Judiciário

A Hipocrisia do Tribunal

A Hipocrisia do Tribunal

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

31.05.2005

 

          A História se repete. No dia 16.06.2004, a Assembléia Legislativa do Estado do Pará promoveu uma palestra, do eminente constitucionalista José Afonso da Silva, a respeito do tema “Reforma Constitucional e Segurança Jurídica: o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido”, sem se preocupar com o fato de que ela própria estava aprovando, na sala ao lado, em redação final, um projeto de emenda constitucional, que atribuiu à própria Assembléia a indicação para as quatro primeiras vagas de Conselheiros dos Tribunais de Contas do Estado e dos Municípios, “derrubando” assim uma decisão unânime e definitiva do Supremo Tribunal Federal, de 19.03.2003, proferida na Ação Direta nº 2.596, que foi proposta pela Associação dos Tribunais de Contas e pela qual foi declarada a inconstitucionalidade dos incisos II, IV e VI do art. 307 da Constituição Paraense, para determinar, em decisão conforme à Constituição, que a vaga existente no Tribunal de Contas do Estado do Pará, desde março de 2000 – a terceira aberta após 1989 -, seria de escolha do Governador, mas não por livre indicação política, como se pretendia na época, com a nomeação da esposa do Senador Luiz Otávio Campos e sim dentre Auditores, indicados pelo próprio Tribunal.

 

Em sua palestra, o Dr. José Afonso defendeu a tese da inconstitucionalidade da contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões dos servidores públicos, que estava sendo criada pela Emenda Constitucional federal nº 41, de 19.12.2003, dizendo que, infelizmente, os governantes costumam desrespeitar a Constituição, sempre que existem outros interesses, denominados de “razões de Estado”, ou de “interesse público”. Esquecia, no entanto, que a Emenda Constitucional estadual, elaborada pela mesma Assembléia Legislativa que o havia convidado a falar sobre a Emenda Federal, estava anulando, também, os direitos adquiridos e as cláusulas pétreas, no tocante aos Auditores dos Tribunais de Contas.  A respeito do assunto, escrevi um artigo, que pode ser lido na Internet, em: http://www.profpito.com/hipjur.html , no qual procurei demonstrar o absurdo da situação, que denominei de “hipocrisia jurídica coletiva”, porque a Assembléia convidou o Dr. José Afonso para falar sobre a Emenda dos aposentados, quando ela própria estava aprovando uma outra Emenda, tão inconstitucional quanto a Emenda Federal, pretendendo selecionar, discricionariamente, as inconstitucionalidades que deveriam ser denunciadas, para acobertar as de interesse dos governantes, dos promotores do evento, ou de alguns de seus participantes.

           

Agora, o ilustre jurista, Dr. Zeno Veloso, em artigo publicado no jornal o Liberal de 02.01.2005, sob o título “Controle Difuso e Tribunal de Contas”, informou que ministrou um Curso, no Tribunal de Contas dos Municípios, por solicitação de seu Presidente, Conselheiro Aloísio Augusto Lopes Chaves, a respeito do controle jurisdicional de constitucionalidade. Em seu artigo, o Dr. Zeno disse que pretendia dar notícia do evento e divulgar o assunto, e passou a tecer breves considerações a respeito do controle difuso e da possibilidade de que o Tribunal de Contas, embora não pertencendo ao Poder Judiciário, aprecie a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. Aliás, a dúvida é tão antiga, que já foi pacificada pela Súmula nº 347, de 13.12.1963, do Supremo Tribunal Federal: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”. Sobre o tema, elaborei parecer, como Assessor Jurídico do Tribunal de Contas do Estado do Pará, em 11.05.1983, quando se discutia a competência desse Tribunal, para o julgamento das contas municipais, em face da criação, recente, do Conselho de Contas dos Municípios, hoje Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará. Esse parecer pode ser lido na Internet, em: http://www.profpito.com/parecerdotribunaldecontas.html. Ressalte-se que, com fundamento nesse parecer, o Tribunal de Contas do Estado do Pará editou a Resolução nº 10.297, para declarar inconstitucional a Lei estadual nº 5.077, de 04.05.1983, e para declarar a sua incompetência absoluta em relação à fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios.

