Processo Penal

As consequências processuais do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito dos antecedentes criminais e a aplicação da pena

As consequências processuais do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito dos antecedentes criminais e a aplicação da pena[1]

Como se sabe, doravante, a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não podem ser considerados como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena. Essa foi a tese firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal agora, exatamente na sessão plenária do dia 17 de dezembro de 2014, durante o julgamento do Recurso Extraordinário nº. 591054, com repercussão geral reconhecida. Sobre a matéria, há pelo menos setenta e três processos nos quais deverá ser aplicado esse entendimento.

No recurso, interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, se discutia a possibilidade de considerar como maus antecedentes, para fins de dosimetria da pena, a existência de procedimentos criminais em andamento contra o sentenciado.

O exame da questão teve início no dia 5 de junho de 2014 e voltou à análise do Plenário para a sua conclusão com a leitura do voto do Ministro Celso de Mello. Ele acompanhou o entendimento do relator, Ministro Marco Aurélio, pelo desprovimento do recurso. Naquela ocasião, o relator lembrou que o art. 5º., LVII, da Constituição Federal traz a garantia de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.

Segundo o relator, para efeito de aumento da pena somente podem ser valoradas como maus antecedentes decisões condenatórias irrecorríveis, sendo impossível considerar para tanto investigações preliminares ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal.

No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello, ao seguir a maioria dos votos, deu sentido amplo ao princípio constitucional da presunção de inocência. Ele entendeu que não devem ser considerados como maus antecedentes: processos em andamento, sentenças condenatórias ainda não confirmadas (ou seja, recorríveis), indiciamentos de inquérito policial, fatos posteriores não relacionados com o crime praticado em momento anterior, fatos anteriores à maioridade penal ou sentenças absolutórias.

Tais situações não permitem que se considere a existência de maus antecedentes diante de um direito fundamental constitucional que assegura, em favor de todos e de cada um de nós independentemente da natureza do ilícito penal supostamente perpetrado, o direito fundamental de sempre ser presumido inocente até o advento do trânsito em julgado”, ressaltou o Ministro Celso de Mello.

Aliás, antes do Supremo, já tínhamos o Verbete nº. 444 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

Tais decisões apenas traduzem o que já está claríssimo na Constituição Federal: o Princípio da Presunção de Inocência.

Anteriormente, o Ministro Celso de Mello deferiu o pedido de liminar no Habeas Corpus nº. 96618, concedendo liberdade ao paciente em caráter liminar. Segundo o Ministro, a mera sujeição de alguém a simples investigações policiais ou a persecuções criminais ainda em curso “não basta, só por si – ante a inexistência de condenação penal transitada em julgado –, para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes ou, então, para legitimar a imposição de sanções mais gravosas, como a decretação de prisão cautelar”. Ao suspender a eficácia do decreto de prisão de Prado até que o mérito da ação ser avaliado pelo tribunal, Celso de Mello disse fazê-lo em respeito ao princípio da presunção constitucional da inocência, pelo qual ninguém poderá ser considerado culpado por um crime até que seja condenado, sem possibilidade de recorrer.

Também o Superior Tribunal de Justiça: “O envolvimento em inquéritos diversos e em vários processos ainda em curso não se presta como indicativo de maus antecedentes, no momento da fixação da pena. Precedentes.” (Recurso Especial nº. 722751?RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 29?08?2005).

Em atenção ao princípio da presunção de inocência, inquérito policial e ações penais em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para, exasperar a pena-base, nos termos do art. 59 do Código Penal.2. Afastada, assim, a circunstância judicial desfavorável relativa aos maus antecedentes – que foi o único fundamento utilizado pelo magistrado para majorar a reprimenda básica -, deve a pena ser redimensionada para o mínimo legal, qual seja: 06 (seis) anos reclusão.3. Outrossim, tendo sido o referido argumento também empregado pelo julgador para motivar a imposição do regime prisional mais gravoso, deve ser também reformada a sentença, nessa parte, para impor ao Paciente, nos termos do art. 33, § 2.º, alínea b, do Código Penal, o regime inicial semi-aberto.” (Habeas Corpus n.º 80.007?RJ, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 29?06?2007).

Firmou-se no âmbito deste Tribunal Superior o entendimento no sentido de que a existência de inquéritos e ações penais em curso não enseja a elevação da pena-base pelos antecedentes ou a título de conduta social ou personalidade do agente. Devida, assim, a redução da sanção básica ao mínimo legal.Orientação sedimentada no verbete n. 444 da Súmula do STJ. Agravo regimental a que se nega provimento.”(AgRg no REsp 1401907/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/11/2014, DJe 27/11/2014).

Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, era de todo inadmissível que na dosimetria da pena o Magistrado pudesse levar em consideração “a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado.”

Aliás, se temos o princípio constitucional da presunção de inocência, é evidente que “a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado” não podem ser levadas em consideração para absolutamente nada, nem para a dosimetria da pena, muito menos para justificar o encarceramento provisório, como sói acontecer.

A questão agora é outra; e como  “ficam” os processos pendentes, especialmente aqueles que estão em grau de recurso e ainda não foram julgados? E se a parte sequer se insurgiu contra a aplicação da pena, pois não era este o entendimento do Supremo Tribunal Federal?

E mais: e os processos findos e com sentença condenatória cuja pena base foi majorada em face do art. 59 do Código Penal?   

Na esteira  de tudo quanto foi dito,  entendo que  em relação a todos  os processos pendentes, ainda que em grau de recurso, a nova jurisprudência deve ser observada, concedendo-se, se for o caso, o Habeas Corpus de ofício para  diminuição da pena, respeitando-se o efeito devolutivo da apelação.

Destarte, considerando que o art. 654, § 2o. do Código de Processo Penal estipula que “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”, imperiosa é a concessão de habeas corpus de ofício pelo órgão julgador.

Vale trazer a lume os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Federalem que foram concedidos habeas corpus de ofício:

Recurso criminal: tempestividade. A prova da tempestividade do recurso – que se afere pela data da entrega da petição em cartório – é ônus do recorrente: não demonstrada pelo MP – embora inadmissível o RE da defesa por falta de prequestionamento dos temas constitucionais aventados – concede- se   habeas corpus de ofício para cassar o acórdão que, na dúvida insolúvel quanto à tempestividade, não obstante conheceu da apelação do MP contra a sentença absolutória e lhe deu provimento para condenar os réus.”(AI 386537–QO/MG, 1a. T STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13/09/02).

Recurso extraordinário, prequestionamento e habeas-corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a discussão em torno de requisitos específicos, qual o do prequestionamento, sempre que – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de   habeas-corpus de ofício.  (AI 409055, 1a. T STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27/09/02).

