Judiciário

O Juiz e o Tratamento das Situações Excepcionais

O Juiz e o Tratamento das Situações Excepcionais

 

 

Eduardo Feld *

 

            Conta uma pessoa que, por ocasião do seu primeiro emprego, como telefonista, recebeu uma ordem de seu patrão para não fazer ligações interurbanas para funcionários. Certa vez, alguém solicitou que ela realizasse uma ligação interurbana e ela recusou, com base na ordem superior. Posteriormente, levou um “carão” do empregador, pois tinha obedecido ao regulamento ao pé da letra. A situação era excepcional e justificava um tratamento excepcional. Ou seja, foi repreendida por obedecer. Por ser “pau mandado”. Neste caso, tratava-se de uma pessoa que, embora estivesse ainda exercendo um cargo de menor amplitude, tinha visão de longo alcance e, por isso, aprendeu a lição e depois progrediu para cargos bem maiores.

 

            Porém, infelizmente, não é esta a regra. Muitas vezes, deparamo-nos com empregados treinados, adestrados, como cães, para executar, ipsis litteris, aquilo que lhe foi ordenado.  Este quadro assusta, por diversas razões. Uma delas é que ele nos remete aos nazistas, que faziam barbaridades e, quando julgados, alegaram estar cumprindo ordens. Outra questão assustadora é que, sem sensibilidade para perceber e analisar, com prudência, cada situação, empregados colocam os consumidores muitas vezes em situação difícil e injusta. Ou seja, lidamos freqüentemente com pessoas sem o menor preparo, nem tampouco formação, para o excepcional. Daí o antigo quadro de humor de Jô Soares, em que o sujeito “quer falar com o chefe” e não servem assessores, assistentes, auxiliares, etc.. A angústia do personagem se dava por não haver uma filosofia de formação dos empregados para o uso do discernimento e da inteligência e, por isso, a salvação estava unicamente na figura do “chefe”.

 

E quando o chefe é o juiz?

 

            Em muitos casos, a figura desse “chefe” é exercida pelo juiz, pois o juiz é a última fronteira, ainda no plano da humanidade, que o cidadão pode buscar, quando os demais humanos fazem papel de robôs. O juiz não é robô, é humano. E está sempre pronto para atender.

 

            Costumo inserir em vários de meus artigos o velho exemplo do cego na estação de trem (que valia antes de existir a lei que garante a entrada do cão guia nos lugares públicos). Sem a existência dessa lei, como garantir o direito de ir e vir do cego que depende do seu cão, em face de uma norma positiva proibitiva? Direito alternativo, como querem os gaúchos? Direito natural, como querem os saudosistas do século XVIII? Não, simplesmente interpretação sistemática, da norma, numa análise de compatibilidade constitucional em concreto. Ou seja, a norma é declarada inconstitucional para aquele caso. Não se trata do controle abstrato, realizado pelo STF, pois neste caso a norma proibitiva da entrada de cães seria extirpada do ordenamento jurídico e todos (não só os cegos) poderiam andar livremente com cachorros pelo metrô. A conseqüência seria um terrível mau cheiro e riscos à saúde pública.

 

            Isto se chama “interpretação conforme a constituição”. Não aquela estudada nos cursinhos preparatórios, onde se ensina que o STF “dita normas” de interpretação, como se isso fosse ontologicamente possível. Falo da análise prudente de cada juiz, para cada caso, de acordo com a sua particular realidade. Daí a necessidade de formação acadêmica, filosófica e, sobretudo humana do juiz, critérios a serem priorizados na seleção.

 

            Este tema tem grande relação com o sistema democrático. O sistema democrático tem dois poderes escolhidos pelo voto, pela maioria e que, como conseqüência, tendem a priorizar a maioria. Mas a democracia não vive só de maioria. Democracia também é respeito à minoria, respeito à exceção. Isto inclui as minorias raciais, sociais, deficientes físicos e mentais e todos os demais casos que dependem da intervenção humana, e não robótica, na solução das excepcionalidades. Uma das mais nobres funções do juiz e que, de certo modo, justifica que ele não seja, no sistema de origem romana, selecionado pelo voto popular.

 

            O assunto aqui tratado leva, também a um reflexão sobre a idéia de “súmula vinculante”, que traz no seu bojo a pretensão de que soluções judiciais sejam robóticas, de acordo com casos pré-estabelecidos, como se tudo o que pudesse acontecer no mundo estivesse agrupado nos equivocadamente chamados “casos idênticos”. Não há casos idênticos. Gêmeos idênticos não são idênticos, e para distingui-los, serve o juiz.

 

            Ou seja, se fosse aplicada, pelos juízes, a regra da “súmula vinculante”, que é inconstitucional, imoral, injusta e ainda imprópria sob o ponto de vista ontológico, o juiz deixaria de ser aquele “chefe” (no bom sentido), no qual o ser humano pode confiar, quando a Sociedade por si só não solucionou seu problema. Passaria a ser mais um robô, pronto a dizer “heil Hitler”, em reverência aos casos roboticamente sumulados. Triste e assustadora perspectiva, que todos nós não queremos.

 

 

* Juiz Substituto do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar e referenciar este artigo:
, Eduardo Feld. O Juiz e o Tratamento das Situações Excepcionais. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/o-juiz-e-o-tratamento-das-situacoes-excepcionais/ Acesso em: 18 abr. 2024