Judiciário

Jurisprudência dos Valores: Uma Revolução sem Armas no Mundo Judiciário

Jurisprudência dos Valores: Uma Revolução sem Armas no Mundo Judiciário

 

 

Eduardo Feld *

 

 

“Assim como o grande mestre do xadrez, que não vê peças no tabuleiro, mas sim forças em ação, o bom juiz, ao olhar o código, não vê a letra da lei, mas sim valores”.

 

 

1. POSITIVISMO X JUSNATURALISMO

 

O séc. XIX e o início do séc. XX marcaram um período de profundas transformações no pensamento jurídico. A corrente denominada jusnaturalismo, baseada no caráter metafísico e racionalista do direito, cedeu espaço ao positivismo jurídico, que pregava o direito como convenção imposta pelo uso da força. Tal passagem teve extrema importância, por banir um sistema de pensamento jurídico que não explicava satisfatoriamente a legitimidade da norma, partindo de princípios errados, já que direito não diz respeito à natureza, muito menos a Deus, mas sim à cultura de um povo.

 

            A escola do jusnaturalismo, embora adequada à sua época, pecava por esconder o verdadeiro sentido da estrutura de poder sob o manto da divindade e da natureza; ou seja, o mais forte mandava e justificava informando que ele estava inserido de forma natural e perfeita na criação divina, tal como a terra, a flora e a fauna. Note que muitas das antigas constituições no mundo definiam o poder como emanado de Deus. E Deus, como bem se sabe, é um conceito que pode ser usado ao sabor do freguês.

 

O positivismo jurídico veio a corrigir estas distorções, não ficando, entretanto, imune a críticas, de igual peso e procedência. O mais forte continuou mandando, agora porém com uma certa (mas não total) sinceridade; mandando porque tem força para mandar e assim convencionou, com outros igualmente fortes.

 

A doutrina do positivismo jurídico teve como principal teórico o austríaco Hans Kelsen, cuja obra pregava a neutralidade, mas acabava por, indiretamente, favorecer a injustiça e acabou servindo de sustentáculo teórico para o regime do III Reich.

 

É bem verdade que o uso que se faz da obra não a macula, do mesmo modo que a teoria da relatividade não perde valor científico por ter sido usada para produzir a bomba atômica. O que se sustenta aqui, entretanto, é que, sob o mito da neutralidade, o positivismo jurídico, assim como o jusnaturalismo, pode ser usado para justificar qualquer coisa. Comete, portanto, pecado semelhante, desta vez com arcabouço científico.

 

 

2. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

 

O positivismo jurídico foi marcado por três fases no que tange à interpretação da norma jurídica: a jurisprudência dos conceitos, a jurisprudência dos interesses e a jurisprudência dos valores. O positivista jurídico da primeira fase desta doutrina (a jurisprudência dos conceitos), tal como o bicheiro, defende que o valor da norma é conseqüência da letra, ou seja, vale o escrito. Entretanto, na sua interpretação, segue o lema da caserna: a neutralidade (o regulamento) é aplicada apenas para os neutros, ao passo que os amigos levam tudo e os inimigos, nada.

 

Assim, a jurisprudência dos conceitos se funda na idéia de interpretação mecanicista ou determinista, ou seja, prega que para uma dada situação e um dado conjunto de normas jurídicas, há um e somente um resultado possível, dado pela ciência jurídica, independente da subjetividade do intérprete. Tal tese se sustenta pelos dogmas da completitude e da coerência do ordenamento jurídico.

 

Pelo dogma da completitude, a lei prevê todas as situações fáticas possíveis. Se a lei não proíbe um fato, este é implicitamente permitido. Se a lei confere um poder, este significa um dever da parte contrária. Se a lei expressamente permite, está fazendo exceção a uma possível proibição.

 

Pelo dogma da coerência, não há conflitos reais, apenas conflitos aparentes de normas e tais são resolvidos pelos critérios da hierarquia, da especialidade e o cronológico (na ordem).

 

Se depois de tantas regras, ainda restasse alguma dúvida (o que só se admitia em caráter excepcionalíssimo), caberia ao juiz suprir a ausência da norma, atuando como um legislador no caso concreto. Neste caso, o juiz não estaria exercendo a atividade de interpretação, mas uma outra atividade, supletiva, chamada integração da norma.

 

Os teóricos desta primeira fase, chamados conceptualistas, esqueciam-se, porém, ou preferiam não ver, que as palavras têm múltiplos significados, ou seja, são polissêmicas; que nem todo resultado interpretativo pode ser determinado de forma unívoca, pois a escolha entre vários significados das palavras decorre, na maioria dos casos, de uma opção ideológica. Esqueciam-se, ou preferiam não ver, que estavam, na verdade, muito distantes da neutralidade e muito próximos da sustentação de esquemas espúrios de dominação e de manutenção de poder.