CRIMINAL. ACÓRDÃO DE TRIBUNAL ESTADUAL QUE SE LIMITOU A RELACIONAR PEÇAS DO PROCESSO E A AFIRMAR, SEM O EXAME DO SEU CONTEÚDO, QUE AS PROVAS COLHIDAS ERAM SUFICIENTES PARA JUSTIFICAR A CONDENAÇÃO DO RECORRENTE. ALEGADA OFENSA AO ART. 93, IX, DA CF/88. PREQUESTIONAMENTO.   HABEAS CORPUS DE OFÍCIO. Hipótese em que a manifesta ausência de prequestionamento do dispositivo tido por violado no apelo extremo não impede a concessão de   habeas corpus de ofício, por tratar-se de ilegalidade flagrante que repercute na liberdade de locomoção do paciente. Recurso extraordinário não conhecido, concedendo-se, porém,   habeas corpus de ofício para anular o acórdão recorrido, a fim de que outro, devidamente fundamentado, seja proferido.”(RE 291427, 1a. T STF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 18/05/01).

Irregularidade de intimação de defensor constituído, cujo nome constou incompleto na publicação oficial. Nulidade. Concessão da ordem para anular o julgamento da apelação. Concessão de habeas corpus ‘de ofício’ para reconhecer, via de conseqüência, a extinção da punibilidade pela prescrição (CP, artigos 109, VI, c/c art. 100, par. 1).” (HC 68013, 2a. T STF, Rel. Min. Célio Borja, DJ 22/06/90). 

1. Recurso Extraordinário do acusado de que não se conhece por falta da precisa indicação do dispositivo ou alínea que o autorizem, nos termos do art. 321 do RI.  2. Concessão de habeas corpus, de ofício, para cassar o acórdão, afastando a nulidade declarada sem argüição no recurso da acusação (Súmula 160), a fim de que prossiga o julgamento da apelação, no mérito.”(RE 100599/MG, 1a. T STF, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ 31/10/84).

No que diz respeito aos processos findos, cabível será a ação penal de natureza não condenatória,  constitutiva negativa (como preferem outros), ou seja, a Revisão Criminal, ainda que se trate de decisão proferida pelo Tribunal do Júri.

E não se diga não caber Revisão Criminal contra decisões do Júri já transitadas em julgado. Aliás, é cabível, inclusive, para discutir se a decisão foi ou não manifestamente contrária à prova dos autos, senão vejamos:

Direito Processual Penal. Tribunal do Júri. Decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Revisão criminal. Colisão de direitos. Absolvição.Superior Tribunal de Justiça 5.ª T. – REsp. 964.978/SP j. 4.08.2012 – public. 30.08.2012. VOTO VENCEDOR: Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO contra o v. acórdão do eg. Tribunal de Justiça daquele Estado, que deu provimento à revisão criminal interposta pelo recorrido, cassando a condenação promovida pelo Tribunal do Júri e absolvendo-o, nos termos do art. 386, VI, do CPP.No apelo nobre, alega o Parquet a violação aos arts. 619 e 621 do Código de Processo Penal, a par de dissídio jurisprudencial, ao fundamento de que o r. decisum viola a Soberania dos Veredictos, corolário fundamental da instituição do Júri.Requer a cassação do aresto guerreado, com a determinação de que o recorrido seja submetido a novo julgamento pelo Tribunal dos Pares.(…)A eminente Ministra Laurita Vaz, Relatora, deu provimento ao Especial a fim de que o recorrido seja submetido a novo julgamento pelo Conselho de Sentença.Para melhor análise da quaestio, pedi vista dos autos. Inicialmente, acompanho a eminente Ministra Relatora nas teses que dizem respeito ao prequestionamento da matéria, bem como, quanto à possibilidade do manejo da Revisão Criminal para demonstrar, a posteriori, que o julgamento se deu, EVIDENTEMENTE, de forma contrária à prova dos autos.Com os devidos acatamento e respeito ao entendimento adotado pela eminente Ministra Relatora, ouso divergir e trazer a debate outra tese acerca da necessidade de submissão do recorrido a novo julgamento pelo Tribunal do Júri.Nestes termos, a divergência está limitada apenas no alcance da apreciação da revisão criminal, mormente no que diz respeito à possibilidade de absolvição por meio do processo revisional ou da obrigatoriedade de determinação de novo Júri.É incontroverso que a Soberania dos Veredictos é norma constitucional (…) entre as garantias da instituição do Tribunal do Júri (…).Também o é a garantia de inviolabilidade do Ato Jurídico Perfeito, do Direito Adquirido e da Coisa Julgada (…).Aliás, oportuno ressaltar que a Soberania dos Veredictos é consequente lógico do aperfeiçoamento da Coisa Julgada, pois ambas cingem-se da mesma natureza, como forma de proteção da segurança jurídica e da impossibilidade de substituição da representação popular na figura do Conselho de Sentença.(…)Estamos, aqui, num conflito entre valores tutelados pela Constituição Federal, que se apresentam de forma colidente. De um lado, postam-se a Soberania dos Veredictos e a segurança da Coisa Julgada, em face do direito à Liberdade (…).(…)Premissa posta, entendo que não há falar em violação à garantia constitucional da Soberania dos Veredictos por uma ação revisional que existe, exclusivamente, para flexibilizar uma outra garantia de mesma solidez, qual seja, a segurança jurídica da Coisa Julgada.Ademais, é sempre importante lembrar que a Revisão Criminal é mecanismo processual inerente à defesa, que busca preservar o direito de Liberdade, sendo admissível apenas na hipótese de trazer algum benefício ao condenado, por expressa vedação à reformatio in pejus na sede eleita.Dessa forma, o art. 626 do Codex Procedimental assim determina:(…)Colhe-se, da leitura do texto legal, que o juízo revidendo pode, entre outras prerrogativas, ABSOLVER O RÉU, vedada, tão só, a inadmissível reformatio in pejus, sem que se faça qualquer menção de exceção quanto aos vereditos do Tribunal do Júri.No julgamento do HC nº 68.658/DF, perante o Supremo Tribunal Federal, o eminente Ministro Celso de Mello, hoje decano daquela Corte, expressamente assevera que:(…)No mesmo sentido, o Dr. Paulo Rangel assim consigna em seu livro: (…)(Direito processual penal, 2011, p. 1057).(…)Da análise do mesmo art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, tem-se, no § 2º, a consagração dos regimes de excepcionalidade de certas hipóteses, entre as quais perfilam-se a Revisão Criminal e sua sistemática. (…)Acerca do tema, no artigo referenciado, Tourinho Filho cita lição do eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes em sua obra, verbis: (…) (Curso de direito constitucional, p. 114).Numa análise sistemática do instituto da Revisão Criminal, observa-se que entre as prerrogativas oferecidas ao Juízo de Revisão está expressamente colocada a possibilidade de absolvição do réu, enquanto a determinação de novo julgamento seria consectário lógico da anulação do processo.Diz o Professor Tourinho: “Não se nega seja a soberania dos veredictos dogma constitucional. É o que está, com todas as letras, no art. 5º, XXXVIII, da Lex Mater. Também o é a revisão criminal prevista nos arts. 102, I, f, e 108, I, b, da Lei Fundamental, por força do § 2º do art. 5º desse mesmo diploma maior. E a revisão criminal, ao contrário do que possa parecer, tem um poder muito mais extenso e intenso que a própria soberania do Júri. É uma ação que objetiva desconstituir a coisa julgada, quando houver erro judiciário. É mercê da revisão criminal que se reapreciam condenações proferidas até pelo Supremo Tribunal Federal, cimeiro do Poder Judiciário, fazendo surgir, desnudado e desventrado, de maneira absolutamente soberana o espectro do erro judiciário. É por meio dela que as decisões do Superior Tribunal de Justiça, órgão maior das Justiças Estaduais e Federal, são reexaminadas. Assim também as decisões proferidas por quaisquer Tribunais, porque o interesse maior é não permitir o erro judiciário, mazela de muitos julgados”.Nesse contexto, se estivéssemos diante de um recurso ordinário de apelação criminal, em caso de absolvição pelo Conselho de Sentença, caberia ao Tribunal ad quem, mediante recurso ministerial, apenas determinar a realização de novo Júri, da mesma forma que, se a decisão fosse condenatória, não poderia absolvê-lo ordinariamente.Todavia, a revisão criminal, como a Ação Rescisória no campo cível, não está sujeita a tal limitação, podendo mitigar a garantia constitucional da Coisa Julgada, inclusive, com a absolvição do acusado, por força expressa do comando legal acima citado.O sistema processual brasileiro está firmado na outorga da competência excepcional da rescisão da Coisa Julgada, apenas, ao Tribunal que tenha competência para apreciar a revisão criminal, não havendo falar em fracionamento dessa jurisdição, como aconteceria caso um juízo revidendo que, tão só, pudesse determinar a reapreciação da causa por outro juízo revisor. Sobre o tema, voltamos a citar o artigo do Professor Fernando Tourinho Filho, de onde colhe-se, verbi gratia : “O nosso ordenamento não criou um juízo rescindens e outro rescissorium, à semelhança do que ocorre em outras poucas legislações. Se não o criou, não podem os Tribunais criá-lo, usurpando função do legislador. Sempre foi da nossa tradição o juízo revidendo exercer o juízo rescindens e o juízo rescissorium simultaneamente. No juízo revidendo, entre nós, a causa é novamente julgada, seja para alterar a classificação da infração, seja para absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo, à dicção do art. 626 do CPP. Nenhuma restrição às decisões do Tribunal do Júri. Quando da elaboração da Lei n. 263, em fevereiro de 1948, ocasião em que os mesmos constituintes procuraram adaptar a Instituição do Júri aos novos caracteres traçados no § 28 do art. 141 da Carta Política de 1946, revogaram os arts. 604, 605, 606 e outros do CPP, mas mantiveram em toda a sua inteireza as disposições sobre revisão criminal”.Por todo o exposto, renovando as máximas vênias ao entendimento adotado pela eminente Ministra Laurita Vaz, ouso divergir, reconhecendo a possibilidade de absolvição por parte do eg. Tribunal de Justiça de réu condenado pelo Tribunal do Júri, em sede de revisão criminal.Nestes termos, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.É o voto.Adilson Vieira Macabu- Relator para Acórdão.”

