Processo Civil

O Princípio Dispositivo e a Verdade Real no Processo Civil

O Princípio Dispositivo e a Verdade Real no Processo Civil

 

 

Denis Donoso*

 

 

                        Como é cediço, o processo civil brasileiro é norteado pelo princípio dispositivo, segundo o qual o juiz, mantendo-se eqüidistante, aguarda a iniciativa das partes no que se refere à afirmação dos fatos constitutivos de seu direito e a respectiva produção de provas. Vale dizer, o juiz depende das partes no que concerne à afirmação e à prova dos fatos em que os mesmos se fundam[1].

 

                        Assim, nos processos cíveis que versam sobre direitos disponíveis o magistrado deve, à primeira vista, aguardar que as partes procedam à discussão da matéria de acordo com o que entenderem conveniente, requerendo a produção das provas que lhes pareçam adequadas para, apenas no final, diante do contexto criado exclusivamente pelas partes, poder sentenciar, à luz do adágio iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet.

 

                        Quando isso acontece é possível que muitas vezes se chegue ao fim da instrução de um processo e o juiz não tenha elementos suficientes para formar a convicção, tendo que, ainda assim, proferir uma decisão.

 

                        Nestes casos, aplica-se o princípio da verdade formal, corolário do princípio dispositivo, de tal sorte que a decisão vai refletir aquilo que as partes trouxeram para o processo sem que o próprio julgador tenha tido a oportunidade de verificar outros fatos que eventualmente poderiam elucidar-lhe melhor os pontos controvertidos.

 

                        De notar-se, contudo, que o processo moderno reclama uma atividade mais presente e intensa do juiz. Uma sociedade que espera justiça não pode se contentar com a mera verdade formal se é possível buscar a verdade real.

 

                        Com efeito, o processo tem uma finalidade de caráter público consistente em garantir a efetividade integral do direito. O processo é um instrumento de produção jurídica e uma forma incessante de realização do direito[2], de maneira que seria inadequado admitir que ele gere uma injustiça quando há meios para a busca da justiça.

 

                        Por isso, o artigo 130 do Código de Processo Civil deve ser interpretado da maneira mais ampla possível, respeitado apenas o disposto no artigo 125, I, do mesmo diploma e, evidentemente, as garantias processuais constitucionais (sobretudo as do artigo 5º, LIV e LV da Constituição)[3].

 

                        Desta forma, o magistrado deve deixar sua posição de inércia para, quando preciso, tomar iniciativa na produção de provas, sempre obedecendo aos primados da paridade de tratamento, como já se verifica normalmente nos procedimentos de jurisdição voluntária (artigo 1.107 do CPC) e nas ações que versam sobre direitos indisponíveis.[4]

 

                        A melhor doutrina, a propósito, caminha neste sentido. Humberto Theodoro JR sustenta que o juiz, no processo moderno, deixou de ser simples árbitro diante do duelo judiciário travado entre os litigantes e assumiu poderes de iniciativa para pesquisar a verdade real e bem instruir a causa.[5] Juristas do mesmo jaez compartilham a mesma idéia.

 

                        É inegável, porém, que a absoluta liberdade do magistrado não se mostra conveniente para o processo, eis que a atividade judicante é diversa da atividade postulante e com esta não se confunde.

 

                        Por outro lado, acrescer excessivamente os poderes do juiz significaria, em última análise, atenuar a distinção entre processo dispositivo e processo inquisitivo[6].

 

                        Destarte, equivocam-se aqueles que pensam que o juiz tudo pode no campo da prova (…) É fundamental para a própria dignidade da justiça que se respeitem os limites legais da atividade probatória, sob pena de se instaurar a sua total descrença. É de clareza solar que, se a lei adjetiva “impõe” certas verdades ao magistrado (vide artigos 302, 319, 359 etc.), não pode esta mesma lei dar-lhe a liberdade de buscar provas ilimitadamente como equivocadamente se pode supor[7].