 

Pois bem: no meu entendimento, a situação é muito semelhante, neste Curso patrocinado pelo Tribunal de Contas dos Municípios, e tão absurda, quanto a palestra do Dr. José Afonso, que falava apenas sobre a Emenda dos aposentados, esquecendo a Emenda dos Auditores, tão inconstitucional quanto aquela. Não poderia o Dr. Zeno, evidentemente,  discorrer, apenas, doutrinariamente, em suas palestras, sobre o controle de constitucionalidade, perante o próprio Tribunal de Contas dos Municípios, para afirmar que o nosso sistema “é muito sofisticado, complexo e um dos mais completos do mundo, e precisa ser analisado com mais interesse e atenção”, esquecendo, no entanto, de denunciar que esse mesmo sistema não funciona, absolutamente, nem consegue evitar que as leis inconstitucionais prevaleçam contra a Lei Fundamental. Os exemplos são inúmeros, mas podemos citar apenas dois, mais diretamente pertinentes, porque se referem ao próprio Tribunal de Contas dos Municípios:  (a) a contratação sem concurso, nessa Corte, vem desde as suas origens, ainda como Conselho de Contas dos Municípios, quando a Lei nº 5.033/82, em seu art. 46, cuja redação foi alterada pelo artigo 13 da Lei 5.292/85, autorizou a primeira investidura sem concurso público, em caráter efetivo, nos seus cargos de Auditor e Procurador; (b) o próprio Presidente dessa Corte, Conselheiro Aloísio Chaves, que foi agora reeleito para o biênio 2005/2006, e tomou posse em 18.01.2005, nem poderia ser Conselheiro, em face da já referida decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 2.596, porque a sua vaga pertence a um Auditor daquela Corte, e não a um Deputado.

 

 

Quanto à contratação dos auditores e procuradores, verifica-se que o art. 46 da Lei nº 5.033/82, com a redação que lhe foi dada pelo art. 13 da Lei nº 5.292/85, dispunha que:

 

“A primeira investidura nos cargos de Auditor e Procurador será feita pelo Chefe do Poder Executivo, em caráter efetivo. Parágrafo Único – Na medida em que ocorrer a vacância nos cargos mencionados neste artigo, o provimento far-se-á através de concurso, como prevêem os artigos 9° e 11”.

 

Os governantes da época nomearam diversos parentes e amigos para esses cargos, em caráter emergencial, evidentemente, conforme consta do dispositivo acima transcrito, mas o concurso público nunca foi realizado e, em 1.987, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Representação de Inconstitucionalidade nº 1.359/PA, referente a essa Lei, sendo Relator o Ministro Oscar Correa (Publicação: DJ DATA-19-06-87 PG-12448 EMENT VOL-01466-01 PG-00054). No entanto, quase 18 anos depois daquela decisão, esses servidores temporários (37, de acordo com a mídia) continuam exercendo suas importantes atribuições naquela Corte, e muitos deles estão hoje aposentados. Em julho de 2002, a imprensa noticiou que o Governo do Estado teria recebido um expediente, encaminhado pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, exigindo o cumprimento dessa Decisão, sob pena de decretação de intervenção federal no Estado do Pará. Depois dessa notícia, nada mais se soube a respeito.

 

Quanto ao Presidente do Tribunal de Contas dos Municípios, que solicitou ao Dr. Zeno a realização do Curso sobre o controle de constitucionalidade, é evidente, também, que não poderia ter sido investido no cargo de Conselheiro daquela Corte, porque o Supremo Tribunal Federal já decidiu, na ADI nº 2.596, que, para implementar, tão rapidamente quanto possível, o novo modelo constitucional, de 1988 – porque, sob a vigência da Constituição anterior, os Tribunais de Contas tinham os seus membros indicados e nomeados pelo Chefe do Executivo -,  para implementar, repita-se, esse novo modelo, nas primeiras vagas ocorridas a partir da vigência da Constituição de 1988, a serem providas pelo Chefe do Poder Executivo, a preferência deveria caber às categorias dos auditores e membros do Ministério Público especial. Ressalte-se que essa decisão tem efeitos retroativos (ex tunc), e que, no entanto, até hoje, não foi cumprida pelo Governador, nem no Tribunal de Contas do Estado, nem na Corte de Contas Municipal.

