Processo Civil

IRDR – Incidente de Demandas Repetitivas no sistema processual brasileiro

A Lei 13.105/2015 instituiu o primeiro Código de Processo Civil democrático no Brasil e, fixou microssistema destinado à resolução de casos repetitivos que compreende as técnicas de julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos e o incidente de resolução das demandas repetitivas (IRDR) que visam oferecer a adequada tutela jurisdicional de cunho diferenciado para a litigância em massa.

O fenômeno igualmente é chamado de litigância repetitiva ou seriada que abriga tanto as demandas homogêneas referentes às pretensões isomórficas posto que fundadas em relações substanciais análogas ou questões comuns que se repete em processos e cujas pretensões são diferenciadas.

O tradicional processo civil de base individualista onde vige o núcleo central correspondente à lide não se mostrou eficiente para dirimir as demandas repetitivas.

Da mesma forma que o processo civil coletivo significou expressivo progresso na árdua tarefa de tutelar direitos no âmbito coletivo, mas, por vezes, mostrou-se descabido e até mesmo ineficaz para as manipulações oriundas da litigância repetitiva.

Infelizmente não houve desenvolvida uma dogmática específica sobre as técnicas processuais diferenciadas. E, ainda hoje, muitos doutrinadores e estudiosos ainda cogitam e aplicam sob a lógica da litigiosidade tradicional subjetiva, bilateral, ou quando muito, são assimilados com o processo coletivo, em especial com as ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos[1], o que acarreta a transposição de institutos próprios da dogmática coletiva para tais técnicas diferenciadas.

Ainda hoje muitos estudiosos ainda pensam e aplicam sob a lógica da litigiosidade tradicional subjetiva, bilateral, ou quando muito, são assimilados com o processo coletivo, em especial com as ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos, o que acarreta a mera transposição de institutos próprios da dogmática coletiva para tais técnicas diferenciadas.

Tem-se muito a adaptar-se os fenômenos da litigiosidade repetitiva aos moldes pré-existentes no processo individual e do processo coletivo[2].

Em termos de técnicas gerenciais, merece destaque especial a catalogação de sentenças-tipo (a partir de casos frequentes), o julgamento em bloco de processos e os mutirões de conciliação voltados para promoção de acordo em casos repetitivos.

Ainda em termos de práticas gerenciais voltadas para a disciplina de demandas repetitivas estão os mutirões de conciliação organizados a partir de determinado litigante repetitivo (por exemplo: um banco, uma concessionária de serviços, um grande varejista) ou certos assuntos relacionados com esses litigantes (por exemplo: ações de DPVAT, Sistema Financeiro de Habitação, renegociação de dívidas bancárias).

Apesar de não serem práticas decisórias propriamente ditas, estudos empíricos demonstram que muitas vezes nesses mutirões as condições de acordo são previamente definidas entre o Judiciário e os grandes litigantes, amoldando-se em minutas-padrão com margens de negociação predefinidas.

Os mutirões também podem ser considerados como práticas de gerenciamento que visam lidar com demandas repetitivas cuja repercussão é a outorga de desfechos padronizados para casos considerados similares.

Diante da efervescência social, o dinamismo das relações sociais e políticas passam a exigir a reformulação de concepções das concepções tradicionais sobre os poderes do Estado, principalmente o Judiciário, pressiona a revisitação do conceito de jurisdição, a reestruturação do processo e, também da ideia de lide como elemento central de toda teoria geral do processo.

A lógica do sistema de precedentes, por sua vez, é cada vez mais presente em nosso sistema jurídico, dadas as exigências de uniformidade, estabilidade e coerência na interpretação e na aplicação do direito.

No Brasil, temos um sistema híbrido com a composição de decisões judiciais lastreadas em precedentes, com a adaptação ao ordenamento jurídico previsto no civil law. Apesar de nossa raiz historicamente ser ligada ao sistema jurídico romano-germânico, com nítida feição de civil law.

A tradição jurídica do civil law, sob a forte influência da Revolução Francesa, descaracterizou-se com a evolução da sociedade. O magistrado, baseado na corrente positivista, antes vetado de interpretar a legislação, foi aos poucos trazendo para si essa função interpretativa, principalmente com as novas definições de direito e da jurisdição, fundamentado pelas ideias do neoconstitucionalismo.

Afinal, com o neoconstitucionalismo e a atividade do juiz por meio de efetivação das regras abertas originou-se um modelo de magistrado mais atento com o controle da constitucionalidade das leis no caso concreto e com a real concretização dos direitos fundamentais. O princípio da legalidade, antes com fundamentação apenas formal, passa a ter uma configuração material, com maior aderência ao conteúdo da legislação.

A lei deve ser aplicada em conformidade com os direitos fundamentais. Essa função exercitada pelo juiz muito se confunde com o modelo do julgador da tradição do common law, a exemplo do direito norte-americano e inglês.

Imperioso entender que a segurança jurídica, muito forte no civil law por conta da estrita aplicabilidade da lei, não tem como se afastar do sistema de precedentes, onde casos iguais devem ser julgados do mesmo modo, dando racionalidade ao direito. Esse sistema não é restrito ao desenvolvimento do direito do common law.

O poder dos precedentes[3] obrigatórios é importante para manter coesão ao sistema jurídico, a isonomia, a estabilidade, a previsibilidade e a efetividade das decisões das Cortes Supremas.