 

Posteriormente, veio uma nova fase, marcada pela interpretação teleológica (com base nos objetivos da lei) e no apego à realidade fática e econômica, chamada jurisprudência dos interesses, fase esta de transição rumo à mais moderna jurisprudência dos valores.

 

 

3. O QUE É ESSA TAL JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES?

 

A jurisprudência dos valores representa o que existe de mais atual em termos de lei, direito e justiça. Mas afinal, como diria Rita Lee, acerca do rock,n,roll, o que é essa tal jurisprudência dos valores?

 

Será ela uma nuvem passageira? Será ela mais uma teoria fajuta para vender livros?

 

Definitivamente, não. Ela é um amadurecimento do positivismo jurídico, incorporando seus acertos e expurgando seus erros. Positivismo este que passou pela jurisprudência dos conceitos, que teve sua época e foi importante, mas cujas contradições fizeram morrer, ao estilo de todo processo dialético. É a máxima de Belchior: “Tudo muda, e com toda a razão”.

 

É preciso deixar claro que esta nova escola não se identifica em nenhuma hipótese com a escola do direito livre (ou do “direito alternativo”, no Brasil). Esta foi uma tentativa de instituir uma rebeldia adolescente na hermenêutica jurídica. Como dizia minha professora do ginásio, o adolescente contesta por contestar. A escola do direito livre, neste diapasão, nega tudo que é vigente, porém sem estabelecer uma fundamentação coerente. Destrói, sem saber o que ali colocar, depois.

 

Jurisprudência dos valores não é uma atitude inconseqüente. Jurisprudência dos valores é a interpretação da lei segundo os valores por ela tutelados. A vigência do direito positivo não é negada, ao contrário, é confirmada, mas suas palavras ganham vida, ganham luz, não são mais simples palavras, são valores.

 

 

4. O BOM JUIZ

 

Meu pai costumava dizer que o bom jogador de xadrez (deixando claro que não era o caso dele) não via peças, mas forças no tabuleiro. Do mesmo modo, o bom juiz não vê palavras no código, mas valores.

 

Há uma música de Bezerra da Silva, um famoso sambista do Rio de Janeiro, que diz o seguinte:

 

“Ah, meu bom juiz, não bata este martelo nem dê a sentença antes de ouvir o que o meu samba diz, pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa”.

 

É preciso, pois, refletir e indagar sobre essa figura do bom juiz. O senso comum nos diz: um ser sensível aos processos psíquicos e sociais, uma pessoa preocupada com o futuro da humanidade, um estadista, atento a desde a mais sofisticada filosofia até a voz do morro, um membro de poder (um empregado da Sociedade não sujeito a humores e à ideologia de um chefe), alguém que deve estar acima de súmulas vinculantes e outras baboseiras semelhantes, um homem ou mulher que ama servir ao público. Neste contexto, o conhecimento jurídico é apenas mais um dos requisitos.

 

Posteriormente, é preciso indagar onde se encontra esse bom juiz. A princípio, o senso comum nos diz que ele reside apenas na fantasia dos loucos e dos idealistas.

 

Entretanto, a práxis, que costuma ser cruel com os otimistas, às vezes surpreende os pessimistas. O brasileiro tem sido pessimista em relação ao seu Estado, com uma boa dose de razão, e a mídia trata de afastar qualquer restinho de esperança, sugerindo que se mate o doente para curar a doença. Muitos desses pessimistas têm sido surpreendidos por experiências pessoais positivas no trato com o Judiciário, principalmente no interior do Brasil. Pequenas vitórias, como por exemplo, o fato de se conseguir falar com o juiz, muitas vezes são a negação de máximas que se tornaram verdadeiras por serem repetidas diariamente pelos grandes meios de comunicação.

 

O bom juiz começa a ser bom atendendo ao povo. E termina sendo bom ao ser a voz do povo, no seu mister diário de sentenciar. E a voz do povo é a voz de Deus. O bom juiz está atento a valores e quer ser justo, embora este ideal seja, em certa medida, inatingível.

 

Posso afirmar, por experiência pessoal, que há um movimento de baixo para cima, no Judiciário brasileiro (movimento este que não tem nome e ainda não foi devidamente estudado em trabalhos científicos), de maior busca do valor justiça, e que coincide com o fenômeno que tem sido chamado de “juvenilização da magistratura”. A juventude está sendo preparada, mesmo sem saber, num contexto de jurisprudência dos valores e um exemplo disso é a afirmação crescente do papel político do juiz.

