História do Direito

A Caracterização dos “Grandes Criminosos de Guerra” e o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg

 

SUMÁRIO: Resumo; Palavras-Chave; 1. INTRODUÇÃO; 2. PROCESSO DE FORMAÇÃO DO TRIBUNAL E A FIGURA DOS “GRANDES CRIMINOSOS DE GUERRA”, 3. ESTATUTO – DISPOSITIVOS E FUNCIONAMENTO, Princípios e Disposições Gerais, Composição do Tribunal – Magistrados, Comissão de Instrução e Processo – A Promotoria, Processo Eqüitativo – Garantias e Direitos da Defesa, Procedimento e Organização dos Debates, Funcionamento do Tribunal, 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS; BIBLIOGRAFIA.

 

RESUMO

Com o final da Segunda Guerra Mundial no continente europeu, em maio de 1945, os países aliados, ao longo de conferências diplomáticas desde antes do fim do conflito, resolveram pela instalação de um Tribunal Militar Internacional para julgar os assim caracterizados Grandes Criminosos de Guerra dos Países do Eixo. Tal desenvolvimento se registra pela Conferência de Moscou de 1943 e pelo Acordo de Londres de 1945, sendo que este último traz anexo o Estatuto do Tribunal. Ao longo de seus trinta artigos, o documento traça princípios para seu funcionamento, tanto no tangente a normas de direito material como processual, bem como tipifica os quatro crimes internacionais a serem imputados aos acusados selecionados pela Comissão de Instrução e Processo.

 

Palavras-Chave: Palavras-Chave: Tribunal de Nuremberg; Tribunal Militar Internacional; Segunda Guerra Mundial; Direito Internacional; História do Direito.

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 com a invasão da Polônia pela Alemanha Nazista de Adolf Hitler, só atinge sua conclusão, ao menos em solo europeu, em 1945, deixando para trás uma contagem de aproximadamente 60 milhões de mortes – o equivalente, hoje, à população total da Itália.

 

No intuito de prevenir a realização de um novo conflito – até mesmo na crença de que a humanidade talvez não sobrevivesse a um embate ainda mais devastador que o que se encerrara – diversas providências foram adotadas, em diferentes esferas de atuação internacional.

 

Aproveitando-se do clima de euforia pela vitória, e no intuito de resgatar-se a sensação de paz duradoura, a comunidade internacional direciona seus esforços na criação de uma entidade que pudesse servir de fórum para as relações entre os países, e, tendo-se aprendido as lições do fracasso da Liga das Nações, é assinada, em julho de 1945, a Carta de São Francisco, criando a Organização das Nações Unidas.

 

Numa outra vertente, tinha-se a problemática de o que fazer com os inimigos capturados na guerra. Ante o fracasso das medidas punitivas do Tratado de Versalhes ao final da Primeira Guerra, a questão da punição à Alemanha – desde então já considerada o país agressor na guerra – vinha tomando espaço na agenda diplomática dos Aliados.

 

O presente artigo dedica-se a apresentar, breve e objetivamente, os pontos marcantes para a instalação do Tribunal Militar Internacional em Nuremberg, cujas atividades situam-se entre novembro de 1945 e outubro de 1946, destacando-se a criação da figura dos “Grandes Criminosos de Guerra” e trabalhando, a seguir, os dispositivos do Estatuto daquela corte, classificando-os de acordo com sua finalidade.

 

 

2. PROCESSO DE FORMAÇÃO DO TRIBUNAL E A FIGURA DOS “GRANDES CRIMINOSOS DE GUERRA”

 

Em outubro de 1943, pouco menos que dois anos antes do fim da Segunda Guerra Mundial, ocorre em Moscou o terceiro de quatro encontros diplomáticos realizados pelos Países Aliados destinados à definição de estratégias de guerra e orientações políticas conjuntas. Como resultado do encontro, a “Declaração de Moscou”, assinada pelas três grandes potências aliadas – Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética –, reforça o posicionamento conjunto em relação ao conflito.