Hermes Zaneti Jr propõe in litteris:

             “Os precedentes […] não se confundem também com as decisões judiciais. Isso porque as decisões judiciais, mesmo que exaradas pelos tribunais superiores ou Cortes Supremas, poderão não constituir precedentes. Neste sentido, duas razões podem ser indicadas para que nem toda decisão judicial seja um precedente:

a) não será precedente a decisão que aplicar lei não-objeto de controvérsia, ou seja, a decisão que apenas refletir a interpretação dada a uma norma legal vinculativa pela própria força da lei não gera um precedente, pois a regra legal é uma razão determinativa, e não depende da força do precedente para ser vinculativa;

b) a decisão pode citar uma decisão anterior, sem fazer qualquer especificação nova ao caso e, portanto, a vinculação decorre do precedente anterior, do caso-precedente, e não da decisão presente no caso-atual […]

Assim como, não será precedente, a decisão que apenas se limitar a indicar a subsunção de fatos ao texto legal, sem apresentar conteúdo interpretativo relevante para o caso-atual e para os casos-futuros”.

É necessário assinalar que o precedente judicial é formado basicamente por duas partes, a saber: as circunstâncias fáticas que nutrem a controvérsia e a tese ou razão jurídica (denominada de ratio decidendi) figurada na fundamentação da decisão.

E sobre o ratio decidendi afirma a boa doutrina que constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto. É tal regra de direito e, jamais de fato que vincula os julgamentos futuros inter alia. A ratio decidendi não é pontuada ou individuada pelo órgão julgador que profere a decisão.

Cabe aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na como precedente, extrair a norma legal (abstraindo-o do caso concreto) que poderá ou não incidir na situação concreta. A submissão ao precedente, comumente referida pela expressão stare decisis, indica o dever de conformar-se às rationes dos precedentes.

O notável doutrinador Daniel Mitidiero dispõe: A percepção de que o magistrado, ao apreciar uma demanda, (re) constrói duas normas jurídicas é fundamental para que possa entender, primeiramente, a diferença entre o efeito vinculante do precedente, na verdade, da ratio decidendi contida num precedente, e o efeito vinculante da coisa julgada erga omnes, presente em determinadas situações.

É imprescindível perceber que a fundamentação da decisão judicial dá ensejo a dois discursos: o primeiro, para a solução de um determinado caso concreto, direcionado aos sujeitos da relação jurídica discutida; o outro, de ordem institucional, dirigido à sociedade, necessariamente com eficácia erga omnes, para apresentar um modelo de solução para outros casos semelhantes àquele.

A norma geral assentada pelo precedente constitui um efeito secundário do decisório, com efeito erga omnes, não dependente de manifestação jurisdicional nesse sentido.

Pode o IRDR ser instaurado quando houver repetição efetiva de processos que versam sobre controvérsia relacionada à questão de direito. Devendo-se, oportunamente, propiciar a participação da sociedade e dos sujeitos, a fim de possibilitar que o tribunal atinja certo padrão decisório que possa ser aplicado às demandas repetitivas.

O cenário é, no mínimo, preocupante pois, a inadequação da tutela de direitos traduz a difícil ou déficit na proteção de relações jurídicas e impede o acesso à justiça.

A feição repetitiva dos conflitos judicializados requereu imperiosa necessidade de adequação da técnica processual e a reinvenção do processo judicial. Pois o devido processo legal dimensionado para os processos individualizados e únicos, quando demonstrou-se ser inadequado para as demandas repetitivas.

Aliás, o processo coletivo já tinha se desenvolvido a partir das necessidades de adequação da tutela tradicional de conflitos emergentes da sociedade contemporânea, o que poderia justificar sua aplicação também à litigiosidade de massa.

A proteção normativa de direitos coletivos passou a ocorrer no ordenamento jurídico brasileiro sobretudo a partir de 1985 com a regulamentação da Lei de Ação Civil Popular (Lei 4.717) embora já fosse prevista desde 1934 no texto constitucional brasileiro.

E, em seguida, na Constituição Federal brasileira de 1988 que ampliou a defesa e garantia dos direitos metaindividuais que fora fortalecido pela Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que aperfeiçoou os meios processuais para tutelá-las, consagrando-se o microssistema jurídico de proteção coletiva de direitos.

Diante da insuficiência da tutela individual[4], cogitou-se se o processo coletivo, pudesse abarcar tais conflitos emergentes e repetitivos. Não obstante a tutela coletiva não se demonstrou amplamente efetiva para solucionar os problemas relacionados à legitimidade repetitiva.

Elpídio Donizetti esclarece: Há muita confusão quanto à amplitude dos efeitos da coisa julgada no processo coletivo, circunstância agravada em decorrência da utilização, pelo legislador, das expressões erga omnes e ultra partes para definir tal amplitude. Na realidade, não é apropriado cogitar em coisa julgada coletiva erga omnes ou ultra partes, visto que o seu alcance se limita ao grupo titular do direito coletivo, não atingindo inúmeras pessoas indistintamente.

Pelo fato de ocorrer a substituição processual da coletividade por entidade ou pessoa designada legalmente para esse fim, a vinculação da coletividade substituída à coisa julgada é natural, pois se trata de parte no sentido material.