 

Portanto, a composição dos Tribunais de Contas, quer o do Estado quer o dos Municípios, de acordo com a Constituição Federal e com as reiteradas decisões do STF, deve ser a seguinte: três vagas reservadas ao Governador, sendo duas atribuídas a Auditores e Procuradores, e uma de livre escolha, nessa ordem, e quatro vagas reservadas ao Poder Legislativo. Apesar disso, no Tribunal de Contas do Estado, até hoje, não foi provida a vaga aberta em março de 2000, que de acordo com o pacífico entendimento do Supremo Tribunal Federal, pertence a um Auditor, porque o Governador, ao que parece, ainda tem esperanças de nomear, para o cargo, a esposa do Senador Luiz Otávio, e para essa finalidade a Assembléia Legislativa aprovou, em junho de 2004, a  já referida Emenda Constitucional estadual, que atribuiu à própria Assembléia a indicação para as quatro primeiras vagas de Conselheiros dos Tribunais de Contas do Estado e dos Municípios, ferindo frontalmente a decisão do Supremo Tribunal Federal. Essa Emenda, é claro, está sendo questionada, perante o Supremo Tribunal Federal, através de outra ADI.

 

Ao mesmo tempo, no Tribunal de Contas dos Municípios, o seu Presidente, que sugeriu e patrocinou a série de palestras sobre o controle de constitucionalidade, tendo chegado ao cargo de Conselheiro daquela Corte de Contas através da Assembléia Legislativa, porque ele era deputado estadual, ocupa, até hoje, uma vaga que pertence a um Auditor.  Não se sabe, também, se existiria, naquela Corte, um Auditor concursado, que pudesse assumir essa vaga. Tudo indica, porém, que o Presidente do Tribunal de Contas dos Municípios não teria muitos motivos, também, para acreditar na eficácia de nosso controle de constitucionalidade, mas apesar disso achou conveniente patrocinar o ciclo de palestras do Dr. Zeno, da mesma forma como a nossa Assembléia Legislativa se achou no direito de patrocinar a palestra do Dr. José Afonso.

 

Na verdade, a política, na sua pior expressão, parece prevalecer, sempre, sobre o Direito, como já afirmava, há mais de noventa anos, a palavra iluminada de Rui Barbosa:

 

“Uma espécie de maldição acompanha, ultimamente, o trabalho ingrato dos que se votaram à lida insana de sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço da nação, e interessar o povo nos negócios do país. A opinião pública, mergulhada numa indiferença crescente, entregou-se de todo ao mais muçulmano dos fatalismos. Com o reinado sistemático e ostentoso da incompetência cessaram todos os estímulos ao trabalho, ao mérito e à honra. A política invadiu as regiões divinas da justiça, para a submeter aos ditames das facções. Rota a cadeia da sujeição à lei, campeia dissoluta a irresponsabilidade. Firmada a impunidade universal dos prepotentes, corrompeu-se a fidelidade na administração do erário.” (Discurso proferido pelo Conselheiro Rui Barbosa, no Instituto dos Advogados, ao tomar posse do cargo de Presidente, em 19 de novembro de 1914)

 

Em suma: no meu entendimento, para sermos um pouco mais sinceros, e para que se possa evitar a pecha da hipocrisia, não é mais possível ficar discutindo, teoricamente, o sexo dos anjos, quando aqui na terra, entre nós, os capetas continuam praticando todas as imoralidades, possíveis e inimagináveis.

 

 

* Professor de Direito Constitucional da Unama

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. A Hipocrisia do Tribunal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/a-hipocrisia-do-tribunal/ Acesso em: 19 abr. 2024