Sociedade

O Balão e a Transgressão

 

 

Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova Iorque encontrou uma cidade com alto grau de criminalidade e deixou esta mesma com uma grande redução do índice de criminalidade.

 

Seu plano de segurança pública denominado Broken Windows (janelas quebradas) consistia na aplicação do princípio de que a mais leve transgressão da lei não devia ser perdoada pelo “princípio de insignificância” adotado no Brasil, mas sim devidamente punida. Desse modo, se um marginal quebrava uma janela ou cometia qualquer outra pequena infração da lei, ele podia contar com a certeza da punição.

 

No Brasil, tanto as pequenas transgressões como os grandes crimes de colarinho branco, por diferentes motivos, quase sempre contam com a certeza da impunidade. As primeiras têm se transformado em rotina a aplicação do “princípio da insignificância”, de acordo com qual não se pune o ladrão que furta um “tostão” e os segundos de acordo com os quais não se pune um ladrão que se apropria indebitamente de muito mais de um milhão.

 

Não se atenta para o que é relevante e o que é relevante nesses casos é um indivíduo, deste ou daquele modo, se apoderar de propriedade alheia, seja ele coisa de pouco valor ou de muito.

 

O motivo das primeiras é uma visão social extremamente distorcida de que furtos de pequena monta são geralmente praticados por pobres e os pobres são encarados como vítimas indefesas do “cruel sistema capitalista”.

 

O motivo dos segundos se deve a uma lamentável exorbitância do nosso direito processual cuja quantidade de recursos permite ao bom advogado – que os criminosos de colarinho branco podem contratar – empurrar um processo com a barriga até a prescrição do crime. É por isso que todo grande bandoleiro tem seu grande chicaneiro.

 

E é interessante observar que, no direito angloamericano, simplesmente não existe essa figura jurídica. Vide o caso do cineasta Roman Polanski que terá que responder, na Justiça americana, pelo estupro de uma adolescente cometido há mais de 25 anos, apesar da mídia esquerdista americana dizer que se trata de moralismo burguês e preconceito em relação ao criador do O Bebê de Rosemary, e apesar da vítima ter perdoado seu ofensor, coisa que pode ser considerada uma bela virtude cristã, mas que é juridicamente irrelevante aos olhos do Ministério Público, tanto no direito americano como no brasileiro.

 

Passamos agora a examinar um caso de “pequena transgressão” tipicamente brasileiro. Desde quando eu era criança até hoje persiste um nefasto costume: talvez só tenha diminuído um pouco – e em certos lugares – a freqüência com que ele é desempenhado. Refiro-me ao costume tradicional de soltar balões.

 

Trata-se, na realidade, de um verdadeiro ritual perversamente lúdico levado a cabo em duas grandes etapas. Na primeira, um grupo de apedeutas inconseqüentes se reúne e munidos de papéis finos de variadas cores, preparação de uma bucha, etc.preparam o balão que, quanto maior e mais enfeitado, melhor.

 

Na segunda erguem seu artefato e aguardam que ele fique cheio de ar aquecido para que seja soltado na direção do céu. Aí então todos ficam embevecidos com a contemplação estética do balão todo iluminado, até ele se perder de vista.

 

O problema, no entanto, é semelhante ao de tiros dados para o ar: a subida pode ser considerada muito gratificante, mas é na descida que se revela o efeito negativo. Assim como as balas podem encontrar a cabeça de um transeunte, a bucha do balão pode produzir incêndios e danos à rede elétrica.

 

Visando à minimização de possíveis danos, tempos atrás foi inventado um tal de “balão japonês”, um pequeno artefato com uma pequena bucha que, geralmente, se apagava facilmente no ar. Posteriormente, com vistas à inibição dessa prática de alto risco, soltar balões foi transformado em crime. Mas até hoje não se conhece um só caso de quem tenha sido punido por essa transgressão da lei.

 

Em parte, isso é devido à generalizada impunidade que assola o País, mas em parte também pelas dificuldades da polícia de identificar os transgressores. O balão só é visto quando já está em movimento no céu ou quando está em queda, de tal modo que é realmente difícil localizar seu ponto de partida, juntamente com aqueles que o soltaram.

 

Mas podemos dizer que a lei, visando à proteção ambiental e prejuízos para o patrimônio público e privado, conseguiu inibir essa detestável prática social? Sinceramente, não sabemos dizer nada sobre a possível eficácia da lei, mas ficamos em dúvida sobre a mesma.

 

Como é amplamente sabido, soltar balão é uma das atividades típicas das festas juninas. Tempos atrás só se soltavam balões nestes festejos, mas, apesar dos mesmos se encontrarem em via de extinção – a não ser em cidades do Nordeste para aumentar a arrecadação das respectivas prefeituras – continuam sendo soltos muitos grandes balões e o que, ao menos para mim, é uma novidade: essa prática ser realizada também no Dia da Criança.

 

Vi e ouvi num jornal da TV: dois ou três indivíduos numa canoa no mar muito perto do Aeroporto Tom Jobim (o do Galeão) acendendo a bucha de um enorme balão. Vi também um outro balão caído sendo levado por um policial, onde estava escrito um nome de uma criança.

 

Temos assim um conflito entre uma norma legal extremamente oportuna e um arraigado costume muito difícil de ser erradicado por lei, mas talvez menos difícil de ser posto de lado mediante educação do povo. E não me refiro somente à educação formal fornecida pelo ensino público ou privado, mas também – e principalmente! – à educação informal que começa em casa e pode ter continuidade através de campanhas educativas.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. O Balão e a Transgressão. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/o-balao-e-a-transgressao/ Acesso em: 29 mar. 2024