Nos termos do art. 103, III, do CDC, a coisa julgada formada em ação coletiva versando sobre direitos individuais homogêneos atingirá, para beneficiar, todas as vítimas e seus sucessores. Trata-se da sistemática de “extensão” subjetiva da coisa julgada coletiva conforme o resultado da lide; cogita-se em “extensão” subjetiva porque o resultado no plano coletivo (para o grupo de indivíduos homogeneamente considerado) é estendido para o individual (isto é, para as vítimas e seus sucessores).

Já pela figura do “transporte”, prescrita no art. 103, § 3°, do CDC, permite-se que, também conforme o resultado da lide e para beneficiar, seja transportada a coisa julgada formada em relação a direitos difusos e coletivos em sentido estrito a terceiros (indivíduos) que não participaram – nem poderiam participar, ao menos para discutir sua pretensão individual – do processo coletivo.

Deve-se cogitar em “transporte” da coisa julgada no caso do art. 103, § 3°, do CDC, e não em sua “extensão”, porque há uma diferença ontológica entre liquidar e executar individualmente uma sentença proferida em demanda coletiva tratando a respeito de direitos individuais homogêneos (divisíveis) e outra prolatada em ação coletiva versando sobre direitos transindividuais (indivisíveis).

Ademais, a figura da “extensão” é passível de críticas no que diz respeito à sua eficácia como instrumento de economia processual[5], o que não ocorre em relação ao “transporte”.

Constata-se não ser possível tutelar todos os conflitos classificados como repetitivos pela via ações coletivas, o que aponta em vazio de normatividade processual que, por si só, já aponta a necessidade de desenvolver uma técnica processual específica, como por certas fragilidades do sistema brasileiro de proteção coletiva de direitos individuais homogêneos.

Vem a doutrina apontar as deficiências como a restrição em relação algumas matérias que poderia ser objeto de tais ações, como as de natureza tributária, a restrição da legitimação ativa da pessoa natural, a falta de critérios para aferir e controlar concretamente a adequação de representatividade a inadequada restrição de autuação de associações, o insuficiente sistema de comunicação da propositura de ações coletivas aos interessados, a condenação genérica e necessidade de execução individual, o sistema de extensão dos efeitos da coisa julgada, a falta de cultura associativa e à tendência à propositura de processos individuais, a ausência de formas adequadas para flexibilização do procedimento e adequação do conflito.

Registra-se farta produção doutrinária apontando os motivos pelos quais o sistema coletivo aos direitos individuais homogêneos, apesar de trazer relevante avanço em termos da tutela de tais direitos não logrou êxito esperado.

A insuficiência da tutela coletiva dos direitos difusos[6] e coletivos em sentido estrito, conotados por individualidade gera o fenômeno das chamadas demandas pseudoindividuais.

Os direitos difusos são metaindividuais e indivisíveis. Mas há uma característica principal que permite uma melhor diferenciação dessa categoria em relação às demais, qual seja: são direitos comuns a um grupo de pessoas não determináveis e, que apenas se encontram unidas em razão de uma situação de fato.

Exemplificando: se uma determinada decisão judicial impõe que uma cláusula de um contrato bancário seja excluída e não mais utilizada, por ter sido considerada abusiva, todos os futuros clientes se beneficiarão dessa nova regra. Daí se pode inferir que todos os consumidores serão os beneficiários, uma vez que são pessoas indeterminadas que, por circunstâncias de tempo e lugar estão expostas a uma prática ilegal.

As três principais características dos direitos coletivos, a saber: transindividuais, indivisíveis e pertencentes a um grupo determinável de pessoas.

Ao mencionar que os beneficiários compõem um grupo determinável de pessoas pode-se entender tanto como uma entidade associativa quanto aquelas que possuem uma relação jurídica base estabelecida com a parte contrária. Fazendo uso do exemplo mencionado acima, compõe um grupo determinável todos aqueles clientes do banco que possuíam a dita cláusula abusiva em seu contrato.

Por tal possibilidade de determinação, a demanda judicial pode ser ajuizada individual ou coletivamente. Nessa segunda hipótese, independentemente de quem proponha a ação, os efeitos da decisão judicial beneficiarão toda a coletividade dos consumidores determináveis e não apenas os associados da parte autora.

A razão de ser da instituição dos direitos individuais homogêneos é que concede a possibilidade de as demandas possuírem pretensões indenizatórias. Enquanto que os outros dois permitem que determinada prática seja suspensa ou anulada, os individuais homogêneos garantem indenizações àquelas que delas fazem jus. Assim, é a única das três categorias que possui aspecto patrimonial[7].

Uma particularidade dessa classe de direitos é o fato de que no momento processual este se divide em duas fases: na primeira, o legitimado coletivo busca o reconhecimento do dever de indenizar; na segunda, o beneficiário se habilita no processo objetivando garantir a execução da dívida já reconhecida pelo juiz.

Rodrigo Mancuso oportunamente explicitou que: “Dentre os fatores que ao longo do tempo, conjuraram contra a otimização da tutela judicial dos interesses metaindividuais em geral, em especial, dos individuais homogêneos, podem ser contadas certas inserções legislativas de duvidosa técnica e/ou redação imprecisa, em detrimento da coesão do sistema, por exemplo, a alteração advinda do artigo 16 da Lei 7.347/85 (primeiramente pela Medida Provisória 1.570/97 depois da Lei 9.494/95, dispondo sobre a coisa julgada que se dá nos limites do órgão prolator, assim embaralhando as noções de competência (definida no artigo 2 da Lei 7.347/85) e dos limites subjetivos da coisa julgada (irradiação expandida); outra imprecisão verificou-se no artigo 2 da Lei 9.494/97, ao restringir os efeitos da sentença coletiva”.

