Sociedade

Sigilo bancário

Sigilo bancário

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Existem várias teorias sobre a natureza jurídica do sigilo bancário. Examinaremos sucintamente as seguintes: teoria consuetudinária, teoria legalista, teoria do segredo profissional e teoria do direito de personalidade. Pela teoria consuetudinária, o sigilo bancário, através de sua prática ao longo do tempo, teria se tornado uma obrigação jurídica. As atividades bancárias, sendo atos de comércio, deveriam seguir o mesmo regime das práticas comerciais. Essa teoria é bastante prestigiada na Argentina. Pela teoria legalista, o sigilo decorre de uma norma legal, que cria a obrigação jurídica. Sabemos, entretanto, que o sigilo é observado, também, nos países onde não há lei prescrevendo a preservação de dados bancários. Pela teoria do segredo profissional, a atividade bancária é incluída entre aquelas cujo exercício leva a tomar conhecimento de determinados fatos relacionados com a vida íntima das pessoas. Costuma-se objetar que essa teoria não fornece o fundamento do sigilo, a exemplo da teoria legalista, que se assenta na norma coativa como forma de expressão do sigilo. Pela teoria do direito de personalidade, o sigilo bancário nada mais seria do que a manifestação do direito à intimidade e do direito à privacidade; faria parte integrante dos direitos de personalidade com vistas ao desenvolvimento da criatura humana. Ente nós, prestigiam essa teoria João Bernardino Gonzaga, Milton Fernandes, José Serpa Santa Maria, Carlos Covello e outros. A jurisprudência do STJ, também, tem consagrado esse entendimento.

    

Examinemos com maior detença essa última teoria. O direito à privacidade é praticamente reconhecido em todas as nações civilizadas. Alguns países como Portugal, Brasil etc. inseriram esse direito nas respectivas Cartas Políticas. Na França, esse direito foi introduzido no art. 22 ao Código Civil pela Lei 70.643/70. Na Itália, vigora a Lei 484/55 sobre a matéria. No plano internacional, proclamam esse direito: a Carta das Nações Unidas, de 1945; a Organização dos Estados Americanos, de 1948; a Declaração dos Direitos do Homem, Americana e Universal, de 1948, o Pacto sobre Direitos Políticos e Civis da ONU; a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos; a Convenção Européia para Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, de 1950.

    

Temos a convicção de que não se pode associar o sigilo bancário, renunciável por vontade de seu titular, com os direitos da personalidade que são irrenunciáveis e que são aplicados em menor escala em relação às pessoas jurídicas. Outrossim, todos nascem com direito a ter uma vida íntima, mas não nascem com direito ao sigilo bancário, mesmo porque muitos dos indivíduos nunca virão a ser clientes de bancos. A maioria dos países, membros ou não da OCDE, prescrevem em suas legislações internas a possibilidade de acesso às informações bancárias por parte dos agentes do fisco a fim de evitar evasão artificial de lucros e receitas fiscais. Aliás, o Conselho da OCDE recomenda a inserção dessa faculdade do fisco nas legislações internas dos países não filiados a essa organização internacional. Ultimamente, o acesso às informações bancárias vem sendo adotado pelos diferentes países como instrumento de combate ao tráfico de drogas e aos esquemas de lavagens de dinheiro. O fato de a maioria dos países permitirem a quebra do sigilo bancário para preservação do interesse público (eficiência na atuação do fisco e combate à criminalidade) demonstra que essa espécie de sigilo não está ligada à intimidade da pessoa, isto é, o sigilo bancário não seria espécie do direito à intimidade que, como expressão do direito da personalidade estaria abrangido pela proteção constitucional inserida nas Cartas Políticas desses países. Na Europa, Portugal foi o último país a permitir a quebra do sigilo bancário. Quase todos os países incorporaram em seus ordenamentos jurídicos, em níveis constitucional ou infraconstitucional, norma semelhante aquela expressa o art. 5º, inciso X da Constituição Federal Brasileira:

 

“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

    

