Judiciário

A mulher e o Poder Judiciário

A mulher e o Poder Judiciário

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Sumário: 1. O contexto social; 2. Paradigma legal; 3. Reflexos jurídicos; 4. As mulheres na Justiça.

 

 

 

 

1. O contexto social

 

Há pouco tempo, muito pouco, não se podia falar em cidadania feminina. Só em 1932 passou a existir o voto feminino. Até 1962, as mulheres, ao casarem, tornavam-se relativamente capazes, sendo assistidas pelo marido para os atos da vida civil e necessitando de sua autorização para trabalhar.

 

O Código Civil[1] retratava o perfil da sociedade da época. Ao homem cabia o espaço público e à mulher, o espaço privado, nos limites da família e do lar, a ensejar a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor, o outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função.

 

Esse era o modelo de família, considerada a célula mater da sociedade. Uma verdadeira instituição, abençoada pelos sagrados laços do matrimônio, em face da forte influência religiosa, que vê o casamento como um sacramento. Em decorrência da estrutura rural então vigente, a família tinha uma formação extensiva, com numerosa prole, formando uma verdadeira unidade de produção. Filhos, parentes e agregados constituíam mão-de-obra barata para o desempenho das atividades agropastoris. O chefe da sociedade conjugal era a figura central, tomava as decisões e administrava o patrimônio. Como não havia o reconhecimento de relações fora do casamento, a família matrimonializada identificava-se como entidade patrimonializada. Sua mais aparente característica era a hierarquização, com um viés patriarcal, que outorgava ao homem um papel paternalista de mando e poder, exigindo uma postura de submissão da mulher e dos filhos.

 

Esse modelo familiar veio a sofrer mutações a partir da Revolução Industrial, quando as mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho. Também as guerras, que levaram os homens ao fronte ou à morte, abriram espaço para a atividade laborativa feminina, principalmente para as tarefas terciárias e repetitivas. Tal inserção alijou o homem de algumas profissões, que passaram a ser identificadas como femininas, perdendo ditas atividades o prestígio social, com o conseqüente achatamento remuneratório.

 

As lutas emancipatórias levaram as mulheres a descobrir o direito à liberdade, passando a almejar a igualdade e a questionar a discriminação de que sempre foram alvo. As ativistas, que passaram a ser chamadas de feministas, foram identificadas como lésbicas ou como mulheres feias e mal-amadas, que odiavam os homens e queriam seu lugar. O medo da identificação com esse estereótipo gerou tal carga de aversão a essa expressão, que foi repudiada pelas próprias mulheres. Com isso, o movimento acabou por ser marginalizado.

 

De outro lado, a emergente evolução dos costumes, somada ao surgimento de métodos contraceptivos, levou à descoberta do prazer feminino, deixando a mulher de ser refém do medo da gravidez. Ditas mudanças forjaram o que Norberto Bobbio – o  maior filósofo contemporâneo – identificou como a maior revolução do século: a revolução feminina.

 

Essas alterações de paradigma acabaram se refletindo na própria composição da família, que se tornou nuclear. Passou a mulher a participar, com o fruto de seu trabalho, da mantença da família, o que lhe conferiu certa independência. Começou ela a cobrar uma maior participação do homem no ambiente doméstico, impondo-lhe a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa e partilhar do cuidado com os filhos.

 

No entanto, ainda é forte a resistência aos novos papéis. Tolera-se com mais facilidade a profissionalização feminina, até por fatores econômicos, assim como, de forma ainda tímida, sua participação nas esferas do poder. Maior é o preconceito no que diz com as modificações comportamentais que ponham em risco a moralidade da família.

 

A mulher, saindo do gueto familiar e da “proteção do lar”, adentrou no mercado de trabalho. Afastando-se do perfil masculino, no qual não ocupava nenhum espaço, e acabou por redefinir, no contexto atual, o modelo ideal de família.