A necessidade de reconhecimento de maior elastério aos efeitos da sentença coletiva é o resultado da indivisibilidade dos interesses tutelados (material ou processual) tornando impossível cindir os efeitos da decisão judicial, pois a lesão a um interessado implica a lesão a todos e, o proveito a todos beneficia.

Em verdade, a amplitude exata da coisa julgada na ação coletiva é alvo de debate há muitos anos. Pois no âmbito do Judiciário brasileiro vige oscilante entendimento, pois ora se aceita a abrangência e ora a restringia.

E, a dúvida estabelecida a respeito da abrangência da coisa julgada na ação coletiva surgiu a partir de inusitada modificação do texto do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, que, a partir de setembro de 1997, passou literalmente admitir a seguinte redação:

   “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.

A referida modificação no direito positivo, restringia os efeitos da sentença coletiva aos limites territoriais do Tribunal que proferiu a sentença. Desta forma, conclui-se que a decisão judicial prolatada por um juiz em São Paulo, só valeria nesse Estado.

Mas, em 30 de novembro de 2016 fora publicada decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que então definiu que a sentença em ação civil pública tem abrangência nacional e não pode ser limitada ao Estado onde o processo fora julgado. E, tal decisão atendeu a recurso apresentado pelo Idec em ação sobre financiamento habitacional e que envolve as principais instituições financeiras do país.

É claro que a questão da amplitude da coisa julgada na ação coletiva tem relação direta com a extensão do dano, pois se é nacional, a amplitude também o será. Pois não se pode, por exemplo, atender os consumidores paulistas e se permitir o mesmo ato abusivo atinja os consumidores de outros Estados-membros.

É inadmissível acreditar que a sentença transitada em julgado de pequena comarca do interior desse país possa produzir efeitos somente sobre esse território. Cogitando sobre a sentença de falência de empresa, seja grande ou pequena, proferida em qualquer comarca do país, faz efeito em todo território nacional.

Aliás, conforme bem decidiu o STJ, o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública não tem como prosperar dentro do sistema jurídico constitucional brasileiro, uma vez que está em contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor.

Pois, contradiz a própria estrutura da Lei de Ação Civil Pública, enquanto que o CDC é firme e coerente ao frisar que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo território nacional, gerando conteúdo adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator da decisão.( Vide Embargos de Divergência em RESP 1.134.957- SP (2013/0051952-7).

No direito coletivo no que tange à coisa julgada, a regra muda para beneficiar todas as vítimas do evento danoso e ainda seus sucessores, possuindo limites subjetivos diferentemente do processo individual. Didier Jr. e Zaneti Jr. afirmaram que em relação aos limites subjetivos da coisa julgada existem três possibilidades, a saber: interpartes, ultra partes (além das partes e também a terceiros) e erga omnes (produz efeitos que atingem a todos que tenham participado do processo ou não).

De fato, a coisa julgada serve para conferir estabilidade às relações sociais e jurídicas, evitando decisões judiciais conflitantes e garantido o princípio da segurança jurídica. Principalmente porque pode ser definida a coisa julgada como a situação jurídica que torna indiscutível os efeitos criados a partir de uma sentença, podendo ainda a lei prever situações excepcionais para desconstituir a coisa julgada material.

Segundo Elpídio Donizetti e Marcelo Malheiros Cerqueira são os efeitos da sentença que vão determinar a natureza da coisa julgada, pois os efeitos da sentença vão determinar a natureza da coisa julgada que dele emergirá.

Sendo sentença de mérito ou definitiva, com efeito formal ou material, portanto, teremos a coisa julgada material. Ao revés, se a sentença apenas põe fim ao processo, sem resolução do mérito, teremos apenas o efeito formal e, consequentemente, a coisa julgada serão tão somente formal.

Apenas em excepcionalíssimas situações será possível atacar sentença de mérito já transitada em julgado sobe a qual se operou a coisa julgada material. E, em regra, a ação rescisória é o instrumento que visa desconstituir a coisa julgada de acordo com as hipóteses elencadas no direito positivo, devendo ser proposta dentro do biênio decadencial, contado a partir do trânsito em julgado da decisão.

Tanto a doutrina como a jurisprudência vêm admitindo a possibilidade de atacar a sentença acobertada pelo manto da coisa julgada, mesmo fora das hipóteses positivadas no CPC, quanto após o biênio decadencial, quando há no processo vício tamanho que acarrete a nulidade absoluta. Podendo, assim, a parte propor ação declaratória de inexistência ou declaratória de nulidade.

Por essa razão vem ganhando força e adeptos, o instituto da relativização da coisa julgada. Apesar de que para alguns doutrinadores, al relativização fere a ordem constitucional vigente. Aliás, a desconsideração da coisa julgada atende três fundamentos para a maioria da doutrina, a saber: a garantia da coisa julgada tem status infraconstitucional; a aplicação do princípio da proporcionalidade mitigando a proteção da coisa julgada frente aos demais direitos fundamentais; a instrumentalidade do processo como forma cabal de atingir sua finalidade.

Cumpre sublinhar que a coisa julgada material gera efetivamente efeitos processuais negativos ou extrínsecos, id est, fora do processo.

Sendo forma impeditiva de propor nova ação, podendo o juiz de ofício reconhecê-la e extinguir o processo sem resolução de mérito nos termos do artigo 267, V do CPC/1973.