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça  concedeu habeas corpus para reformar decisão do Tribunal de Justiça da Bahia , por entender que o empate favorece o réu no julgamento de revisão criminal. O habeas corpus afasta a condenação por tentativa de homicídio imposta pelo júri popular a um réu que também foi condenado por homicídio qualificado no mesmo processo. A pena determinada originalmente chegou a 19 anos e três meses de reclusão, no regime inicial fechado.  Após o trânsito em julgado da condenação, a defesa ajuizou revisão criminal no Tribunal de Justiça da Bahia, alegando que a decisão dos jurados havia sido frontalmente contrária às provas. Com isso, pretendia tirar as qualificadoras e reduzir a pena por homicídio, bem como afastar a condenação por tentativa de homicídio. Embora o acórdão do julgamento da revisão informasse que ela foi considerada improcedente, a defesa observou que, no ponto relativo à tentativa de homicídio, houve empate nos votos dos desembargadores (três a três), inclusive com o voto do presidente do colegiado. Com base nisso, a defesa impetrou habeas corpus no STJ, sustentando que deveria prevalecer a posição mais favorável ao réu. O parágrafo 1º do artigo 615 do Código de Processo Penal dispõe que, havendo empate de votos no julgamento de recursos, e se o presidente do colegiado não tiver manifestado sua opinião, deverá proferir o desempate; caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu. Por analogia, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite a aplicação dessa regra sobre recursos também na hipótese de revisão criminal, para a qual não há previsão específica em caso de empate. Ao analisar o pedido, a ministra Laurita Vaz, relatora do habeas corpus no STJ, observou que, apesar de o acórdão afirmar que a Seção Criminal do TJBA, por maioria, julgou a revisão improcedente, as notas taquigráficas confirmam a ocorrência de empate em relação ao pedido de afastamento da condenação por tentativa de homicídio – votação da qual participou o presidente, que assim ficou impedido de desempatar a questão. Diante disso, em voto que foi acompanhado de forma unânime pela Quinta Turma, a ministra concedeu o habeas corpus para reformar a decisão estadual e afastar a condenação por tentativa, aplicando o parágrafo 1º do artigo 615 do CPP. Também com base em jurisprudência do STF, a relatora rechaçou a tese de que o princípio constitucional da soberania dos vereditos do júri popular impediria a modificação das decisões por revisão criminal. “A competência do tribunal do júri não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado”, diz precedente do ministro Celso de Mello (HC 70193/STF) citado pela ministra Laurita Vaz. “A condenação penal definitiva imposta pelo júri”, continua o precedente, “é passível, também ela, de desconstituição mediante revisão criminal, não lhe sendo oponível a cláusula constitucional da soberania do veredito do conselho de sentença.”

