Judiciário

Juízes “Bouche de La Loi” e Juízes à “La Paul Magnaud”

 

O que me levou a elaborar este artigo foram os casos recentemente divulgados pela mídia de juízes que tomaram decisões rotuladas como polêmicas.

 

Eis uma pergunta que as pessoas leigas fazem sobre como deve ser a atuação dos juízes: moderada ou arrojada? seguidora da legislação em vigor ou inovadora? bouche de la loi ou à la Paul Magnaud?

 

No meu livro A Justiça da França – um modelo em questão, LED, 2001, trato, no ítem 2.1 de PAUL MAGNAUD, “O BOM JUIZ”:

 

O leitor talvez indague o porquê da inclusão de dados biográficos de Paul Magnau neste estudo sobre a Justiça da França.

 

No entanto, compreenderá logo adiante.

 

Nascido em 1849 na cidade francesa de Bergerac, filho de um funcionário público sem maior projeção, Paul Magnaud presta o serviço militar e se destaca na Guerra de 1870 (França X Alemanha).

 

Posteriormente faz o curso de Direito em Paris.

 

Ingressa na Magistratura em 1881.

 

Após um começo de carreira com alguns postos menos destacados, termina por seu nomeado presidente do Tribunal da cidade de Chateau-Thierry, em 1887. (Devemos esclarecer que no sistema judiciário francês o cargo de presidente de qualquer tribunal dá ao juiz que o exerce muito maior destaque que os outros juízes desse tribunal, e o leitor verá a importância desse tema logo adiante quando se tratar do trabalho de Magnaud no Tribunal de Paris, onde ele não será mais presidente).

 

Ali naquela cidade ele trabalhará até 1906 e ficará conhecido como o Presidente Magnaud.

 

Citemos algumas de suas decisões mais famosas: num julgamento famoso, que chamou a atenção de todo o país na época, inclusive tendo sido objeto de explorações político-partidárias, absolveu uma mulher por furto famélico; num outro julgamento absolveu um rapaz que não conseguia emprego e que era acusado de mendicância e vadiagem; absolveu uma mulher acusada de adultério tendo fundamentado sua sentença no entendimento de que não havia prejuízo público mas apenas para a vida dos próprios cônjuges; e, através de inúmeras decisões surpreendentes para a época, pretendeu a descriminalização do adultério, o reconhecimento do que depois se tratou como estado de necessidade, avançou no sentido do direito de greve, de segurança do trabalho, da valorização da mulher e sua igualdade em relação ao homem, etc.

 

Em 1906 mesmo será eleito deputado pelo partido radical-socialista, permanecendo como tal por todo seu mandato de 4 anos, em que tentou sem nenhum sucesso reformas legislativas na área penal, sobretudo.

 

Retornando à Magistratura em 1910, foi designado para exercer seu cargo no Tribunal de Paris, onde não era mais presidente, ficando apagado até que prestou serviço militar na 1ª Guerra Mundial como oficial superior, recebeu a comenda da Legião de Honra pela sua conduta corajosa, aposentando-se em 1918.

 

Tornado Conselheiro Honorário da Corte de Apelação de Paris (cargo honorífico).

 

Morreu em 1926 na cidade de Saint Yrieix, com 78 anos de idade.

 

Foi amigo pessoal de Clemenceau e Émile Zola, estes que divulgaram muito seu nome através da mídia da época.

 

Feminista por influência de sua mulher, que foi uma das primeiras mulheres a ingressar na maçonaria e que era afilhada da escritora e feminista George Sand.

 

Sobre ele muito se escreveu, mas o livro mais completo se chama Le bon Juge, que tem como autor André Rossel, reeditado em 1983 pela Editora A l’Enseigne de l’arbre verdoyant.

 

Certa feita disse um juiz francês que Magnaud deveria ter vivido ou na época dos Parlamentos ou numa época da Justiça francesa que ainda não chegou… e que ele é um representante verdadeiro dos juízes franceses…

 

Em suma, era um polemista ardoroso, corajoso e pouco respeitoso com tudo o que contrariasse suas idéias de entusiasta do progresso.