 

 

2. Paradigma legal

 

A Constituição Federal buscou resgatar a igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha mestra da Declaração dos Direitos Humanos. O igualitarismo formal vem decantado enfaticamente na Carta Política em duas oportunidades (arts. 5º, inc. I, e 226, § 5º), o que não basta, por si só, para se alcançar a absoluta equivalência social e jurídica de homens e mulheres. O legislador foi até repetitivo ao consagrar a plena isonomia de direitos e obrigações entre o homem e a mulher, varrendo do sistema jurídico todo e qualquer dispositivo legal que, com aparente feição protecionista, acabava por colocar a mulher num plano de subordinação e inferioridade. Agora, não mais é o marido o cabeça-do-casal, o representante legal da família, nem o único responsável para prover o seu sustento. Mesmo que não mais se justifique a permanência desses dispositivos nos textos legislativos, ainda não houve a devida atualização do Código Civil.

 

O simples estabelecimento do princípio da igualdade, no entanto, não logrou eliminar as diferenciações existentes. A necessidade de obediência ao preceito constitucional não pode ver como infringência ao princípio isonômico a adoção de posturas que gerem normas jurídicas e decisões judiciais protetivas, que, atentando na realidade, visam a propiciar o equilíbrio para assegurar o direito à igualdade.

 

A igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação por meio da redução das diferenças sociais. Nítida a intenção do novo sistema jurídico de consagrar a máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.

 

3. Reflexos jurídicos

 

O Poder Judiciário ainda é uma instituição das mais conservadoras e sempre manteve uma posição discriminatória nas questões de gênero. Com uma visão estereotipada da mulher, exige-lhe uma atitude de recato e impõe uma situação de dependência. Ainda se vislumbra nos julgados uma tendência perigosamente protecionista que dispõe de uma dupla moral. Em alguns temas, vê-se com bastante clareza que, ao ser feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais, é desconsiderada a liberdade da mulher.

 

É nos processos envolvendo relações familiares que mais se detecta que a profunda evolução social e legislativa ocorrida nos últimos tempos não bastou para alterar o discurso dos juízes.

 

A guarda dos filhos é outorgada ao cônjuge inocente, fazendo parecer que a noção de inocência foi guindada pelo legislador quase como um prêmio ou recompensa. Inúmeros julgados, porém, estabelecem uma certa confusão entre a vida da mulher e sua capacidade de ser boa mãe. Desconsideram-se os aspectos econômicos, afetivos e culturais para o pleno desenvolvimento dos filhos. Não se pode esquecer o interesse do menor de gozar das melhores condições possíveis, o que não possui qualquer correlação com o exercício da sexualidade da genitora.

 

No que diz respeito ao nome, que possui uma conotação simbólica, ligada ao direito de personalidade, também há um colorido dominador. O Código Civil determinava a obrigatória assunção pela mulher dos apelidos do marido, quando do casamento, nome que perdia ao ser condenada na ação de desquite. Pela Lei do Divórcio, o acréscimo do nome de família do cônjuge tornou-se facultativo, sendo da mulher a opção de continuar a usar o nome de casada quando da separação judicial. Contudo, quando do divórcio, mesmo havendo consenso de ambos, não vem sendo admitido que continue ela a usar o patronímico do varão, como impondo-lhe uma apenação. Olvida-se que a escolha do nome é um direito de personalidade da mulher, não podendo haver a interferência nem do juiz nem do ex-cônjuge ao seu direito de optar.

 

Quanto à pensão alimentícia, o Código Civil, com nítido perfil patriarcal, impunha ao homem a manutenção da família, só merecendo alimentos a mulher inocente e pobre, cessando o dever de sustento no caso de abandono do lar sem justo motivo. Desde a Lei do Divórcio, há reciprocidade obrigacional, mas continua a jurisprudência centrando sua preocupação, não na necessidade, mas na conduta da mulher, e guinda a honestidade como condição para a concessão do pensionamento. O deferimento dos alimentos depende direta e exclusivamente da mantença de uma vida celibatária, como se a castidade integrasse o suporte fático do direito, sem se atentar em que a vida sexual e afetiva é área de indevassável intimidade.

 

Também no campo do Direito Penal, nítido o tratamento desigualitário a depender do sexo do réu. Principalmente nas situações de violência familiar, existe a falsa idéia de que as relações privadas estão fora do âmbito de intervenção do Judiciário. Deixa-se de atentar na enorme dificuldade da vítima em veicular a queixa. Por medo, por não ter aonde ir, por vergonha de não ser acreditada, a mulher silencia. Esses mesmos motivos levam, muitas vezes, à tentativa de “retirar o processo” ou encobrir a verdade, alegando ocorrência de autolesões. Essa postura enseja que tanto a polícia como o Ministério Público e o próprio juiz desestimulem a instauração da ação penal. Também acaba sendo absolvido o agressor, não por ausência de culpabilidade, mas como meio de preservar a entidade familiar.

