Judiciário

A justiça gaúcha

A justiça gaúcha

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Gaúcho tem fama de “machão”, muito mais pelas suas lides campesinas, que o colocam no lombo de um cavalo e lhe exigem força física no trato com os rebanhos, do que por uma postura machista. Tanto que chama sua mulher de “prenda”, o que tem o significado de “presente”, lembrando sempre algo prazeroso.

 

Mesmo que pelas suas vestes o gaúcho tenha uma aparência rude e sua maneira de falar venda a imagem de alguém forte e superior, esse quadro não o distingue dos homens do resto do País e quiçá do mundo. O fato é que todos os homens ainda nutrem um sentimento de superioridade com relação à mulher. Com um viés patriarcal, os vínculos familiares mantêm-se hierarquizados em todos os lugares e épocas. A verticalização da família acaba, com facilidade, descambando para a falta de respeito, o que deságua muitas vezes na violência, mal maior que vitimiza as mulheres, não só as brasileiras, mas as mulheres de todo o Planeta.

 

Mas dividir fronteiras com países culturados – fenômeno que só ocorre no Sul do Brasil –, aliado à nossa saga de caudilhos e revolucionários, ao certo gerou maior consciência política e sensibilidade social, traço diferenciador que acaba se revelando até no Poder Judiciário. Distingue-se a Justiça sul-rio-grandense por decisões arrojadas e pioneiras, servindo de modelo para o resto do País e vincando novos rumos à própria sociedade, que recebe a orientação jurisprudencial como verdadeiras normas de conduta, a serem aceitas e seguidas.

 

Não é coincidência haver surgido aqui – e isso em 1964 – a primeira decisão que deferiu direitos às relações extramatrimoniais, o que acabou mudando os rumos da jurisprudência nacional. Tanto que a Constituição Federal de 1988 restou por reconhecer o concubinato como uma entidade familiar, chamando-a de união estável. Também é do Sul a decisão pioneira a deferir status de família a essas relações, mesmo antes da legislação regulamentadora, que surgiu somente anos depois. Assim, não causa estranheza advirem do Rio Grande as decisões que enlaçam no conceito de família as uniões homossexuais, quer reconhecendo a competência das Varas de Família, quer deferindo aos companheiros do mesmo sexo direito à pensão previdenciária, quer garantindo a possibilidade de casamento entre transexuais.

 

É imperioso que a Justiça assuma sua função de demarcar os novos rumos de uma sociedade em que deve imperar a supremacia dos direitos humanos. Abrir mão de preconceitos e derrubar tabus mostra uma postura arrojada e destemida, bem ao feitio da imagem do gaúcho.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

                                                                                     

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. A justiça gaúcha. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/a-justica-gaucha/ Acesso em: 28 mar. 2024