Ora, se pode o mais (ou seja, discutir a justeza da condenação frente às provas constantes dos autos), quanto mais o menos (a aplicação da pena).

Como é cediço, o art. 621, III, do Código de Processo Penal admite a revisão dos processos findos quando, após a sentença, se descobrir nova circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena. Eis o caso!

Ademais, não esqueçamos que o Tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos (art. 630, caput, do Código de Processo Penal).

Aliás, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal negou provimento a um Recurso Extraordinário (RE 505393) interposto pela União contra o ex-reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ele foi denunciado por co-autoria em crime de peculato doloso juntamente com outras duas pessoas, à época, o vice-reitor e a diretora de contabilidade. O delito foi atribuído ao diretor de pessoal da universidade e um auxiliar direto por terem inserido servidores fantasmas na folha de pagamento e se apropriado da remuneração supostamente paga. O ministro Sepúlveda Pertence, relator do recurso, ressaltou que o Recurso Extraordinário não ataca questão referente à prisão preventiva, apenas pretende a irresponsabilidade total do Estado e, conseqüentemente, a improcedência da ação. “O que se discute é a responsabilidade, cujo fundamento principal é a revisão criminal e não a questão da prisão, que no máximo poderia levar a uma redução da indenização”, afirmou. “Creio que é hoje opinião consensual da doutrina tratar-se de responsabilidade civil objetiva e nem se poderia compreender de outro modo a disciplina do artigo 630 do Código de Processo Penal”, considerou o relator. De acordo com Pertence, a constitucionalização do artigo 630 do CPP no artigo 5º, LXXV, da CF, “obviamente não veio para criar pressupostos subjetivos à responsabilidade fundada no risco administrativo do artigo 37, parágrafo 6º”.Por fim, Sepúlveda Pertence entende que, na hipótese, “estão preenchidos tranquilamente todos os pressupostos do velho artigo 630 que foi apenas reforçado quando alçado à garantia individual”. Fonte: STF.

Nos casos dos processos pendentes, na apelação, o réu, acaso condenado (e mesmo o Ministério Público como fiscal da lei – art. 257, II, Código de Processo Penal), arguirá que houve erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena.

Se foi sentença proferida pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri, o apelante pedirá ao Tribunal, ainda que alternativamente, que a pena seja aplicada corretamente, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal. Neste caso, o Tribunal ad quem, se lhe der provimento, retificará a aplicação da pena ou mesmo da medida de segurança (se sua aplicação levou em conta inquéritos e ações penais ainda em andamento), sem que se cogite de mácula à soberania popular, pois o erro foi do Magistrado sentenciante e não em razão do veredito.

Neste sentido:

A finalidade da revisão criminal é corrigir erros de fato ou de direito ocorridos em processos findos, quando se encontrem provas da inocência ou de circunstância que devesse ter influído no andamento da reprimenda” (ex-TACRSP – RT 638/376). O mérito recursal resta prejudicado, pois, de ofício, anula-se a dosimetria da pena, ante a ausência de análise de todas as circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, o que viola o princípio da individualização da pena. Os efeitos desta decisão estendem-se aos corréus” (TJPR – 5ª. Câmara Criminal – RC 0287046-2 – rel. Eduardo Fagundes – j. 27.8.2009 – DOE 11.9.2009).

Atentar, apenas, para o Enunciado nº. 713 da súmula o Supremo Tribunal Federal: nada que não se possa resolver com a concessão do Habeas Corpus de ofício, nos termos acima explicitados.

De mais a mais, esta decisão do Supremo Tribunal Federal tem efeito ex tunc, pois é preciso relembrar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu, na sessão do dia 20 de março de 2013, o julgamento da Reclamação nº. 4335, na qual a Defensoria Pública da União questionou decisão do juízo da Vara de Execuções Penais de Rio Branco que negou a dez condenados por crimes hediondos o direito à progressão de regime prisional.

A Corte Suprema havia já reconhecido a possibilidade de progressão de regime nesses casos no julgamento do Habeas Corpus nº. 82959, em fevereiro de 2006, por seis votos contra cinco, quando foi declarado inconstitucional o § 1º. do art. 2º. da Lei nº. 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que então proibia tal progressão (mais tarde alterado pela Lei nº. 11.464/2007). No caso específico da Reclamação nº. 4335, no entanto, o Juiz de Direito do Acre alegou que, para que a decisão do Supremo Tribunal Federal no referido Habeas Corpus tivesse efeito erga omnes (ou seja, alcançasse todos os cidadãos), seria necessário que o Senado Federal suspendesse a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos, conforme prevê o artigo 52, X, da Constituição Federal, o que não havia ocorrido.

Na sessão deste dia 20 de março, o julgamento foi concluído após voto-vista do Ministro Teori Zavascki, cujo entendimento foi seguido pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello. Em seu voto, o Ministro Teori salientou que, embora o artigo 52, X, da Constituição estabeleça que o Senado deve suspender a execução de dispositivo legal ou da íntegra de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo, as decisões da Corte, ao longo dos anos, têm-se revestido de eficácia expansiva, mesmo quando tomadas em controvérsias de índole individual. O Ministro também citou as importantes mudanças decorrentes da Reforma do Judiciário (EC 45/2004), a qual permitiu à Corte editar súmulas vinculantes e filtrar, por meio do instituto da repercussão geral, as controvérsias que deve julgar. “É inegável que, atualmente, a força expansiva das decisões do STF, mesmo quando tomadas em casos concretos, não decorre apenas e tão somente da resolução do Senado, nas hipóteses do artigo 52, inciso X, da Constituição”, afirmou. O fenômeno, segundo o Ministro, “está se universalizando por força de todo um conjunto normativo constitucional e infraconstitucional direcionado a conferir racionalidade e efetividade às decisões dos Tribunais Superiores e especialmente à Suprema Corte”.

Para o Ministro, contudo, é necessário dar interpretação restritiva às competências originárias do Supremo, pois o uso indistinto da reclamação poderia transformar o Tribunal em “verdadeira corte executiva”, levando à supressão de instâncias locais e atraindo competências próprias de instâncias ordinárias. No caso em análise, entretanto, o Ministro Teori acolheu a Reclamação nº. 4335 por violação à Súmula Vinculante nº. 26 (“para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990”). Embora a reclamação tenha sido ajuizada mais de três anos antes da edição da súmula, a aprovação do verbete constitui, segundo o Ministro, fato superveniente, ocorrido no curso do julgamento do processo, que não pode ser desconsiderado pelo Juiz de Direito, nos termos do artigo 462 do Código de Processo Civil.