 

Ao depois, não é apreciado somente o agir do agressor no momento do crime; investiga-se mais a vida dos protagonistas como elemento decisivo para o resultado do processo. Se o varão corresponde ao papel ideal de bom pai de família e a mulher não é uma fiel dona-de-casa, seguramente o seu agressor será absolvido. Só são condenados maridos ou companheiros que têm evidência de alcoolismo, vício em drogas, um passado de abuso doméstico ou que estejam desempregados. O perfil dos réus absolvidos é o oposto: primários, trabalhadores, carinhosos e bons maridos.

 

A Justiça tem uma certa condescendência para com os réus, sempre entrando em linha de questionamento a atitude da vítima, como sendo o móvel dos fatos. Perquirir-se a moral da mulher – conceito sempre ligado ao exercício de sua sexualidade – pode levar, surpreendentemente, ao reconhecimento de que foi ela que provocou o crime, sendo culpada pela própria sorte.

 

Ressalta Sílvia Pimentel, na obra que visualiza o Direito sob a ótica das relações de gênero, que a mulher é julgada tomando por parâmetro o comportamento-padrão. Na argumentação judicial, é geralmente definida mediante adjetivos como: inocência da mulher, honestidade, conduta desgarrada, vida dissoluta, expressões todas elas ligadas exclusivamente ao seu comportamento sexual. No entanto, essa adjetivação não é usada como referencial na análise do comportamento masculino.[2]

 

Frente a tais situações, pinçadas como mera amostragem, não se pode negar que as mulheres são vítimas dos tribunais brasileiros. Os processos sofrem influência de normas sociais permeadas de preconceitos de gênero.

 

Há a necessidade de uma profunda reflexão, para que se aparem diferenças que não têm mais sentido na sociedade atual. Os operadores do Direito precisam atentar em que não pode persistir essa injustificável diferenciação de gênero, fazendo-se imperioso eliminar qualquer resquício de discriminação contra a mulher. É mister uma revisão crítica e uma nova avaliação valorativa do fenômeno social, para que se alcance a perfeita igualdade.

 

 

4. As mulheres na Justiça

 

Ainda nenhuma mulher teve assento no Supremo Tribunal Federal,[3] e recente é a presença da primeira no Superior Tribunal de Justiça. Mesmo que já despontem mulheres nos tribunais estaduais, não se pode endossar a assertiva do Ministro Sepúlveda Pertence, enquanto Presidente do Supremo Tribunal Federal, de que está superado definitivamente o preconceito dos tribunais contra a mulher juíza.[4]

 

Apesar de persistir forte a discriminação contra a mulher na órbita do Judiciário, é crescente sua participação no primeiro grau de jurisdição, em que o ingresso depende de concurso público, quando é mensurada sua capacidade e competência. Mais rarefeita é a presença feminina nos tribunais, cujo acesso está condicionado a promoção por critério de merecimento ou por decisão política.

 

Ainda assim, não só na magistratura, mas em todas as carreiras jurídicas, a mudança se faz marcante, podendo-se afirmar que está ocorrendo uma verdadeira feminização da própria Justiça.

 

Mas, sendo recente a presença das mulheres no poder, normalmente elas não gozam da mesma credibilidade de seus pares. São alvo de referências que dizem mais com seus atributos pessoais do que com seu desempenho profissional. Como toda novidade, despertam mais a atenção, correspondendo sua imagem a verdadeiros totens. Por isso, acabam recebendo rótulos: como mais severas ou mais condescendentes que os juízes, ou ainda são apontadas como adequadas ou não para jurisdicionar determinadas varas. Essa estratificação dicotômica decorre de percepções freqüentemente inconscientes e que registram um conteúdo discriminatório, pois atitudes por vezes não-relevantes ficam mais visíveis e são potencializadas de forma generalizante.