Contudo, se o réu deixar de arguir na contestatória a existência da coisa julgada, ainda poderá suscitá-la em grau de recurso em vias ordinárias, pois se trata de matéria de ordem pública e, portanto, não sujeita à preclusão.

Em havendo duas ações que transitaram julgado com identidade de partes, ou seja, quando uma segunda ação com os mesmos fundamentos de uma primeira ação, também transita em julgada, a lei não cogita qual das duas coisas julgadas deverá prevalecer, se a primeira ou a segunda.

E, a doutrina diverge quanto a temática. Pois alguns doutrinadores defendem que a primeira ação prevalece sobre a segunda e, para outros, no entanto, a segunda ação se sobrepõe à primeira.

Teresa Arruda Alvim Wambier afirma que a primeira coisa julgada prevalece sobre a segunda, parece ser a tese mais escorreita, pois não haveria propriamente a segunda coisa julgada, já que esta teria chegado a se formar, porque, para a segunda ação, faltaria à parte o interesse de agir. E, a ausência das condições da ação, impede fatalmente que se opere a coisa julgada sobre a sentença de mérito.

Cumpre também assinalar que tão somente a parte dispositiva da sentença se torna imutável, não possuindo esta a mesma qualidade a fundamentação e o relatório da respectiva sentença.

Fernando da Fonseca Gajardoni ao cogitar sobre os limites subjetivos da coisa julgada, in litteris:

   “Exatamente pelo vínculo que tem com os elementos da ação (art. 301 e parágrafos do CPC), a coisa julgada no processo individual, como regra, só atinge as partes do processo, não beneficiando nem prejudicando terceiros (art. 472 do CPC), sendo, portanto, intra partes. Terceiros não intervenientes, exatamente por não serem partes, podem rediscutir questão decidida em processo alheio. Este é o principal limite subjetivo da coisa julgada.”

O que difere os limites da coisa julgada individual da coisa julgada coletiva é que esta se opera e cria a imutabilidade da sentença independentemente da procedência dos pedidos da ação, exceto nas hipóteses trazidas pelos artigos 469 e 471 do CPC/1973.

Ainda, quanto aos limites da coisa julgada no processo individual a regra é de que a coisa julgada vincula as partes do processo em relação ao que fora pedido e decidido no dispositivo da sentença, formando-se independentemente do resultado da demanda. E, assim, pode-se afirmar sobre o regime jurídico da coisa julgada:

a) modo de produção: a coisa julgada forma-se pro et contra (independentemente do resultado da lide);

b) limites objetivos: a autoridade da coisa julgada incide sobre o que foi pedido na demanda (questão principal) e decidido no dispositivo da sentença (arts. 468 e 469 do CPC);

c) limites subjetivos: a autoridade da coisa julgada é inter partes, vinculando apenas as partes entre as quais é proferida a sentença” (art. 472 do CPC).

 Segundo a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas de interesses coletivos stricto sensu e de interesses difusos se diferenciam no seguinte aspecto in litteris:

           “O regime dos limites subjetivos da coisa julgada, nas ações em defesa dos interesses coletivos, é exatamente o mesmo traçado para as ações em defesa dos interesses difusos. Anota que a única diferença reside na diversa extensão dos efeitos da sentença com relação a terceiros, consoante se trate de interesses difusos ou interesses coletivos. No primeiro caso, é própria da sentença a extensão da coisa julgada a toda a coletividade, sem exceção; no segundo, a natureza mesma dos interesses coletivos restringe os efeitos da sentença aos membros da categoria ou classes, ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação base”.

No que se refere aos interesses ou direitos individuais homogêneos, vige diferenças em relação aos direitos difusos e coletivos, uma vez que a sentença judicial formará a coisa julgada erga omnes. Porém, apenas no caso de procedência do pedido para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores (artigo 103, III do CDC).

Ressalte-se que o indivíduo portador de direito individual homogêneo, não participante do processo coletivo, quer como litisconsorte, quer como assistente, poderá propor sua demanda a título individual em juízo, segundo os termos do artigo 103, §1º do CDC.

Porém, somente é possível o titular de direito individual homogêneo se beneficiar de ação coletiva se requerer a suspensão da ação individual no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, conforme prevê o artigo 104 do CDC.

E, ainda, as ações coletivas para a defesa de interesses ou direitos difusos, bem como as ações coletivas para a defesa de interesses ou direitos coletivos stricto sensu, não induzem a litispendência para as ações individuais (art. 104 CDC).

O denominado transporte in utilibus da coisa julgada coletiva para os processos individuais se refere à criação feita pelo CDC, que permite ao indivíduo transportar o resultado da ação coletiva para a demanda individual.

Posto que o artigo 103, parágrafo terceiro do CDC, aduz que os efeitos da coisa julgada não prejudicam as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos. Mas, caso se julgada procedente o pedido da ação coletiva, serão beneficiados as vítimas e seus sucessores.

O transporte da coisa julgada coletiva para as ações individais é respaldado pela economia processual e a bem da segurança jurídica, bem como para evitar decisões judiciais conflitantes.

Didier Jr. e Zanetti Jr. descrevem com precisão sobre este fenômeno:

           “Isso significa que se, por um lado, a sentença coletiva de improcedência do pedido não produz efeitos na esfera individual, não prejudicando as pretensões individuais (art. 103, §1º, CDC), por outro, a sentença de procedência nas ações para a tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu poderá ser liquidada e executada no plano individual sem a necessidade de um novo processo para afirmação do an debeatur (o que é devido).