Nesta Reclamação, os Ministros Sepúlveda Pertence (aposentado), Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio julgavam inviável a Reclamação (não conheciam), mas, de ofício, concediam Habeas Corpus para que os dez condenados tivessem seus pedidos de progressão do regime analisados, individualmente, pelo juiz da Vara de Execuções Criminais. Os votos dos Ministros Gilmar Mendes (relator) e Eros Grau (aposentado) somaram-se aos proferidos na sessão do dia 20, no sentido da procedência da reclamação. Para ambos, a regra constitucional que remete ao Senado a suspensão da execução de dispositivo legal ou de toda lei declarada inconstitucional pelo Supremo tem efeito de publicidade, pois as decisões da Corte sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle difuso.

Esta verdadeira “novela mexicana” iniciou-se em fevereiro de 2006 quando, por seis votos a cinco, os Ministros declararam a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que proibia a progressão do regime de cumprimento da pena (já alterado pela lei acima referida). Mas como a decisão foi tomada por meio de um Habeas Corpus, o Juiz da Vara de Execuções considerou que ela só teve efeito imediato para as partes envolvidas no processo. Para ele, a eficácia geral da decisão (eficácia erga omnes) só passaria a valer quando o Senado Federal publicasse resolução suspendendo a execução da norma considerada inconstitucional pelo Supremo, como prevê a Constituição. Depois, na sessão do dia 19 de abril de 2007, pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski suspendeu o julgamento.

Naquela oportunidade, quatro dos Ministros já se posicionaram sobre a matéria: Gilmar Mendes e Eros Grau disseram que a regra constitucional tem simples efeito de publicidade, uma vez que as decisões do Supremo sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle difuso (incidental), ou seja, aquelas que decidem questões no caso concreto, com efeitos entre as partes. “Não é mais a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa eficácia normativa”, afirmou Gilmar Mendes. “A decisão do Senado é ato secundário ao do Supremo”, disse Eros Grau.

Houve divergência, pois os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa refutaram a solução proposta por Gilmar Mendes e Eros Grau. Mesmo afirmando que o dispositivo em debate é “obsoleto”, o então Ministro Sepúlveda Pertence não concordou em reduzir a uma “posição subalterna de órgão de publicidade de decisões do STF” uma prerrogativa à qual o Congresso se reservou. Segundo ele, as sucessivas Constituições promulgadas no Brasil têm mantido o dispositivo. Ele defendia então a utilização, no caso, da súmula vinculante, criada pela Emenda Constitucional nº 45/04, da Reforma do Judiciário.

Já o Ministro Joaquim Barbosa classificou como anacrônico o posicionamento do Juiz da Vara de Execuções de Rio Branco. “O anacronismo é do juiz. Portanto, do próprio Poder Judiciário”, afirmou. Ele defendeu a manutenção da leitura tradicional do dispositivo constitucional em discussão por ser “uma autorização ao Senado, e não uma faculdade de cercear decisões do Supremo”.

Os quatro Ministros concordaram que os dez condenados tinham o direito de terem seus pedidos de progressão do regime de cumprimento da pena analisados, individualmente, pelo Juiz de Execuções Criminais. Os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau concederam o direito ao deferir a reclamação. Já os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa concederam Habeas Corpus de ofício aos condenados, já que o primeiro indeferiu a reclamação e segundo não conheceu do pedido.

A “novela” continuou na sessão do dia 16 de maio de 2013 quando, mais uma vez, foi adiado o julgamento, em razão agora de um pedido de vista do Ministro Teori Zavascki.

Continuava, portanto, a discussão acerca da função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Senado Federal no controle difuso (incidental) de constitucionalidade das leis, ou seja, em decisões tomadas a partir da análise de casos concretos que chegam à Corte.

Aliás, quando se pronunciou no seu voto-vista, o Ministro Ricardo Lewandowski ressaltou que a competência do Senado no controle de constitucionalidade de normas tem sido reiterada, desde 1934, em todas as constituições federais, não sendo “mera reminiscência histórica”. De acordo com ele, reduzir o papel do Senado a mero órgão de divulgação das decisões do Supremo, nesse campo, “vulneraria o sistema de separação entre os Poderes”. O Ministro, então, salientou que a Constituição Federal de 1988 fortaleceu o Supremo, mas não ocorreu em detrimento das competências dos demais Poderes. “Não há como cogitar-se de mutação constitucional, na espécie, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece quanto ao tema, a começar pelo que se contém no artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, o qual erige a separação dos Poderes à dignidade de cláusula pétrea que se quer pode ser alterada por meio de emenda constitucional”, destacou na opoertunidade. Segundo ele, o Supremo recebeu um grande poder, a partir da Emenda Constitucional 45, sem que houvesse a necessidade de alterar o artigo 52, X, da Constituição. “Os institutos convivem, a meu ver, com a maior harmonia sem choque ou contradição de qualquer espécie”, avaliou o Ministro Ricardo Lewandowski. Por esses motivos, o Ministro não conhecia da Reclamação, mas também concedia o Habeas Corpus de ofício a favor dos condenados.

Em seguida, o relator da ação, Ministro Gilmar Mendes, reforçou alguns pontos de seu voto, proferido em fevereiro de 2007, e acrescentou que a reclamação teria perdido o objeto por conta da edição da Súmula Vinculante 26. Por essa razão, o Ministro frisou que a ação estaria prejudicada.

Antes, no dia 1º. de fevereiro de 2007, mais uma vez, foi interrompida a análise da Reclamação por um pedido de vista antecipado do Ministro Eros Grau. Nesta oportunidade, o relator reafirmou que a “não publicação pelo Senado de resolução que nos termos do artigo 52, X, da Constituição Federal, suspenderia a execução da Lei declarada inconstitucional pelo Supremo não teria o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica”, mantendo a liminar e julgando procedente a ação para cassar as decisões que, segundo ele, feriam julgado do Supremo. O Ministro explicou que “o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a  decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais”. “Essa solução resolve, a meu ver, de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se assim também as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado e de outro, a visão doutrinária ortodoxa e, permitamos dizer, ultrapassada do disposto no artigo 52, X”. Diante desse entendimento, à recusa do juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco (AC) em conceder o benefício da progressão de regime nos casos de crimes hediondos, que há, portanto, desrespeito à eficácia da decisão do Supremo, eu julgo procedente a Reclamação para cassar essas decisões e determinar que seja aplicada a decisão proferida pelo Supremo”. (Fonte: STF).

Pois bem. A solução agora está dada.