 

Uma maior compreensão da feminilidade é que permitirá identificar grande parte dos conflitos domésticos e atender às reivindicações femininas. Essa tarefa necessita ser assumida pela ala das mulheres, tanto juristas, como magistradas, promotoras e advogadas. Se à mulher é possível ser o primeiro agente de sua condição, também se seduz às vezes pelo poder opressor, identificando-se com as figuras às quais percebeu até então como dominadoras.[5]

 

De outro lado, indispensável perquirir se a inserção das mulheres nas carreiras jurídicas afeta o contexto das decisões judiciais, se passaram elas a exercer o papel de agentes modificadoras do conservador modelo vigorante.

 

Denise Bruno, ao discorrer sobre Mulheres e Direito, concluiu: por se sentirem incapazes de confrontar o padrão patriarcal, por não terem consciência do mesmo, ou por não estarem dispostas a arcarem com as conseqüências de romper com as expectativas patriarcais sobre as mulheres, as juízas, apesar de terem consciência da necessidade de mudanças, não rompem com os códigos e padrões legais vigentes.[6]

 

Ainda predomina o protótipo masculino, como sinônimo de êxito, como o único aceitável. Para Rose Mari Muraro, são as “mulheres de bigode” que confundem facilmente eficiência com virilidade e atividade criativa com masculino.

 

Não basta o aumento do número de magistradas para que determinados padrões de comportamento sejam alterados, para o estabelecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da violência contra a mulher. Necessário, em um primeiro momento, desmitificar a idéia sacralizada da família. Considerada como a responsável pela organização social, em que se desenvolve o senso de justiça e cidadania, estrutura-se, no entanto, a família de forma hierarquizada, tão-só pela diferença dos sexos, restando à mulher sempre um papel de subordinação. Descabe persistir essa visão idealizada, cuja preservação é de ser mantida ainda que o custo seja a integridade física da mulher e, muitas vezes, dos filhos.

 

Necessário olhar a mulher em relação ao Direito, a partir do conceito de gênero; não como sexo biológico, mas em face das diversidades biológicas que se expressam em determinadas relações sociais. As diferenças entre homens e mulheres, decorrentes de toda uma conjuntura social e cultural, acabaram por colocá-los em dois mundos, a ponto de serem tidos como sexos opostos, e não compostos, complementares. Essa divergência posicional, que levou à diferenciação de papéis assumidos, estruturou diferentemente cada um de seus protagonistas. No momento em que a mulher adentrou na esfera pública, não deixou de trazer sua bagagem, acumulada em suas funções privadas, havendo indiscutivelmente que se reconhecer como enriquecedora a convivência harmônica e igualitária entre ambos.

 

Carl Gilligan,[7] que busca fundamentos em teorias psicológicas e psicanalíticas, constatou que as mulheres têm preceitos morais diversos dos preceitos masculinos. Enquanto os homens decidem a partir da noção do Direito como uma norma abstrata, as mulheres, por serem responsáveis pela preservação do sofrimento, são guiadas por uma noção de ética da responsabilidade, dispensando mais atenção aos efeitos concretos das decisões. Tal constitui a “voz diferente” das mulheres, que acaba por alterar o contexto das decisões judiciais.

 

Assim, não mais se pode dizer que Judiciário é um substantivo masculino, devendo-se ter sempre presente que Themis, a Deusa da Justiça, é uma mulher.

 

 

 

 

[1] A referência é ao Código Civil de 1916.

 

[2] Pimentel, Di Giorgi e Piovesan, A Figura/Personagem Mulher em Processos de Família. Porto Alegre: Fabris, 1993,  p. 141.

 

[3] A assertiva corresponde à data de elaboração do texto, o ano de 1996.

 

[4] entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo em  16/11/1996, Cotidiano, p. 3.

 

[5] SOUZA, Ivone Coelho de. Conflitos da Mulher – a Responsabilidade. Jornal Mulher, nº 4, de agosto de 1995, p. 16.

 

[6] I Encontro de Magistradas do Paraná, que ocorreu em Foz do Iguaçu em novembro de 1996.

 

[7] A citação que constou foi feita na conferência citada.

 

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. A mulher e o Poder Judiciário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/a-mulher-e-o-poder-judiciario/ Acesso em: 19 abr. 2024