 

Ou seja, cada vez mais, o juiz brasileiro é um “bom juiz”.

 

 

5. O PAPEL POLÍTICO DO JUIZ

 

Ninguém pode escapar de fazer juízos de valor políticos. Fazêmo-los o dia inteiro, sem perceber. Os membros de poder fazem-nos em nome do Estado. Para o Executivo e o Legislativo, isso sempre foi visto como algo inerente à própria atividade estatal, mas para o Judiciário, curiosamente, a visão tradicional da população e até dos teóricos vinha negando esse caráter.

 

O interlocutor acostumado com visões simplistas dirá: “mas o Judiciário não é eleito e, por isso, não tem legitimidade para fazer juízos de valor em nome do povo!”. Sim, isto é um problema, mas nem todo problema em ciência humana é passível de solução. Não creio que seria melhor termos eleições para juízes, em que pese alguns países adotarem esse sistema. Fico imaginando como seria a campanha de um candidato a juiz. Talvez um diria “vou condenar todo mundo” e outro diria “vou absolver todo mundo”.

 

O diabo é que o Judiciário sempre fez juízos de valor políticos (na maioria dos casos, em prol do conservadorismo), mas nunca assumiu isso. Hoje, se começa a deixar de ser conservador – e com sinceridade – e isto implica na derrubada de verdades estabelecidas. E sempre que se derrubam verdades estabelecidas, vem a repressão. Controle externo, súmula vinculante, estágio probatório, tetos, sub-tetos, humilhação às justiças estaduais, vala comum previdenciária, institutos repressores e massacrantes são punições aos subversivos da era moderna.

 

 

6. OS VALORES E O SUPOSTO DESPREPARO DA JOVEM MAGISTRATURA

 

Muito se tem ouvido falar que a jovem Magistratura é despreparada e que isto justifica institutos opressores como a “súmula vinculante”, o “controle externo” e o “estágio probatório” dos juízes.

 

Nos anos 60, tal como hoje, havia uma juventude que queria mudar o mundo, através de movimentos culturais da época. A reação vinha da forma usual: “eles eram jovens imaturos e despreparados”. Entretanto, os jovens venceram e mudaram o mundo, proporcionando-nos a liberdade de que hoje gozamos. Porém, como diz novamente Belchior, “O que era novo, jovem, hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer”.

 

Parece-me que tanto a “súmula vinculante” como o “controle externo” e o “estágio probatório” são tentativas de transformar o juiz num empregado, não do seu povo, mas de interesses personificados na figura do “mercado”. São uma clara reação contra o movimento da jurisprudência dos valores.

 

 

7. OS VALORES E A VINCULAÇÃO

 

O “mercado” internacional quer calar a nova Magistratura brasileira. Quer calar o movimento de profunda mudança, de baixo para cima, que começa no 1º grau e já ameaça chegar aos tribunais. Quer impor, contra esse movimento, um verdadeiro “cala-boca”, de cima para baixo. Propõe, para isso, um instrumento curioso: é a “súmula vinculante”, uma aberração, que tem por objetivo transformar cada juiz numa marionete ligada aos ditames do FMI, que, em que pese suas boas intenções, estão comprometidos com uma ideologia e nem sempre são, exatamente, os melhores para nossa Sociedade.

 

A jurisprudência dos valores, entretanto, rejeita qualquer vinculação. Imagine um cego numa estação de trem onde é proibida a entrada de cães. O juiz pode declarar que tal proibição para o cego (e não para o resto da humanidade) é inconstitucional. Ou seja, a atividade jurisdicional se dá em concreto, caso a caso, em função da atividade produtiva e consciente de cada juiz – o “pré-julgado” não existe.

 

Sendo assim, penso que todos os juízes devem, neste terrível momento, em que se tenta nos tirar o que é mais caro a um ser pensante – a consciência –  rejeitar e lutar bravamente contra este novo instituto, destruindo-o de baixo para cima. É o que se espera do bom juiz, que representa mais que um ideal, mais que uma utopia ou um ponto estático no horizonte, impossível de ser atingido. Indica uma direção, implica em um movimento, um trabalho permanente, ao qual devemos aderir.

 

 

* Juiz Substituto do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar e referenciar este artigo:
, Eduardo Feld. Jurisprudência dos Valores: Uma Revolução sem Armas no Mundo Judiciário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/jurisprudencia-dos-valores-uma-revolucao-sem-armas-no-mundo-judiciario/ Acesso em: 19 abr. 2024