 

No ítem 4.14 abordo o tema juiz bouche de la loi:

 

O Direito francês faz parte da chamada “família romano-germânica”, em que a fonte principal do Direito é a lei e em que a jurisprudência se presta somente a interpretar a lei, pensando-se na jurisprudência “contra legem” como heresia perigosa.

 

Como age o juiz francês na interpretação da lei?

 

René David, em Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, Martins Fontes, 1996, pp. 103/104, diz: Jurisprudência francesa. Considerando a interpretação do código civil, na celebração do seu centenário, o primeiro presidente do Tribunal de Cassação francês, Ballot-Beaupré, num discurso famoso, pronunciado em 1904, repudiou o método histórico de interpretação que até então havia imperado na doutrina de modo inconteste.

 

“Quando o texto, sob uma forma imperativa, é claro e preciso, não se prestando a nenhum equívoco, o juiz é obrigado a inclinar-se e a obedecer. Mas quando o texto apresenta qualquer ambigüidade, quando se levantam dúvidas sobre o seu significado e o seu alcance, e quando comparado com outra possa, em certa medida, estar ou em contradição ou restringido, ou, ao inverso, desenvolvido, julgo que, então, o juiz detém os mais latos poderes de interpretação; ele não deve dedicar-se obstinadamente à investigação de qual tenha sido, há cem anos, o pensamento dos autores do código ao redigirem este ou aquele artigo; ele deve interrogar-se sobre o que seria esse pensamento se o mesmo artigo tivesse sido hoje redigido por eles; ele deve a si próprio responder que, em presença de todas as modificações que, desde há um século, se operaram nas idéias, nos costumes, nas instituições, no estado econômico e social da França, a justiça e a razão impõem que se adapte liberal e humanamente o texto às realidades e às exigências da vida moderna. A esta maneira de ver corresponde o desenvolvimento espetacular que se verificou na França a partir do início do nosso século, na matéria da responsabilidade civil. Algumas palavras constantes de um artigo do código civil, art. 1384 – palavras às quais, é certo, os seus autores não atribuíram nenhum significado particular -, foram carregadas pela jurisprudência de um novo sentido; este texto foi utilizado para se desenvolver ao extremo a responsabilidade do fato das coisas, deixando-se de lado qualquer idéia de erro. A jurisprudência francesa veio, assim, sanar a passividade do legislador, que não havia interferido na regulamentação dos problemas, quanto à responsabilidade, colocados pelo desenvolvimento da mecânica e especialmente pela multiplicação dos acidentes de automóvel. O desenvolvimento revolucionário verificado nesta matéria não deve iludir-nos. Bem vistas as coisas, ele é único, e de modo nenhum característico dos métodos usuais da jurisprudência francesa. Na França, como nos outras países da família romano-germânica, os trabalhos preparatórios continuam a ter importância; quando são claros e as circunstâncias não levantam, depois da publicação da lei, um problema inteiramente novo, o qual é evidente que o legislador não pôde prever, os juízes franceses, normalmente, atentam aos trabalhos preparatórios do mesmo modo que os seus colegas dos outras países da família romano-germânica.”

 