Preferimos ficar com a teoria consuetudinária, associada à teoria do segredo profissional, que melhor fundamenta o sigilo bancário. As atividades bancárias, caracterizando-se como atividades comerciais devem seguir as mesmas regras que regem o comércio. O sigilo é mera decorrência de atividade comercial, desempenhada pelos bancos, que se insere na órbita privada, de cunho reservado, porém, não absolutamente dissociada da esfera pública, porque os Estados, principalmente nos dias atuais, intervêm na atividade econômica como agente normativo e regulador. O comércio deve atender às exigências do bem comum e, obviamente, da lei. Assim como não pode um comerciante vender mercadorias proibidas o banqueiro não pode compactuar-se com esquemas de lavagens de dinheiro, por exemplo. Os bancos guardam sigilo acerca das operações de seus clientes por vontade própria, por força do hábito ou obrigados por leis. Entre nós, essa questão está disciplinada em níveis constitucional e infraconstitucional. Prescreve o art. 5o, inciso XII da Constituição Federal que:

 

 

“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

    

Simples exame ocular do texto permite vislumbrar, de um lado, o sigilo absoluto em relação à correspondência, às comunicações telegráficas e aos dados. Comunicação de dados seria a expressão correta. De outro lado, no que concerne às comunicações telefônicas o sigilo é relativo, porque pode ser quebrado por ordem judicial, nas hipóteses previstas em lei, para investigação criminal ou instrução processual penal. Hoje, a matéria é disciplinada pela Lei nº 9.296, de 24 de junho de 1996.

    

O sigilo de comunicação de dados a que se refere o texto constitucional é espécie do gênero sigilo profissional ou segredo profissional, o que abarca o chamado sigilo bancário. Abrange as operações financeiras do cliente do Banco, seus extratos, o uso de cartões de crédito, o cadastro de bens etc. Por isso, no entender do Superior Tribunal de Justiça o sigilo bancário constituiria espécie de direito à intimidade consagrado no art. 5o, inciso X da CF (Ag. Reg. 187/96-DF, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJ de 16/9/96, p. 33.651).

    

A jurisprudência de nossos tribunais não tem reconhecido, entretanto, direito absoluto ao chamado sigilo bancário, conferindo ao texto da Magna Carta interpretação que resguarda o superior interesse público. De fato, a garantia da discrição, traduzida pela obrigação do banqueiro de guardar segredo sobre operações financeiras de seu cliente, ao mesmo tempo em que protege o interesse individual, via de regra, consulta o interesse da coletividade e, às vezes, o interesse do próprio Estado, como é o caso da Suíça. Porém, outras vezes, surgem interesses conflitantes quando, então, impõe-se a prevalência do interesse público. Daí a flexibilização do sigilo bancário por meio de legislação infraconstitucional.

    

Dessa forma, a Lei nº 4.595, de 31/12/64, que instituiu o Sistema Financeiro Nacional, recepcionada como lei complementar pela Constituição Federal vigente (art. 192), disciplinou o sigilo bancário em seu artigo 38. O sigilo aí previsto pode ser quebrado pelo Poder Judiciário e pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (§§ 1o e 3o). Tem-se entendido que o Ministério Público não detém o poder de romper o sigilo. Mesmo em face da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei nº 8.626/93, que consagra o poder de requisição, a jurisprudência dominante tem sido no sentido de que a quebra do sigilo bancário só pode ocorrer nas hipóteses do art. 38 da Lei nº 4.595/95 que, por ter natureza de lei complementar, só pode ser alterada por uma outra lei complementar, não sendo o caso da Lei nº 8.626/93 que, aliás, não tem matriz constitucional no que range à quebra de sigilo bancário.

 

    

Dispõem os §§ 5o e 6o do art. 38 da lei bancária:

 

“§ 5o – Os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados somente poderão proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos, quando houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensáveis pela autoridade competente”.

“§ 6o – O disposto no parágrafo anterior se aplica igualmente à prestação de esclarecimentos e informes pelas instituições financeiras às autoridades fiscais, devendo sempre estas e os exames serem conservados em sigilo, não podendo ser utilizados senão reservadamente”.

