Direito Previdenciário

Solidariedade social

Solidariedade social  

 

 

J. A. Almeida Paiva *

 

 

Em um país onde mais de 50 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, outro tanto não recebem aposentadoria e outros recebem quantias irrisórias, há classes que recebem 50, 60, 70, 80 ou mais vezes um salário mínimo por mês, além de 13º, 14º etc.

 

Quando se procura uma fórmula de equilibrar a situação para ajustar as contas de quem paga, evitando o colapso iminente a curto prazo, alegam-se direitos adquiridos, princípios constitucionais e outras tantas normas que garantem a intangibilidade desses direitos.

 

Num Estado de Direito, não há conflito de normas constitucionais; isto é princípio comezinho de direito.

 

Num Estado de Direito, acima da norma escrita deve-se levar em consideração o princípio da solidariedade social, da equidade humana, pilares do sentimento de justiça.

 

Hermes Lima tratando do assunto lembra que “os homens não podem deixar de viver em sociedade, e, nesse convívio, dependem forçosamente uns dos outros porque têm necessidades comuns, que não podem satisfazer senão através da vida coletiva. Possuem aptidões diversas, que os obrigam a se completarem mutuamente. Desde que a massa dos espíritos numa sociedade considere tais ou quais regras como essenciais à conservação e continuação da vida social, estamos diante de regras jurídicas” (1).

 

Para Leon Duguit seguindo pegadas de Aristóteles e Thomaz de Aquino, “considera na justiça o aspecto distributivo, que é aquilo que cada indivíduo sente ser do seu direito receber da comunhão, e o aspecto comutativo, que consiste em estatuir uma exata correspondência entre os valores e os serviços prestados.

 

Por isso Duguit doutrinava que “uma regra moral ou econômica torna-se de direito no momento em que reina o sentimento unânime ou quase unânime entre os indivíduos que compõem determinado grupo, de que a solidariedade social seria gravemente comprometida se o respeito desta regra não fosse garantido pela aplicação da força social”.

 

É a força coletiva que determina a regra social e, conseqüentemente, jurídica; o sentimento geral, popular é que determina que a vida social precisa ordenar-se segundo as normas de conduta de sorte a que todo sistema social aproxima-se dos ideais éticos que servirão de referência ao conteúdo das regras jurídicas. (2)

 

Como as norma éticas são produtos da vida coletiva e em comunidade, “infringir as normas éticas provoca espanto, reação, até escândalo. A natureza das normas éticas é social no sentido de que a força de sua obrigatoriedade decorre da experiência que o grupo tem de sua utilidade ou da crença que as eleva a exigências da vida comum” doutrina Hermes Lima. (3)

 

Se o Estado tradicionalmente estruturado segundo a corrente organicista do pensamento aristotélico, em uma Constituição com as atribuições de funções executiva, legislativa e judicial, estaria em franca decadência, apud Wolney Zamenhof de Oliveira Silva abonando lição de Ives Gandra Martins, “devendo ceder campo a um Estado diferente, no futuro” (4), mais do que nunca o sistema constitucional brasileiro caminha para ampliar as garantias dos direitos sociais, quer quando vêm elencados em seu art. 7º, quer quando trata dos princípios informativos gerais da atividade econômica (art. 170), quer quando trata da política urbana (art. 182), agrícola, fundiária e da reforma agrária (art. 184), quer, finalmente quando cuida especificamente da ordem social(5), que tem como base o “primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social”.

 

Por tais motivos ante a crescente evolução dos conceitos da vida em sociedade, repugna à consciência coletiva, conforme pesquisas publicadas pela imprensa, a reação de agrupamentos profissionais às medidas governamentais para adequação de certas desigualdades mantidas pelo sistema, quer previdenciário, quer de ganho em benefícios de entidades corporativas e em detrimento da ordem social como um todo.