Mais adiante, tratando da função “meramente interpretativa” da jurisprudência, pp. 118/119, diz o mesmo autor: “ Submissão dos juízes à lei. O papel da jurisprudência nos países da família romano-germânica apenas pode precisar-se em ligação com o da lei. Verificando-se a propensão atual dos juristas, em todos estes países, nos nossos dias, para procurarem apoio num texto de lei, o papel criador da jurisprudência dissimula-se sempre ou quase sempre atrás da aparência de uma interpretação da lei. Só excepcionalmente os juristas se afastam deste hábito e os juízes reconhecem francamente o seu poder criador de regras de direito. Eles persistem na sua atitude de submissão quotidiana à lei, ainda que o legislador reconheça, expressamente, que a lei pode não ter previsto tudo. O juiz deve, neste caso, nos nossos países, pronunciar uma decisão; não se pode refugiar atrás da fórmula do “non liquet”, como era permitido ao juiz, na época romana, quando o direito era incerto. O art. 1º, al. 2 do código civil suíço formulou, para este caso, uma regra: o juiz deve estatuir como o faria se fosse ele o legislador; inspira-se, nesta investigação, na tradição e na jurisprudência. O art. 1º do código civil suíço não é letra morta; acontece mesmo que os juízes descobrem, por vezes dum modo um pouco artificial, lacunas na ordem legislativa para fazerem uso do poder que lhes é atribuído. Contudo, de um modo geral, ele tem sido pouco utilizado. Esta prescrição, que suscitou um tão vivo interesse nos teóricos do direito, parece ter introduzido, em definitivo, bem poucas modificações no direito suíço, no plano prático. A “livre investigação científica”, preconizada por F. Gény, é exercida respeitando o dogma da plenitude da ordem legislativa; era mais simples conservar esta ficção. Por conseqüência, se nós quisermos analisar a medida em que a jurisprudência participa da evolução do direito, é necessário resignarmo-nos a procurar esta função atrás do processo de interpretação, verdadeiro ou fictício, dos textos legislativos. A jurisprudência desempenha um papel criador, na medida em que, em cada país, se pode, neste processo, afastar a simples exegese; tentei já demonstrar, quanto a este aspecto, a situação nos países da família romano-germânica. Qualquer que seja a contribuição trazida pela jurisprudência à evolução do direito, esta contribuição, nos países da família romano-germânica, é diferente da do legislador. O legislador que, na nossa época, estabelece os quadros da ordem jurídica, recorre a uma técnica particular que consiste na formulação dos comandos, na elaboração das regras de direito. A jurisprudência é muito excepcionalmente autorizada a utilizar esta técnica; a disposição do código civil francês (art. 5), que proíbe aos juízes estatuírem por via geral e regulamentar, tem o seu equivalente em todos os direitos da família romano-germânica, salvo um certo número de exceções certamente interessantes, mas que deixam intocado o principio.”

 

E, abordando a fragilidade da jurisprudência frente à lei como fonte do Direito, pp. 119/120, acentua: “Alcance do direito jurisprudencial. A jurisprudência abstém-se de criar regras de direito, porque esta é, segundo os juizes, tarefa reservada ao legislador e às autoridades governamentais ou administrativas chamadas a completar a sua obra. Dever-se-á considerar que, apesar desta posição de modéstia, as regras de direito sejam de fato criadas pelos juízes? Entre regras de direito jurisprudencial e regras de direito formuladas pela legislador existem, em todo o caso, duas importantes diferenças. A primeira diz respeito à importância relativa, num dado sistema, de umas e outras. A jurisprudência move-se dentro de quadros estabelecidos para o direito pelo legislador, enquanto a atividade do legislador visa precisamente estabelecer estes quadros. O alcance do direito jurisprudencial é, por isto, limitado, sendo a situação nos países da família romano-germânica, neste aspecto, exatamente o inverso da que é admitida nos países de “common law”. As “regras de direito” estabelecidas pela jurisprudência, em segundo lugar, não têm a mesma autoridade que as formuladas pelo legislador. São regras frágeis, suscetíveis de serem rejeitadas ou modificadas a todo o tempo, no momento do exame duma nova espécie. A jurisprudência não está vinculada pelas regras que ela estabeleceu; ela não pode mesmo invocá-las, de modo geral, para justificar a decisão que vai proferir. Se numa nova decisão os juízes aplicam uma regra que já tinham anteriormente aplicado, isto nâo é devido à autoridade que esta regra adquiriu pelo fato de a terem consagrado; com efeito, esta regra não tem nenhum caráter imperativo. É sempre possível uma mudança da jurisprudência, sem que os juízes estejam obrigados a justificá-la. Ela não ameaça os quadros, nem os próprios princípios do direito. A regra jurisprudencial apenas subsiste e é aplicada enquanto os juízes – cada juiz – a considerarem como boa. Concebe-se que, nestas condições, se hesite em falar aqui da regra. A rejeição da regra do precedente, segundo a qual os juízes devem ater-se às regras que eles aplicaram num caso concreto, não é um mero acaso. A regra de direito tem sido sempre considerada, desde a Idade Média, nos países da famífia romano-germânica, como devendo ser de origem doutrinal ou legislativa, parque importa que ela seja feita ponderadamente de modo a abarcar uma série de casos típicos que ultrapassam os limites e se libertam das contingências de um processo determinado. No plano dos princípios parece-nos importante que o juiz não se transforme em legislador. É isto que se procura nos países da família romano-germânica; a fórmula segundo a qual a jurisprudência não é uma fonte de direito parece-nos ser inexata, mas exprime uma verdade se a corrigirmos, afirmando que a jurisprudência não é uma fonte de “regras de direito”. “Non exemplis, sed legibus, judicanclum est”.”