Estamos diante do chamado “controle difuso abstrativizado”, expressão do Professor Fredie Didier Júnior, in “Transformações do Recurso Extraordinário” – Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins.” (Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. – Coordenadores, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, pp. 104-121 (“A decisão sobre a questão da inconstitucionalidade seria tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes.”).

Também neste sentido, era a lição do hoje Ministro Luís Roberto Barroso: “A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC nº 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção. (…) Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados ao art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!” (“O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, São Paulo: Ed. Saraiva, 2004, p. 92).

Ainda à época da polêmica, em artigo publicado no site www.paranaonline.com.br (acessado no dia 02 de abril de 2006), Luiz Flávio Gomes, afirmou:

“O STF reconheceu a inconstitucionalidade do § 1.º, do art. 2.º, da Lei 8.072/1990 (lei dos crimes hediondos) num caso concreto. Logo, de acordo com a clássica doutrina, essa decisão não tem (ou não teria) efeito erga omnes (frente a todos), sim, somente inter partes. Mas convém sublinhar que esse assunto está ganhando uma nova dimensão dentro do STF e é bem provável que chegaremos em breve à conclusão de que, em alguns casos, do controle difuso de constitucionalidade deve também emanar eficácia erga omnes e vinculante (o fenômeno já está recebendo o nome de controle difuso abstrativizado, consoante expressão de Fredie Didier Júnior. Aliás, foi precisamente isso que ocorreu, recentemente, naquela famosa decisão do STF que decidiu sobre o número de vereadores em cada município, que foi dirimida dentro de um Recurso Extraordinário (RE 197.917-SP). Com base na decisão da Suprema Corte o TSE emitiu Resolução (Res. 21.702/2004) disciplinando a matéria, dando-lhe eficácia erga omnes. Foram interpostas duas ADIns contra essa Resolução (3.345 e 3.365). Ambas foram rejeitadas e, desse modo, o STF acabou proclamando que essa eficácia (erga omnes), extraída de uma decisão proferida em RE, estava absolutamente correta (porque, afinal, o RE deve ser visto na atualidade não só como instrumento para a tutela de interesses das partes, senão, sobretudo, como “defesa da ordem constitucional objetiva”) (Gilmar Mendes). No caso do HC 82.959 acham-se presentes todos os requisitos dessa nota “abstrativizadora” (ou generalizadora). Com efeito, a decisão foi do Pleno do referido Tribunal. De outro lado, cabe asseverar que a matéria (progressão de regime em crimes hediondos) não foi discutida só em relação ao caso concreto relacionado com o pedido do condenado, sim, o tema foi debatido e discutido olhando-se para a lei “em tese” (não se voltou unicamente para o caso concreto). Ademais, houve a preocupação de se definir a extensão dos efeitos da decisão, para disciplinar relações jurídicas pertinentes “a todos” (não exclusivamente ao caso concreto). Chama atenção, nesse sentido, justamente o quarto voto favorável à tese da inconstitucionalidade, do Ministro Gilmar Mendes, que a reconheceu, porém, com eficácia ex nunc, não ex tunc (para frente, não para trás nesse ponto inovou-se como base legal o art. 27 da Lei 9.868/1997, que é instrumento típico do controle concentrado). Afastou-se o óbice legal para a progressão de regime nos crimes hediondos, entretanto, daqui para frente. Por que eficácia só ex nunc? Porquê dessa forma qualquer pessoa que tenha sido condenada e que já tenha cumprido pena em regime integralmente fechado não conta com o direito de postular qualquer indenização contra o Estado. Vigência e validade: já não se pode confundir a vigência de uma lei com sua validade. Aquela depende unicamente do preenchimento dos requisitos formais (discussão, votação, aprovação da lei, sanção, publicação e vigência). A validade, por seu turno, está coligada a exigências substancias (ou materiais), ou seja, a lei vigente é válida quando compatível com a Constituição (quando for verticalmente compatível com o Texto Maior Ferrajoli, Canotilho etc.). No momento em que o STF, por seu órgão Pleno, julga inconstitucional uma lei, retira-lhe a validade. O texto continua formalmente vigente, até que o Senado (CF, art. 52, X) suspenda a sua “execução” (ou seja, até que o Senado elimine formalmente o texto do ordenamento jurídico), mas não vale. E se não vale não pode ser aplicado por nenhum órgão jurisdicional do país. A conclusão a que se chega, destarte, é a seguinte: apesar da inexistência de norma explícita, o julgamento de inconstitucionalidade de um texto legal, pelo STF, na prática, mesmo quando se dá num caso concreto, no que diz respeito à sua “validade”, acaba produzindo efeitos “contra todos” e possui eficácia vinculante (sobretudo frente ao Poder Judiciário). O descumprimento da decisão do STF, por qualquer órgão judiciário brasileiro, para além de retratar uma convicção ideológica conflitiva com o Estado constitucional e democrático de Direito, dará ensejo a uma dupla consequência jurídica: (a) em primeiro lugar cabe a interposição de uma Reclamação junto ao STF (contra a decisão do juiz que está violando a declaração de inconstitucionalidade mencionada). Em outras palavras, pode o prejudicado, via reclamação, bater às portas desta Corte para que se reconheça seu direito de ver seu pedido de progressão examinado concretamente pelo Judiciário; (b) em segundo lugar, não se pode de modo algum afastar a possibilidade de uma ação indenizatória contra o Estado, por estar o Juiz afetando direitos fundamentais de um condenado, na medida em que recusa acolher uma declaração de inconstitucionalidade do STF ao mesmo tempo em que continua aplicando um texto legal já reconhecido como inválido. O descumprimento intencional e “irracionalmente ideológico” da decisão do STF, já anunciado por alguns juízes, pode indiscutivelmente implicar em responsabilidade civil do Estado (porque ninguém está obrigado a se sujeitar a uma determinada forma de execução reconhecidamente inconstitucional). Sublinhe-se que STF proferiu uma decisão tecnicamente perfeita e político-criminalmente correta, porque a impossibilidade de progressão de regime nos crimes hediondos é nada mais nada menos que expressão do Direito penal do inimigo de Jakobs, que sustenta a tese de que alguns criminosos devem ser tratados não como cidadãos, sim, como inimigos. Que o autor de crime hediondo seja tratado de modo diferente e com mais rigor é razoável, mas nem ele nem ninguém pode ser tratado como inimigo. De qualquer maneira, a pergunta que todos estão formulando agora é a seguinte: é justo que, nos crimes hediondos, verdadeiramente hediondos, o condenado cumpra somente um sexto da pena para o efeito da progressão de regime? Não seria o caso de se distinguir alguns crimes, exigir um pouco mais de cumprimento efetivo da pena (um terço ou metade, conforme o crime hediondo seja ou não violento), para só depois autorizar a progressão? Com a palavra o legislador brasileiro. De qualquer modo, mesmo que ele venha a disciplinar essa matéria de forma mais rigorosa, sua nova legislação não vai poder retroagir. Isso significa, na prática, o seguinte: todos os condenados por crimes hediondos podem postular ao juízo respectivo a progressão de regime, desde que presentes dois requisitos: cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento carcerário. Recorde-se que o exame criminológico que era necessário para o efeito da progressão já não é exigido pela lei brasileira. A exigência desse exame constitui hoje ilegalidade patente. A lei dos crimes hediondos proibia a progressão de regime de modo peremptório e geral e, formalmente, não abria nenhuma exceção. Isso era muito rigoroso e era injusto em muitos casos. A partir da decisão do Pleno do STF (HC 82.959) o juiz pode conceder a progressão do regime em alguns casos concretos. Isso significa, na prática, conferir ao juiz muito mais responsabilidade, colocando fim à figura do “juiz carimbador”, que só tinha o trabalho de dizer: “crime hediondo, regime fechado”. Finalmente e felizmente começa a agonizar esse tipo de magistrado “despachante”. No Estado constitucional e democrático de Direito só existe espaço para um tipo de juiz: o que dá a cada um o que é seu, fundamentando todas as suas decisões, tendo por base a constitucionalidade, legalidade e razoabilidade. Inclusive no âmbito criminal, estamos começando a ver o fim do juiz burocrata, guiado por “automatismos”. A decisão ora em consideração, de outro lado, não significa que o STF “abriu as portas das cadeias”, para colocar na rua milhares de criminosos hediondos etc. A lei dos crimes hediondos continua, no mais, em vigor e a análise de cada progressão caberá ao juiz. Mas é certo todo ordenamento jurídico necessita de instrumentos que permitam ao juiz fazer justiça em cada caso concreto. Isso é fruto do princípio da razoabilidade que, apesar dos retrocessos, acompanha a constante e vitoriosa evolução da humanidade.”