 

O princípio da isonomia que cuida da igualdade, doutrina Celso Bastos, dá-nos conceito de igualdade substancial (tratamento uniforme para todos) e de igualdade formal que data da época da Revolução Francesa impedindo pelos princípios democráticos vigentes, “que alguém pretendesse, com seriedade, ser discriminado em função de sua ascendência;” (6)

 

um magistrado, v.g. não pode ser mais que um operário, só porque julga; juízes, advogados, médicos, funcionários públicos, empresários, motoristas, lavradores, operários etc, são todos iguais na medida em que pretendem receber do Estado um determinado benefício.

 

Este pode ser diferenciado, se no curso do lapso temporal para aquisição do direito forem atendidos pressupostos pré-determinados, de acordo com a capacitação econômica da classe social em que se vive.

 

Melhor esclarecendo: se um empresário pode contribuir mais para uma previdência privada, fatalmente quando se aposentar receberá mais que o operário que não tinha condição de pagá-la; todavia, do Estado, todos receberão valores proporcionais às contribuições pagas e subordinados a uma norma igualitária.

 

Quando se cuida dos fundamentos das garantias individuais, doutrina Ignacio Burgoa, professor de Direito Constitucional e Garantias da Universidade do México que “podemos dizer, sem sairmos da normalidade, que os seres humanos, por mais diversos que pareçam suas características e seus temperamentos, por mais diferentes seus fins particulares, por mais contrárias suas atitudes, coincidem num ponto fundamental: na genérica aspiração de alcançar sua felicidade, que se traduz em uma situação subjetiva consciente de bem estar duradouro, que não é outra coisa senão uma satisfação íntima permanente. Assim, para o egoísta, a felicidade estará em procurar para si mesmo os maiores benefícios possíveis, ainda que em prejuízo dos seus semelhantes; para o altruísta, para o filantrópico, ao contrário, a felicidade que se revela, repetimos, genérica e formalmente como uma satisfação vital subjetiva de caráter durável, consiste em fazer o bem a seus semelhantes, a seu povo, à sociedade que integra.”

 

Recaséns Siches em sua Filosofia Del Derecho também coloca a essência de todo ser humano ” na decisão do sujeito em sua determinação” (8), assim como escreveu o Doctor Angélico Tomás de Aquino, que o objetivo vital do homem consiste na “obra de acordo com os ditados de sua natureza racional”.

 

O individualismo tem de dar lugar ao interesse coletivo, tanto que a reação contra o sistema absolutista no qual imperava a desigualdade social existente entre os homens fez surgir sociólogos e políticos do século XVIII na França, como Rousseau, Voltaire, Diderot etc, que, observando as iniqüidades da realidade em que viviam, elaboraram doutrinas que preconizavam a igualdade humana, fazendo surgir a corrente jurídico-filosófica do jus-naturalismo a contestar a insignificância do indivíduo frente ao Estado absolutista.

 

Tais idéias também sofreram suas mutações; surgiu o liberal-individualismo incidindo em tantos erros que provocaram reações ideológicas, pois como disseram doutrinadores, “era mais livre o sujeito que gozava de uma posição real privilegiada, e menos livre a pessoa que não desfrutasse de condições de fato que lhe permitissem realizar as suas atividades conforme suas intenções e desejos”

 

Por isso Burgoa afirma que “Tratar igualmente os desiguais foi o gravíssimo erro em que incorreu o liberal-individualismo como sistema radical de estruturação jurídica e social do Estado”. (9)

 

Deixando ao largo a evolução filosófica e sociológica das garantias individuais a que tanto se apegam uns, temos a idéia de “bem comum” de criação mais recente, mas que tanto Aristóteles quanto São Tomás de Aquino já empregavam em suas doutrinas como fim de todas as leis humanas, ainda que sem uma definição clara.