Assim, os titulares dos direitos individuais homogêneos poderão promover ação de indenização dos seus prejuízos”.

Antes de haver a execução da sentença coletiva se faz necessário promover a sua liquidação no plano individual, caso queira o indivíduo se beneficiar da coisa julgada coletiva. Afora isso, a liquidação e a execução da respectiva sentença, prevista no artigo 97 do CDC, poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, bem como os legitimados previstos no rol do artigo 82 do mesmo diploma legal.

É inadequada a denominação de execução coletiva prevista no artigo 98 do CDC, por se tratar de direitos individuais homogêneos. Não se trataria de execução coletiva, propriamente, mas sim, individualizadas. Logo, o escorreito seria utilizar a expressão execução individual realizada por ente coletivo podendo ser uma ou plúrima, em litisconsórcio simples.

A doutrina assegura que a suspensão da ação individual em trâmite é condição para ocorrer o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva, caso o indivíduo tenha o interesse em ser beneficiado pela coisa julgada coletiva. De sorte que se não for requerida a suspensão do processo individual no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, o autor não poderá ser beneficiado com a sentença coletiva.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ por meio do REsp. nº. 1.110.549/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, já decidiu que ajuizada ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos, suspendem-se obrigatoriamente as ações individuais, devendo-se aguardar o julgamento da ação coletiva. Porém, não impede a propositura de demanda judicial do titular do referido direito individual discutido em juízo. Logo, a suspensão da ação individual é obrigatória, levando em consideração as regras processuais sobre recursos repetitivos (art. 543-C, do CPC).

Por derradeiro, também é cabível o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva no caso de sentença penal condenatória , conforme o artigo 103, parágrafo quarto do CDC, devendo a parte, as vítimas e seus sucessores liquidarem a respectiva sentença e executá-la no juízo cível.

Quanto aos limites da coisa julgada coletiva em termos territoriais consta no artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública e se questiona se tal dispositivo alcança ou não, a coisa julgada coletiva prevista no CDC.

Afinal, não vige qualquer razão de ser essa limitação legal, diante da natureza de conflitos de massa, ou seja, quando se tratar de direitos transindividuais, dependendo do caso concreto a extensão subjetiva da coisa julgada será ultra partes ou erga omnes, porquanto invisível o objeto da demanda.

Para a boa doutrina, o artigo 16 da LACP é inconstitucional por violar o princípio da isonomia e outras normas constitucionais implícitas, tal como o princípio da razoabilidade das leis e do devido processo coletivo.

E, o CDC quanto aos direitos difusos acolheu o regime da coisa julgada previsto no artigo 18 da Lei de Ação Popular que afirma que a sentença fará coisa julgada erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por deficiência de prova.

Caso em que qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Há severas críticas ao artigo 16 da LACP considerado inconstitucional pois fere o acesso à justiça, a igualdade e a universidade da jurisdição; é ineficaz já que o artigo 103 do CDC é mais amplo e está inserido no microssistema do processo coletivo, aplicando-se também à LACP; não se trata de limitação da coisa julgada mas da eficácia da sentença, ferindo a disposição processual de que a jurisdição é uma em todo território nacional, e, por derradeiro, é contrária a essência do processo coletivo que prevê o tratamento molecular dos litígios evitando-se a fragmentação das demandas.

E, mesmo diante de severas críticas da doutrina pátria, o STJ vem decidindo de forma contrária ao entendimento, acolhendo, portanto, o artigo 16 do LACP, que aduz que a sentença fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão.

A Lei da Ação Civil Pública, originariamente, foi criada para regular a defesa em juízo de direitos difusos e coletivos. A figura dos direitos individuais homogêneos surgiu a partir do Código de Defesa do Consumidor, como uma terceira categoria equiparada os primeiros, porém antologicamente diversa.

– Distinguem-se os conceitos de eficácia e de coisa julgada. A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. O art. 16 da LAP, ao impor limitação territorial à coisa julgada, não alcança os efeitos que propriamente emanam da sentença. – Os efeitos da sentença produzem-se “erga omnes”, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador

A Lei 12.016, de 07 de agosto de 2009 que trouxe inovação à coisa julgada presente no mandado de segurança coletivo, dispõem seu artigo 22 que no mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante.

E, percebe-se que o legislador não fez nenhuma referência ao artigo 103 do CDC, que traz dois efeitos para a sentença, sendo estes: erga omnes ou ultra partes.

A boa doutrina afirma que existe lacuna normativa na Lei do Mandado de Segurança quanto ao mencionado artigo 22, pois não contempla as normas previstas no CDC quanto aos efeitos da sentença.

E, nesse sentido, diante da omissão legislativa, afirma-se que o modo de produção de coisa julgada no mandado de segurança coletivo é o mesmo previsto genericamente para as ações coletivas e, está regulado no artigo 103 do CDC: secundum eventum probationis, sem qualquer limitação quanto ao novo meio de prova que pode fundar a repropositura da demanda coletiva,

Segundo Donizetti e Cerqueira é cabível a aplicação do artigo 104 do CDC quanto à coisa julgada no mandado de segurança coletivo, pois em vez do indivíduo pedir desistência da ação individual, torna-se necessário apenas pedir a suspensão do mandado de segurança individual para se beneficiar do resultado da demanda coletiva.

