paz, visto que as nações que não tinham inimigos terminavam por se tornar fracas e decadentes. Reale, todavia, vai além e procura, não nas “oposições”, mas na “complementariedade” explicitar o pensamento de Hegel, sem desconhecer a influência fenomênica, mas com adaptação ao pensamento de Husserl, nem sempre fácil de ser aferido.

 

Não só este aspecto, original e único, da visão realiana merece estudo, mas também sua contribuição à formulação “conjectural ou plausível”, que ele eleva a categoria epistomológica (teoria do conhecimento), diversa da concepção probalística, pois facetas da genialidade do filósofo pátrio que vêm sendo analisadas em todo em mundo.

 

No campo do Direito, sua teoria tridimensional permanece incólume à crítica. O Direito resulta da apreensão do fato, valorizado na norma. Fato, valor e norma conformam, pois, o “jus”. Nesta sua visão do tridimensionalismo dinâmico, as três componências do Direito restam equivalentes, lembrando-se que a arte de “valorar” bem é que faz o Direito justo na norma que o recebe, pois, para mim, ainda o Direito é a “arte” do justo e do bom”, na linha da lição do romano Celso.

 

Ao contrário dos formalistas, que vêem no fenômeno jurídico apenas a norma, decompromissada de seus componentes fáticos e axiológicos (teoria do valor) –com o que justificam inclusive as ditaduras, ao retirarem o conteúdo ético da norma– a teoria tridimensional abrange o fenômeno jurídico pleno, que não cabe ao intérprete do Direito desconhecer.

 

Por esta razão, o Professor Javier Garcia Medina, da Universidade de Valladolid, escreveu admirável livro intitulado “Teoria Integral del Derecho en el pensamiento de Miguel Reale”, demonstrando a importância do pensamento jurídico do jusfilósofo brasileiro no Direito Contemporâneo.

 

Voltando, todavia, a sua teoria tridimensional, é de se lembrar que ao elaborar uma nova apreensão fenomênica desta permanente concepção, ofertando a dialética da complementariedade e mostrando a interação de fato, valor e norma, que produz nova interação, por força de novas tensões veiculadas pela jurisprudência ou pelo trabalho legislativo, não deixou de enfrentar questão que considerou de particular relevância, qual seja, a das três fases que permitem a percepção do direito aplicado. São eles: os fundamentos do direito natural, a resultante do direito positivo e a conseqüência do direito interpretado. Os primeiros indicam as vertentes, embora em uma visão historicista-axiológica; a segunda conforma a lei posta pelos produtores da norma; e a terceira, a aplicação da lei, em face do trabalho hermenêutico de intérpretes e do Judiciário.

 

Lembrava o eminente mestre e orgulho da filosofia e do direito brasileiros, que a teoria tridimensional não é nova, rememorando mesmo os escritos de Vanini e Del Vecchio, em que já visualisavam uma faceta “gnoseológica”, outra “fenomenológica” e outra “deontológica” no direito. Acrescentou, todavia, que, em sua concepção original e universal, o direito corresponde à normatização dos fatos influenciados por valores.

 

Na sua concepção, o filósofo, o sociólogo e o jurista poderiam examinar as mesmas realidades, o primeiro voltado mais à deontologia ou aos valores, o segundo à fenomenologia ou aos fatos e o terceiro à norma ou a “gnoseologia jurídica”.

 

O Direito, portanto, não se reduz a uma instrumentalização normativa, mas é o resultado do fenômeno aprendido pelos operadores da norma, à luz de valores, que, teoricamente, seriam os mais necessários, naquele período e naquele espaço, para serem legalizados.

 

Embora na concepção realiana, o direito natural resulte de um processo historicista-axiológico –e não como na visão tomista, em que independe da história, porque inerente ao ser humano– reconhece que o vigor e o permanente ressurgir do direito natural decorre de que, no ser humano, o “ser” implica um permanente “dever ser”.

 

Estamos todos de luto. As luzes de sua vida e sua obra, todavia, continuarão a iluminar o futuro do país.

 

 

* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Pensamento de Miguel Reale. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/o-pensamento-de-miguel-reale/ Acesso em: 29 mar. 2024