 

                        Portanto, pode-se concluir que o princípio dispositivo no processo civil moderno não traz mais em seu bojo a idéia da verdade formal obtida tão-somente com a atividade das partes, mas, ao contrário, prestigia o princípio da verdade real como escopo primário do processo, restando a verdade formal como subsidiária, ou seja, quando impossível atingir a verdade real, seja pela atividade das partes, seja pela atividade do juiz[8].

 

                        Ademais disso, tenha-se presente que a determinação de provas ex officio pelo magistrado também deve ocorrer subsidiariamente, apenas após a dialética processual.

 

                        Em outras palavras, o juiz permite que as partes livremente instruam o processo. Ao final, esgotada a atividade postulatória, o juiz pode deparar-se com duas situações: ou as provas são suficientes e ele pode seguir à fase seguinte do procedimento (obedecendo rigorosamente ao princípio dispositivo) ou são insuficientes, sendo-lhe neste momento facultado determinar a produção de outras provas relevantes, a seu prudente critério.

 

                        Conforme a arguta observação de Moacyr Amaral Santos, ao juiz somente será lícito determinar, de ofício, diligências instrutórias naqueles casos em que se encontrar em dificuldade na formação de sua convicção quanto à verdade dos fatos cuja prova tenha sido dada pelas partes interessadas[9].

 

                        Logo, afirma-se categoricamente que a verdade formal só pode ser aplicada se subsidiariamente à verdade real, assim como o juiz só teria iniciativa subsidiária nesta busca após esgotadas as possibilidades das partes. Resta, daí, a constatação de que o art. 333 do CPC traz verdadeira regra de julgamento, e não propriamente ou apenas uma regra sobre ônus da prova. É dizer, o juiz julgará uma ação procedente ou improcedente a depender do quadro probatório final, inclusive após a sua iniciativa ex officio.

 

                        Destas conclusões teóricas podem-se vislumbrar algumas consequências na prática, como a eventual falta de interesse recursal no agravo interposto contra decisão que deferiu a produção de determinada prova[10] e a possibilidade de oitiva de testemunha arrolada a destempo[11], entre outras.

 

                        A interpretação da norma processual civil deve sempre levar em consideração os objetivos do processo civil, que não se confundem, por causa do processo, com criar direitos a quem não os tem ou tirar direitos de alguém que os tem[12].

 

                        Portanto, às partes ainda incumbe o ônus da iniciativa na produção de provas, cabendo ao juiz atividade meramente subsidiária para, desta simbiose, buscar-se a verdade real dentro do processo civil.

 

 

 

* Mestrando e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil no curso de graduação da Faculdade de Direito de Itu. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil em cursos preparatórios para Magistratura e Ministério Público no Curso Robortella, em São Paulo. Membro do corpo docente da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor convidado no curso de pós-graduação “lato sensu” da Escola Paulista de Direito Social (EPDS). Professor de Direito Civil em diversos cursos preparatórios para o exame da OAB. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros na área jurídica. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

 

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[1] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. v. 2, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 76,

[2] COUTURE, Eduardo José. Introdução ao Estudo do Processo Civil. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 46, trad. Mozart Victor Russomano.

[3] A possibilidade de produção ampla de provas se afigura como característica do devido processo legal. Cf. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 360.

[4] Cf. NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 4ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 606.

[5] THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. 1, 22ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 421.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 64.

[7] FORNACIARI Jr., Clito.  Limites do juiz na busca da verdade. in Tribuna do Direito – caderno jurisprudência, ano 8, n.º 91, p. 362.

[8] RJTJRS 111/199

[9] op. cit., p. 77

[10] 2º TACivSP, agravo de instrumento 740071-0/2, rel. Juiz Antonio Benedito Ribeiro Pinto, j. 11.6.02. No entanto, “o deferimento de prova manifestamente inútil ou protelatória pode causar sério gravame à parte e, por isso, comporta agravo.” (NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 32ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 227)

[11] RJTJSP 105/335, RT 746/290; contra RT 605/96

[12] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. v. 1, 7º ed., São Paulo: RT, 2001, p. 166.

Como citar e referenciar este artigo:
DONOSO, Denis. O Princípio Dispositivo e a Verdade Real no Processo Civil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/o-principio-dispositivo-e-a-verdade-real-no-processo-civil/ Acesso em: 19 abr. 2024