Por derradeiro, a regra vem sendo adotada nos tribunais brasileiros sendo prevista no artigo 22 da Lei do Mandado de Segurança, que conforme já explicitado, prevê que a sentença fará coisa julgada os membros do grupo ou categoria dos substituídos pelo impetrante.

Nas ações coletivas promovidas em defesa de interesses coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, ainda que proposta por meio de Ação Civil Pública, a coisa julgada deverá ser de acordo com o artigo 103 do CDC e não de acordo com o artigo 16 da Lei LACP. Pois, este fere veemente o processo coletivo e afasta a justiça do cidadão.

Logo a sentença terá efeitos erga omnes ou ultra partes, não só perante o órgão julgador prolator da decisão, mas também perante a toda sociedade.

Referências:

DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Vol. IV, 8 ed. São Salvador: Jus Podivm, 2013.

DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. São Paulo: Atlas, 2010.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Direitos Difusos e Coletivos I. Coleção Saberes do Direito – 34. São Paulo: Saraiva, 2012.

MITIDIERO, Daniel. Fundamentação e precedente – dois discursos a partir da decisão judicial. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2012, n. 206.

SILVA JUNIOR, Aldo Ferreira da. Novas Linhas da Coisa Julgada Civil. Da “Relativização” da coisa julgada e os mecanismos de rescindibilidade. Campo Grande: Futura, 2009.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Editora JusPodivm, 2015.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim e Medina, José Miguel Garcia. Mecanismos de Impugnação da Coisa Julgada no Processo Civil Brasileiro. Material da 2ª aula da disciplina Recursos e Meios de Impugnação, ministrada no curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Processual Civil – Anhanguera-Uniderp / Rede LFG, 2012.



[1] Trata-se de direito coletivo típico, sendo uma espécie de direito coletivo onde os sujeitos são sempre plúrimos e determinados. Na hipótese de direito individual homogêneo, a ação judicial é coletiva, não intervindo o titular do direito subjetivo individual. O CDC permite a proteção dos consumidores em larga escala, mediante ações coletivas e ações civis públicas. É por estas que o consumidor poderá ser protegido. E, o que se verifica é que, aos poucos, começa-se a descobrir a importância desse tipo de ação nos ajuizamentos feitos pelo Ministério Público ou pelas associações de defesa do consumidor. Note-se bem: às vezes se faz uma confusão entre direitos coletivos e direitos individuais homogêneos, o que exige uma elucidação que será feita no próximo item, mas há que se fazer desde já uma ressalva. Como se sabe, o objeto do direito coletivo é indivisível. O que vai acontecer é que o efeito da violação a um direito coletivo gere também um direito individual ou individual homogêneo. Assim, por exemplo, o mau tratamento da água fornecida aos usuários é típico caso de direito coletivo com objeto indivisível, mas simultaneamente seu fornecimento e consumo pode gerar danos à saúde de um consumidor individualmente considerado ou a mais de um consumidor. São exemplos de direito coletivo: a boa qualidade do fornecimento de serviços públicos essenciais como água, energia elétrica e gás; a segurança do serviço de transporte público de passageiros prestado pelas empresas de ônibus; a qualidade oferecida pela escola dos serviços educacionais por ela prestados etc. Mas, note-se: não se trata de litisconsórcio e sim de direito coletivo. Não é o caso de ajuntamento de várias pessoas, com direitos próprios e individuais no polo ativo da demanda, o que se dá no litisconsórcio ativo; quando se trata de direitos individuais homogêneos, a hipótese é de direito coletivo — o que permitirá, inclusive, o ingresso de ação judicial por parte dos legitimados no artigo 82 da lei consumerista. É verdade que a ação individual ou a ação proposta por litisconsórcio facultativo não estão proibidas, como também, não está proibido o ingresso de tais ações no curso da ação coletiva de proteção aos direitos individuais homogêneos. Porém, não se pode confundir os institutos, que tem natureza diversa: no litisconsórcio o que há é reunião concreta e real de titulares individuais de direitos subjetivos no caso, no polo ativo da demanda; na ação coletiva para defesa de direitos individuais homogêneos, o autor da ação é único: um dos legitimados do artigo 82 do CDC.

[2] O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) corrobora essa lógica e a intensifica, permitindo o represamento de demandas em primeiro grau e, a pedido da parte, o sobrestamento de ações ou recursos em qualquer estado ou região. Adota-se como ponto de partida um diagnóstico de excesso de ações e recursos e de que o processo é excessivamente formalista, o que justificaria a implementação de mudanças para torná-lo menos formalista e, principalmente, mais eficiente. Há diversos dispositivos que permitem a sumarização da cognição em casos que possam ser considerados repetitivos, criando-se uma lógica processual que legitima, incentiva e, em certos casos, vincula a utilização de técnicas de padronização decisória.