Para ilustrar este trabalho, também é de rigor transcrever um texto publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Ciminais – IBCrim, nº. 161, em abril de 2006, (bem) escrito por Fernanda Teixeira Zanoide de Moraes:

Na teoria, para que se confira caráter geral, com extensão erga omnes e não mais inter partes, a decisão do Supremo Tribunal Federal deve, seguindo preceito constitucional do art. 52, X, da CF, ser comunicada ao Senado Federal para que, exercendo seu poder discricionário – que envolve juízo de oportunidade e conveniência -, “suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Uma grande novidade trazida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, neste importante e histórico julgamento, está em conferir, em sede de controle de constitucionalidade difuso, efeitos ex nunc (a partir da decisão de inconstitucionalidade) e extensão erga omnes, tornando uma eventual resolução do Senado Federal ato inócuo. Pois bem. O controle judicial de constitucionalidade no Brasil é misto, pois se faz pela convivência entre dois métodos distintos: o controle concentrado ou abstrato (austríaco), pelo qual o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, poderá fazer o controle, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual incompatível com o ordenamento constitucional, sem a existência de um caso concreto a ser solucionado (art. 102, I, “a”, CF); e, o controle difuso ou aberto (norte-americano – judicial review), que pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal na solução de um caso concreto, observando-se, quando a inconstitucionalidade for declarada por tribunal, o princípio da reserva de plenário, embutido no art. 97 da CF, pelo qual a inconstitucionalidade somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial. Quanto aos efeitos, no controle abstrato, por via de ação, a decisão do Supremo Tribunal Federal afasta do ordenamento jurídico lei ou ato normativo incompatível com a Constituição Federal e possui eficácia contra todos (erga omnes) e efeito retroativo (ex tunc), “desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade
da lei ou ato normativo, inclusive os atos pretéritos com base nela
praticados (efeitos ex tunc)”.Diferentemente, no controle difuso, por via de exceção, a decisão de inconstitucionalidade é tida como questão prejudicial de mérito e, por ser imperativo lógico, abarca apenas as partes envolvidas no caso concreto (inter partes), com efeitos também retroativos (ex tunc), já que a situação jurídica ocorrida se firmou em lei ou em ato normativo declarado inconstitucional. Em regra, referida decisão em sede de controle difuso pode adquirir extensão erga omnes, somente após a expedição de uma resolução pelo Senado Federal, suspendendo, no todo ou em parte, a execução da lei tida por inconstitucional em decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal (art. 52, X, CF). Neste ponto, a latere as inovações trazidas pelo julgado no campo do Direito Penal Constitucional, o julgamento do Habeas Corpus nº 82.959
também trouxe outras duas importantes peculiaridades na seara constitucional do controle de constitucionalidade. Em primeiro, flexibilizou-se a regra dos efeitos ex tunc em controle difuso, utilizando-se em analogia o dispositivo do art. 27, criado para o controle abstrato, da Lei nº 9.868/99. Esse dispositivo permite ao Pleno, por maioria de dois terços de seus membros, “tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Esse entendimento se extrai do conteúdo do voto do ministro Gilmar Mendes, que prevendo a avalanche de ações extrapenais, caso os efeitos da decisão de inconstitucionalidade fossem dados ex tunc, ponderou que: “reiteradamente, o tribunal reconheceu a constitucionalidade da
vedação de progressão de regime nos crimes hediondos, bem como todas as possíveis repercussões que a declaração de inconstitucionalidade haveria de ter no campo civil, processual e penal, reconheço, que, ante a nova orientação que se desenha, a decisão somente poderia ser tomada com eficácia ex nunc. (…) Ressalto que esse efeito ex nunc deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam situações ainda suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão”. Na esteira desse raciocínio, o Plenário da Excelsa Corte decidiu fixar um “outro momento” a partir do qual a segurança jurídica e o interesse social estariam protegidos. Consta do teor da ementa: “o tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão”. A nosso ver, a exegese aplicada pelo Su­premo Tribunal Federal – no intuito de conferir efeitos ex nunc – e abrangendo todas as condenações que ainda envolvam situações passíveis de serem submetidas ao regime da progressão, resguardou a aplicação mais favorável ao apenado, que poderá dentro do seu caso concreto, pleitear o benefício, caso ainda haja pena a ser cumprida, resguardada a apreciação, pelo juiz das execuções penais, do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos para a progressão. Consoante já antevia Alberto Silva Fran­co: “em face desse entendimento, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal terá eficácia a partir de sua prolação, atingindo, assim, os casos em que seja possível ao condenado a progressão no regime prisional. Isto significa que o efeito da declaração permitirá aos réus de processos em andamento, por crime hediondo ou assemelhado, desfrutar do regime progressivo; ao condenado em regime integralmente fechado, obter, na fase recursal, a transformação do regime imposto na condenação para o regime progressivo e, ainda, aos condenados, na fase de execução, progredir no regime prisional”. Mas não é só. Da leitura da ementa do julgado nota-se a segunda peculiaridade em sede de controle difuso, referente à extensão da decisão para além das partes. Tudo está a indicar que o Supremo Tribunal Federal conferiu à decisão declaratória, que em regra teria apenas limitação inter partes, clara projeção erga omnes, ao prever que “o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão”. Como se vê, a postura unânime do Plenário, representa um nítido avanço no moderno direito constitucional e está em consonância com o princípio da economia processual, na medida em que torna desnecessário que um dos legitimados do art. 103 da CF seja compelido a propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (controle abstrato), com o mesmo fundamento, para que o Supremo Tribunal Federal decida do mesmo modo, com extensão erga omnes.Essa extensão, desde logo pelo Supremo Tribunal Federal, torna despiciendo o papel do Senado Federal e absolutamente dispensável a necessidade da resolução, isto porque, sua ratio essendi, desde a Constituição de 1934, é a de conferir publicidade, atribuindo eficácia geral e suspendendo a execução da lei em face de todos, o que já foi feito pelo Plenário. Não é outro o entendimento do constitucionalista Luís Roberto Barroso: “A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC nº 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há mais lógica razoável em sua manutenção”. E conclui: “Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados ao art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!”. Assim, como se nota, as inovações trazidas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal vão além da observância dos princípios constitucionais da legalidade, dignidade da pessoa humana e da individualização da pena no âmbito do Direito Penal Constitucional, elas se espraiam e se irra­diam para além dele, estendendo os seus efeitos em face de todos que possuem condenações suscetíveis ao regime de progressão. Na prática, isto quer dizer, que todos os condenados por crimes hediondos e assemelhados que estejam cumprindo pena ou que venham a cumpri-la terão, por essa decisão, direito imediato à progressão de regime, desde que atendam aos requisitos objetivos e subjetivos da Lei de Execução Penal, podendo, inclusive, o magistrado competente exigir perícias complementares quando as peculiaridades da causa assim o recomendarem
.”