 

Especial atenção se dá à última parte da Declaração, assinada por Roosevelt, Churchill e Stálin, intitulada “Declaração sobre Atrocidades”:

 

(…) Ao acordar qualquer armistício com qualquer governo que possa ser estabelecido na Alemanha, os oficiais e praças alemães e membros do Partido Nazista que sejam responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções descritas acima ou que nelas tenham tomado parte consentânea serão reconduzidos aos países onde seus abomináveis atos foram cometidos, para que possam ser julgados e punidos conforme as leis destes países libertados e dos governos livres que ali sejam estabelecidos,

(…) Que aqueles que até o momento não banharam as mãos no sangue dos inocentes resguardem-se de adentrar o rol dos culpados, porque podemos afirmar que as Três Potências Aliadas os perseguirão até as mais longínquas regiões da terra e irão enviá-los de volta a seus acusadores, a fim de que seja feita justiça.

Esta Declaração é feita sem prejuízo dos casos dos principais criminosos de guerra, cujos delitos não tenham definição geográfica particular e que serão castigados por decisão comum dos governos aliados. (grifo nosso). [1]

 

Pela leitura do texto da declaração, podemos perceber que dois modelos de repressão são claramente apresentados: o primeiro seguindo um critério de repressão local, por crimes específicos e realizados em um território determinado; e o segundo, contido no último parágrafo da declaração, caracterizando os “principais criminosos de guerra”, cujas ações delituosas não tenham localização específica, transcendendo o critério geográfico.[2]

 

É justamente este segundo modelo de julgamento que lança os termos basilares da formação do Tribunal Penal Internacional de Nuremberg.

 

À medida que a guerra se encaminhava para sua conclusão, os Aliados procederam com apelos aos países neutros para evitar que estes concedessem asilo aos recém-denominados “principais criminosos de guerra”, a exemplo do que ocorrera no desfecho da Primeira Grande Guerra, quando o Kaiser Guilherme II conseguira refúgio na Holanda, impedindo desta forma seu julgamento pelas forças aliadas.

 

A Conferência de Moscou fora, na verdade, apenas um de uma série de encontros diplomáticos que se sucederam entre os Aliados nos dois anos que antecederam o fim da guerra, e se sobressai justamente pela Declaração conjunta acima mencionada..

 

A partir de maio de 1945, agora apenas algumas semanas antes do fim do conflito na Europa, o Juiz Adjunto da Suprema Corte norte-americana ROBERT HOUGHWOUT JACKSON, representando seu governo por indicação do Presidente Truman, inicia as negociações para a formação de um Tribunal Militar Internacional no intuito de julgar os principais criminosos de guerra, conforme estipulado na Declaração de Moscou três anos antes.

 

Entre 26 de junho e 06 de julho os representantes dos Aliados, reunidos em Londres, alcançam um consenso quanto à realização de um processo coletivo dos grandes criminosos de guerra, e, de acordo com a proposição norte-americana, formação de um Tribunal Militar Internacional.

 

A proposta, acolhida pelas nações aliadas[3], resultou na confecção do Acordo de Londres de 08 de Agosto de 1945, que trazia anexo o Estatuto do Tribunal Militar Internacional e definia os princípios norteadores dos julgamentos que se seguiriam.

 

Dentre os dispositivos do Acordo de Londres, destacam-se o primeiro e o quarto artigos:

 

Artigo 1 – Deve ser estabelecido, após consulta ao Conselho de Controle da Alemanha, um Tribunal Militar Internacional para o julgamento dos criminosos de guerra cujos delitos não tenham localização geográfica específica, sejam eles acusados individualmente, na sua qualidade de membros de organizações ou grupos, ou em ambas as possibilidades. 

Artigo 4 – O presente Acordo não prejudica as disposições estabelecidas pela Declaração de Moscou sobre a deportação de criminosos de guerra para os países onde cometeram os seus crimes.[4]

 

Os artigos selecionados evidenciam os princípios anteriormente tratados quando da Declaração de Moscou de 1943, especialmente quanto à diferenciação entre os procedimentos a serem adotados entre os assim chamados grandes criminosos de guerra e os demais.

 

Note-se, porém, que o Acordo se furta a delinear critérios objetivos para a caracterização dos grandes criminosos de guerra. Tal indicação é abordada apenas no Estatuto do Tribunal Militar Internacional, como prerrogativa da Comissão de Investigação e Acusação dos Grandes Criminosos de Guerra, qual seja, a Promotoria.

 

Um último aspecto importante de tomar-se nota a respeito do Acordo de Londres: o artigo quinto (5º) do texto autoriza todo e qualquer país integrante das Nações Unidas a aderir ao tratado.[5] Subscreveram ao texto os governos da Grécia, Dinamarca, Iugoslávia, Países-Baixos, Tchecoslováquia, Polônia, Bélgica, Etiópia, Austrália, Honduras, Noruega, Panamá, Luxemburgo, Haiti, Nova Zelândia, Índia, Venezuela, Uruguai e Paraguai.