 

    

O CTN, por sua vez, dispõe em seu artigo 197:

 

“Art. 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros:

I – ……………………………………………………………

II – os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras;

Parágrafo único. A obrigação prevista neste artigo não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, oficio, função, ministério, atividade ou profissão”.

    

Em função do disposto no parágrafo único do art. 197 do CTN (ressalva do sigilo), tem-se dado interpretação restritiva ao § 5o do art. 38 da Lei nº 4.595/95, que só permite a quebra do sigilo bancário na hipótese em que houver processo instaurado e a autoridade competente julgar indispensáveis os exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos. Pela interpretação conjugada dos textos do CTN e da Lei nº 4.595/95 caberia às instituições financeiras atender às solicitações do Fisco, desde que mantido o sigilo acerca de qualquer informação ou documento pertinente à movimentação ativa e passiva do correntista/contribuinte (Resp nº 37.566/93-RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 28/4/94, p. 6.294). Assim, o § 5o do art. 38 da Lei Bancária não teria aplicação plena, afetado que foi pela superveniência do parágrafo único do art. 197 do CTN. Só o Poder Judiciário poderia quebrar o sigilo bancário.

     

A Lei Complementar nº 105, de 10-1-2001, permite a quebra do sigilo bancário pela Receita Federal. O art. 5º prevê a regulamentação dos critérios para que as instituições financeiras informem as operações realizadas por seus clientes, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor. Essa regulamentação foi feita, na mesma data da lei, pelo Decreto nº 3.724/2001. O art. 6º da lei, praticamente, reproduz o que está prescrito no § 5º do art. 38 da Lei Bancária condicionando a quebra do sigilo à existência prévia de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e a indispensabilidade do exame de dados a juízo da autoridade administrativa competente.

    

Por se tratar de regulamentação por lei complementar não se pode mais opor a restrição contida no § único do art. 197 do CTN. Contudo, aqui cabe uma indagação: existe princípio constitucional da reserva de jurisdição no que tange ao sigilo de dados ou ao sigilo bancário? Dos onze ministros do STF apenas cinco deles (Min. Celso de Mello, Min. Marco Aurélio, Min. Sepúlveda Pertence, Min. Neri da Silveira e Min. Carlos Velloso) até hoje, reconheceram a existência da aludida reserva de jurisdição (MS nº 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, de 12-5-00, p. 20). A reserva absoluta de jurisdição no entender do Pleno da Corte Suprema, só existiria para resguardar outras espécies de garantias como a busca domiciliar (art. 5º, XI da CF), a interceptação telefônica (art. 5º, XII da CF) e a decretação de prisão, salvo o caso de flagrância (art. 5º, LXI da CF).

    

A posição do STF, até agora, é no sentido de que a questão da quebra do sigilo bancário resolve-se com observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário (RE 219.970, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ, de 10-09-99, p. 23). Evidentemente essas normas infraconstitucionais teriam que se subordinar ao preceito constitucional como bem explicitado no voto do Min. Carlos Velloso. E as normas da legislação infraconstitucional disciplinando o acesso a dados bancários tem sua matriz constitucional no § 1º do art. 145 que assim prescreve:

 

§ 1º – Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

    