 

Hoje se busca a justiça social, sem protecionismo ou exclusivismo a classes, corporações ou grupos humanos, sem qualquer qualificativo que possa excluir este ou aquele, quer beneficiando o indivíduo ou a coletividade, exclusivamente, mas como doutrina Burgoa, novamente invocado aqui, expressando ” uma verdadeira sínteses harmoniosa dos imperativos primordiais de caráter filosófico, político, social e econômico que devem condicionar a todo direito positivo básico para conseguir a felicidade de um povo, mediante a proteção e desenvolvimento progressivo de todos e cada um de seus membros integrantes, como homem singelamente considerado e como sujeitos pertencentes às classes majoritárias da população.” (10)

 

O país só terá Justiça Social na medida em que todos compreenderem a magnitude, a grandeza e a importância de ceder os que têm mais em favor dos que têm menos.

 

A história tem demonstrado que no processo dinâmico da vida, as ideologias têm se distanciado da realidade e as pessoas não se dão conta da transformação do homem e da sociedade, deixando de adaptar-se aos estágios da história, criando o problema da “falsa consciência”.

 

“A interpretação moral de uma de nossas próprias ações é inválida quando, por força dos modos de pensamento e concepções da vida tradicionais, não permita a adaptação da ação e do pensamento a uma situação nova e cambiante e, afinal obscureça e entrave realmente este ajustamento a esta transformação do homem” (11) afirma Karl Mannheim ao procurar dissecar e clarificar estruturas nebulosas e deformadoras de ideologias que não mais compartilham com a justiça social da época em que vivemos, onde muitos ainda perplexos sentem a angústia de desconhecimento da sociologia do conhecimento.

A sociedade moderna ainda que dependa de normas para sua segurança e certeza, ainda que vivendo a fase de uma ciência política alicerçada em Aristóteles, Maquiavel, Bodin e Montesquieu, ainda que mais modernamente conhecendo a obra de Alexis de Tocqueville, Compte E Marx, precisa incrementar a solidariedade humana ao conceito de justo e equânime para que as decisões do Judiciário, como doutrinou Couture tenham “independência, autoridade e responsabilidade, princípios basilares, radicais da função judicante; independência, para que suas decisões não sejam uma conseqüência da fome ou do medo; a de autoridade, para que suas decisões não sejam simples conselhos, divagações acadêmicas capazes de atender a simples caprichos; e de responsabilidade, para que a sentença não seja um ímpeto de ambição, do orgulho ou da soberbia e sim da consciência vigilante do homem frente ao seu próprio destino”. (12)

 

O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens; por isso deles a sociedade espera Justiça, equilíbrio e compreensão do momento histórico em que vivemos, sem lugar para privilégios e desigualdades, por mais justas que possam parecer!

 

 

Notas de rodapé

 

1- HERMES LIMA, Introdução à Ciência do Direito, Livraria Freitas Bastos, 7ª ed. 1954

2- LEON DUGUIT, Traité de Droit Constitucionel 1911, t. I, p. 1 e segs.; CARLOS CAMPOS, Sociologia e Filosofia do Direito, 1934, p. 24 e segs.

3- Ob. Cit., p. 13

4- Cf. Elementos de Teoria Geral do Estado Comunitário”, ed. INTERLEX, 1ª ed. 2000

5- Cf Título VIII, DF/88, art. 193 e seguintes

6- CELSO RIBEIRO BASTOS, Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, 4ª, 1981, p.225/227

7- IGNACIO BURGOA, Las Garantias Individuales, Editorial Porrúa, 1977, México, 10ª ed. P.15

8- RECASÉNS SICHES, Filosofia Del Derecho, págs. 70/71

9- IGNACIO BURGOA, ob. Cit., p. 31

10- Idem, p. 55

11- KARL MANNHEIM, Ideologia e Utopia, Zahar editores, 3[ ed.1976, p. 121

12- EDUARDO COUTURE, Las Garantias Constitucionales Del proceso civil”

Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2003.

 

 

* Advogado em São Paulo e Professor de Processo Civil

Website: http://www.almeidapaiva.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
PAIVA, J. A. Almeida. Solidariedade social. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/previdenciario/solidariedade-social/ Acesso em: 28 mar. 2024