 

Dando justo valor aos juízes franceses, grandes estudiosos do Direito e modelos de competência, afirma: “A importância da jurisprudência francesa não se restringe, assim, às fronteiras da França; as decisões do tribunal de Cassação francês e as do Conselho de Estado são estudadas e exercem uma certa influência em vários países, vizinhos ou distantes, de língua francesa, e, além destes, em outros países, europeus ou extra-europeus, pertencentes à família romano-germânica, onde se atribui uma particular importância, em alguns domínios do direito, à jurisprudência francesa.”

 

Já Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pp. 53/54, diz do papel realmente criador da jurisprudência francesa, citando o exemplo do aresto ‘Jeand’heur’ da Corte de Cassação, que passou a regular a questão da ‘responsabilidade civil extracontratual decorrente da guarda de coisas’.

 

Uma situação interessante é abordada por Mauro Cappelletti, ob. cit., quando afirma que a complexidade da vida moderna e o crescimento dos poderes Legislativo e Executivo obrigam o Judiciário a uma arrancada decisiva frente a essa nova realidade, principalmente das ações coletivas, caso queira sobreviver. Analisa, com uma ponta talvez de pessimismo o Judiciário europeu (naturalmente, incluído o francês): “a autoridade judiciária, ou a ‘ordre judiciaire’, viu progressivamente diminuir a própria relevância político-social, motivo pelo que se pode dizer, sem demasiado exagero, que, em face dos poderes legislativo e executivo, a sua impotência tornou a magistratura ordinária na débil e quase marginal ‘sobrevivente’ de outros tempos.” Cita Lawrence Friedman que fala no “resto do passado”. E, realmente, se comparado o Judiciário francês atual com os Parlamentos do “Ancien Régime” tanto um quanto outro autor têm razão.

 

Em contraposição ao juiz judiciário que tem de decidir atrelado à lei, o juiz da área administrativa tem a seu favor o fato de ser o Direito Administrativo “fundamentalmente um direito jurisprudencial”, conforme expressão de René Chapus, ob cit., p. 6, o que o faz um juiz no sentido mais perfeito da palavra, que é o de um verdadeiro “criador do Direito.”

Tenho visto, nestes anos de trabalho no Judiciário, juízes de todos os tipos psicológicos.

 

Observados os dois extremos (bouche de la loi e à la Paul Magnaud), existiria uma gradação, digamos, de 0 a 100.

 

Todavia, excluídas as hipóteses de conduta absurda, parece-me que a contribuição de cada um é importante.

 

Não de pode pensar em juízes bouche de la loi X juízes à la Paul Magnaud, mas sim juízes bouche de la loi X juízes à la Paul Magnaud.

 

Desculpem-me a comparação, se parecer imprópria: num time de futebol tanto valem o goleiro e os jogadores da defesa, quanto os do meio do campo e os atacantes… Imagine-se uma equipe composta somente por jogadores de defesa ou somente por atacantes…

 

Fica aqui manifestado meu apreço a todos os estilos, sinceramente.

 

 

* Luiz Guilherme Marques, Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG).

Como citar e referenciar este artigo:
MARQUES, Luiz Guilherme. Juízes “Bouche de La Loi” e Juízes à “La Paul Magnaud”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/juizes-bouche-de-la-loi-e-juizes-a-la-paul-magnaud/ Acesso em: 28 mar. 2024