[3] Ressalte-se o aspecto caracterizador do precedente, de roupagem grandemente coercitiva, extraindo-se daí o stare decisis, dando a conotação de que a decisão antecedente cria o direito, impondo aos juízes a obrigação de conduzir-se, nos casos posteriores, observando os julgamentos já prolatados em situações pretéritas parecidas. Sendo precedente persuasivo, nenhum juiz tem a obrigação de segui-lo, não tendo eficácia vinculante. Caso utiliza-o como precedente é porque convenceu-se de que está correto para o caso sob análise. Quanto maior hierarquicamente o órgão prolator da decisão, mais elevado será o seu poder persuasivo. Para compreender melhor o sistema de precedentes, necessário estabelecer uma diferenciação entre estes e a jurisprudência, aqui exemplificando o artigo 926 do CPC “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Conceitua-se jurisprudência como várias decisões judiciais, prolatadas pelos tribunais, sobre um determinado tipo de questão, no mesmo sentido. Esta é constituída por precedentes vinculantes e de persuasão, que são empregados como fundamentação jurídica em outros feitos, e também formada de simples decisões reiteradas.

[4] A partir da definição de processo coletivo, é possível também definir a ação coletiva e a tutela jurisdicional coletiva. O processo coletivo surgiu em sua primeira regulamentação no direito norte-americano, em 1842, em face da necessidade de proteção de interesses de massa que emergiram da Revolução Industrial, nas primeiras décadas do século XX. Em nosso país de notável capitalismo tardio somente na segunda metade do século XX, adveio a regulamentação do processo coletivo, sobretudo, com a Lei de Ação Civil Pública (1985) e a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, ainda, as inovações trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor (1990). Em verdade, o processo coletivo possui diversas peculiaridades em relação ao cunho individualista, a começar pela regulamentação processual coletivo. O seu objeto consistente em direitos difusos, coletivos, em sentido estrito ou individuais homogêneos, a legitimidade ad causam, que é atribuída por lei às entidades que não são titulares do direito discutido em juízo e, ainda, os mecanismos de formação de coisa julgada coletiva e sua extensão ou transporte ao plano individual.

[5] Uma quantidade expressiva de questões tributárias e administrativas demonstra o impacto de recursos envolvendo a Administração Pública, que estão dentre os maiores litigantes no Judiciário brasileiro. E, os mecanismos de padronização decisória visam responder e resolver a morosidade decorrente do excesso de processos e recursos considerados repetitivos, sem que exista uma mais aprofundada reflexão sobre as causas da litigiosidade repetitiva e sobre o papel exercido pelo Estado na conformação desse quadro.

Por outro lado, a padronização decisória coloca em discussão, ainda, o dever de motivação das decisões judiciais, consagrado desde o artigo 93, IX da CF/1988 e no CPC vigente, inclusive, de forma ampliado substancialmente quanto aos requisitos necessários para uma sentença seja considerada adequadamente fundamentada. Principalmente aludindo quanto a necessidade de se identificar os fundamentos determinantes de um precedente e sua aplicabilidade ao caso concreto sub judice, porém, não há clareza no texto do CPC vigente sobre a necessidade de a decisão determinar a suspensão de processos considerados análogos ao caso paradigma.

[6] Direitos difusos constituem direitos transindividuais, ou seja, que ultrapassam a esfera de um único indivíduo, caracterizados principalmente por sua indivisibilidade, onde a satisfação do direito deve atingir a uma coletividade indeterminada, porém, ligada por uma circunstância de fato. Os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos ganharam mais destaque no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Antes, o tema estava contemplado na Política Nacional do Meio Ambiente em 1981 e lei 7.347/85, da Ação Civil Pública (Defesa de Interesses Difusos) e em outras legislações. Os processos baseados em direitos difusos se tornaram uma solução eficiente para resolver conflitos coletivos de ordem econômica, social ou cultural. “Os direitos difusos se preocupam com questões da coletividade, como as ligadas ao meio ambiente, patrimônio público e direitos do consumidor”. Existe um volume grande de ações envolvendo questões de direitos difusos em andamento no país. São processos que impactam a vida de muitos brasileiros. Entre os quais estão os focados em Direito Urbanístico que investigam irregularidades do programa popular de habitação do governo federal Minha Casa Minha Vida.

[7] A tutela coletiva que possui como suporte o tripé composto de Lei da Ação Popular (Lei 4.717/1965), Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985) e Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), balizado pela Constituição Federal de 1988; e o processo-modelo (ou test case) para a tutela da litigiosidade de massa. Quanto às soluções para a litigiosidade coletiva leva-se em consideração o interesse ou direito coletivo objeto da ação (difuso, coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo) para que se empreguem as regras correspondentes de legitimação e efeitos da coisa julgada, nos termos dos artigos 5? da LACP, 82 do CDC e 103 do CDC. Se por um lado as ações individuais visam a assegurar a observância aos direitos subjetivos dos indivíduos, por outro lado as ações coletivas procuram tutelar questões de repercussão social dos interesses e direitos coletivos, torna-se possível controle das políticas públicas por meio da atuação do Poder Judiciário. Embora tenham se empregado esforços para entregar soluções jurídicas que atendam às sociedades de massa pós-industriais, a complexidade das relações humanas, por vezes, fazem surgir situações sui generis que não se encaixam exatamente em nenhuma classificação de soluções pré-concebidas, sendo este o caso das ações pseudoindividuais, que se caracterizam por serem ações com objeto capaz de atingir uma coletividade, cuja fruição é indivisível, porém proposta por um indivíduo, hipótese esta não prevista em lei. Não seriam, portanto, nem ações individuais, em decorrência de seu objeto, nem coletivas, por ser proposta por um indivíduo

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. IRDR – Incidente de Demandas Repetitivas no sistema processual brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/irdr-incidente-de-demandas-repetitivas-no-sistema-processual-brasileiro/ Acesso em: 25 abr. 2024