Logo, viva “o controle difuso abstrativizado” (Evoé Fredie Didier Jr.).

Não esqueçamos igualmente que a decisão ora comentada terá efeitos retroativos, inclusive relativizando a coisa julgada, em face da possibilidade da Revisão Criminal, pois se trata de uma norma jurídica de natureza processual penal material (sim, a sentença é um comando, uma norma jurídica, sem dúvidas!).

Como se sabe há dois princípios basilares que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro afirma que a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo.

Este princípio insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e, como garantia fundamental, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[2], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[3]

O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum). Desta forma, à vista desses dois princípios jurídicos, haveremos de analisar o disposto no referido art. 4º. da Lei nº. 11.689/08 que extinguiu o protesto por novo júri.

Como adiantamos, a questão reside saber se em relação aos autores de crimes praticados anteriormente a esta decisão do Supremo Tribunal Federal haverá ainda a possibilidade de diminuição da pena (data da ação ou omissão – art. 4º., Código Penal).

Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora revogada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade dos artigos revogados e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal.

Atentemos que qualquer norma que trate de um meio recursal diz respeito a uma garantia constitucionalmente assegurada que é o duplo grau de jurisdição. Odevido processo legal deve garantir a possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância, a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.

O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[4]

Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[5] (grifo nosso).          

Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[6]

Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[7]

A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[8]

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[9]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.[10]

Assim, considerando “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio[11], entendemos que se impõe a diminuição da pena base em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal posteriormente à entrada em vigor da nova orientação da Suprema Corte, atentando-se para o disposto nos arts. 2º. e 4º., ambos do Código Penal.[12]

Não é apenas o fato de uma norma está contida em um Código de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini, “estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.[13]

Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).

Também notemos que o art. 5º., XLVI, da Constituição Federal trata da individualização da pena.

Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.”(…) “Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução.” (…) “Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais.”(…) “Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.[14]

Segundo o profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, “la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (…) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena.[15] (grifo nosso). 

Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria.[16]

Canotilho explica que são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.[17]

A propósito, Ferrajoli:

Para que una norma exista o esté en vigor es suficiente que satisfaga las condiciones de validez formal, condiciones que hacen referencia a las formas y los procedimientos de acto normativo, así como a la competência del órgano de que emana. Para que sea válida se necesita por el contrario que satisfaga también las condiciones de validez sustancial, que se refieren a su contenido, o sea, a su significado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.”[18]

Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava que “entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado” (Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43).

Jean Paul Marat, em 1790, advertia que “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.”(Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78). A preocupação, vê-se, é antiga.[19]

Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofrerá forte contestação; de toda maneira, valemo-nos, mais uma vez, da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (…).”[20]



[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pelaUniversidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). EspecialistaemProcessopelaUniversidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da AssociaçãoBrasileira de Professores de CiênciasPenais, do InstitutoBrasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concursopúblicoparaingresso na carreira do MinistérioPúblico do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Los Derechos Fundamentales.Madrid: Tecnos, 1993, p. 67.

[3] FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial.  7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 62.

[4]  Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra, p. 219-220.

[5] CARVALHO, Taipa de, op. cit., p. 220 e 240.

[6] Idem.

[7] Tratado de Derecho Penal.ParteGeneral. Buenos Aires: Ediar, 1987. v I, p. 463- 464.

[8] Direito Intertemporal.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.

[9] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal.São Paulo: José Bushatsky, 1975, p. 124.

[10] O Processo Penal em Face da Constituição.Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

[11] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).

[12]Art.. – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Art. 4º – Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”

[13] Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).

[14] Os PrincípiosConstitucionaisPenais, PortoAlegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

[15]La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.

[16] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.

[17] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., p. 1.151.

[18] Derecho y Razón – Teoria del Garantismo Penal, Madri: Editorial Trotta S.A., 3ª. ed., 1998, p. 874.

[19] Leia-se Michel Foucault, no indispensável “Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões”, Rio de Janeiro: Vozes, 1998, 18ª. edição.

[20] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. As consequências processuais do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito dos antecedentes criminais e a aplicação da pena. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/as-consequencias-processuais-do-novo-entendimento-do-supremo-tribunal-federal-a-respeito-dos-antecedentes-criminais-e-a-aplicacao-da-pena/ Acesso em: 16 abr. 2024