O que se exige, portanto, para que autoridades administrativas fiscais quebrem o sigilo bancário é a observância do princípio constitucional do devido processo legal. A LC nº 105/2001, como se depreende de seu art. 6º, definiu a hipótese de quebra do sigilo bancário, circunscrevendo-a ao caso de existência de processo administrativo ou procedimento fiscal instaurado contra o contribuinte e a indispensabilidade do acesso às informações bancárias a juízo da autoridade administrativa competente, tudo nos termos do que dispunha o art. 38, 5º e 6º da Lei Bancária. Mas, onde o devido processo legal reclamado pela Corte Suprema? O procedimento para a quebra do sigilo está disciplinado pelo Decreto nº 3.724/2001. Ora, o princípio do devido processo legal abrange sobretudo, o procedimento a ser observado pela autoridade administrativa fiscal. Isso é elementar em Direito, descabendo maiores considerações a respeito. Não adianta a lei acenar com a imposição da pena de um a quatro anos de reclusão ao responsável pela quebra do sigilo fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar (na verdade, uma única hipótese) se essa lei não estabeleceu totalmente o devido processo legal, deixando por conta de um decreto regulamentador a sua complementação. Tanto é que o Decreto 3.724/2001, ao regulamentar a lei extrapolou os seus estritos termos chegando a criar uma absurda hipótese criminal, ofendendo o universal princípio nullum crimen nulla poena sine lege. Um decreto editado, ao sabor dos interesses momentâneos do fisco, sem a participação da vontade popular, representada por lei emanada do Parlamento, não trará a necessária segurança das relações jurídicas no âmbito do sistema financeiro. Outrossim, até hoje, não se conhece decisão condenatória de qualquer autoridade administrativa por crime de excesso de exação fiscal, definido no § 1º do art. 316 do Código Penal, apesar de freqüente a cobrança de tributos declarados inconstitucionais pelo STF.

 

    

Em face do exposto concluímos:

 

Não é de se fundamentar o sigilo bancário na teoria do direito de personalidade porque:

o sigilo já existia antes do reconhecimento dos direitos de personalidade;

o sigilo é renunciável por vontade de seu titular; e os direitos de personalidade não os são;

todos nascem com direito a ter uma vida privada e íntima, mas ninguém nasce com direito ao sigilo bancário, mesmo porque muitos dos indivíduos nem chegarão a ser clientes de um banco;

essa teoria relativiza o sigilo em relação às pessoas jurídicas, pois, embora não totalmente desprovidas do direitos de personalidade, tais direitos são aplicados em escala bem menor se comparados aos direitos de personalidade das pessoas físicas;

finalmente, afigura-se paradoxal a invocação do sigilo fundado no inciso X do art. 5º da CF se todos sabemos que existe uma rede integrada de informações para apontar ao comércio em geral os emitentes de cheques sem fundos, os que tiveram contas encerradas ou aqueles inadimplentes no mundo das obrigações; e mais, os bancos, através do seu setor de cadastro, costumam transmitir, reservadamente, informações acerca do perfil econômico-financeiro de seus clientes.

O sigilo bancário fundamenta-se na teoria consuetudinária e na teoria do segredo profissional e, entre nós, tem a sua garantia assegurada pelo inciso XII, do art. 5º da CF, que teria caráter absoluto em comparação ao sigilo de comunicações telefônicas, porque o própria dicção do texto constitucional conduz a isso. Entretanto, o STF não tem reconhecido caráter absoluto a esse sigilo e nem reserva de jurisdição nessa matéria. Contenta-se com a observância do devido processo legal para a quebra desse sigilo.

A Lei Complementar, apesar de ter estabelecido a hipótese de quebra de sigilo bancário, removendo o obstáculo do parágrafo único do art. 197 do CTN, deixou de estabelecer por completo o devido processo legal, relegando essa matéria ao decreto regulamentar. O Decreto nº 3.724/2001 extrapolou dos limites da lei e chegou ao cúmulo de instituir uma hipótese criminal com ofensa ao princípio do nullum crimen nulla poena sine lege.

Logo, na ausência do devido processo legal, reclamado pela Corte Suprema, cabe ao Judiciário examinar cada caso concreto à luz das disposições da LC nº 105/2001 para aferir a imprescindibilidade do acesso a dados bancários, afirmada pela autoridade fiscal. Não houve, pois, mudança substancial com a advento da lei complementar em questão, mas facilitou a aferição pelo Judiciário dos requisitos legais autorizadores da quebra do sigilo.

 

O certo é que em uma conjuntura, onde o volume de dinheiro proveniente de tráfico de drogas chega a 3% do PIB mundial, segundo as estatísticas da ONU, não se pode falar em sigilo absoluto, de sorte a servir de manto protetor dos contrabandistas, dos fraudadores do fisco e dos criminosos de colarinho branco.

 

SP, 25.10.01.

 

 

*Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Sigilo bancário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/sigilo-bancario/ Acesso em: 29 mar. 2024