 

 

3. ESTATUTO – DISPOSITIVOS E FUNCIONAMENTOS

 

3.1. Princípios e Disposições Gerais

 

Adentrando o conteúdo do Estatuto do Tribunal Militar, temos na leitura de seu primeiro artigo a constituição da corte, reafirmando tratar-se de realização conjunta dos quatro países signatários do Acordo de Londres, no caso, os Estados Unidos da América, a República Francesa, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Naturalmente que a composição coincide com as nações que, àquele momento, compunham o Conselho de Controle na Alemanha – o órgão provisório criado pelos Aliados durante a ocupação conjunta do território alemão.

 

O documento, nos vinte e nove artigos restantes, lança disposições normativas materiais e procedimentais para o funcionamento do Tribunal, refletindo, por lógico, as intenções das potências que o constituíram.

 

Destarte, temos no artigo sexto do Estatuto a tipificação das condutas criminosas sujeitas à competência do Tribunal. O “caput” do dispositivo certifica-se de estabelecer que as práticas e atos dispostos na seqüência podem ser imputados aos Grandes Criminosos de Guerra – como indicado pelo Acordo de Londres[6].

 

As três acusações tipificadas pelo Estatuto são: (a) os Crimes Contra a Paz – entendendo, por estes, a participação, direta ou indireta, na preparação e execução de guerras de agressão ou de guerras violando tratados, acordos e garantias internacionais; (b) os Crimes de Guerra – isto é, as violações aos costumes e leis de guerra, incluindo-se neste tópico os assassinatos, maus tratos e escravização de civis e prisioneiros de guerra, bem como a devastação desmotivada de cidades e vilarejos; e (c) os Crimes Contra a Humanidade, delineados como o assassinato, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, bem como as perseguições políticas, raciais e religiosas.

 

O artigo ainda dispõe que são imputáveis “dirigentes, organizadores, provocadores ou cúmplices que tomaram parte na elaboração ou na execução de um plano orquestrado ou de um complô para cometer qualquer um dos crimes acima definidos (…)”. Tal disposição dá sustentação a uma quarta acusação, desenvolvido pela promotoria e colocado no libelo de acusação como Crime de Conspiração ou Complô.

 

Além do julgamento dos vinte e quatro homens posteriormente indiciados pela Promotoria, o Tribunal também tinha, por força dos artigos nono (9º) e décimo (10º) do Estatuto, competência e função de declarar organizações e instituições da Alemanha Nazista como criminosas ou não.

 

Para garantir sua realização efetiva – e neste momento lembra-se do episódio do Kaiser Guilherme II, que conseguira refúgio nos Países-Baixos, escapando ao julgamento estipulado no Tratado de Versalhes – estabelece-se no artigo décimo segundo (12º) a prerrogativa do Tribunal de realizar o julgamento ainda que à revelia (o que veio a acontecer no caso de MARTIN BORMANN, que não foi capturado pelas forças aliadas, mas foi julgado e condenado em Nuremberg).

 

Antevendo o debate Positivismo versus Jusnaturalismo, ou mesmo no intuito de afirmar a prevalência do Direito Internacional ante o Direito Interno, a carta estabelece, nos artigos sétimo (7º) e oitavo (8º), que as ações realizadas na função de chefes de Estado ou altos-funcionários, bem como as correspondentes ao cumprimento de ordens hierarquicamente superiores não serão admitidas como escusas absolutórias, embora no segundo caso, admitir-se-á como fundamento atenuante na pena.

 

Em relação às penas, no texto do artigo 27 o Tribunal autoriza a condenação à pena de morte ou “qualquer outra punição que considerar justa”. Já o artigo 26 exige que as decisões do Tribunal sejam motivadas, determinando, porém, que não serão passíveis de revisão. Por outro lado, o artigo 29 abre uma exceção pontual, autorizando o Conselho de Controle da Alemanha a atenuar determinada punição caso se achem, posteriormente, novas evidências que subsidiem essa medida.

 

 

3.2. Composição do Tribunal – Magistrados

 

Quanto aos magistrados que comporão o tribunal, estabelece o Estatuto, em seu segundo e terceiro artigos, que cada uma das quatro potências signatárias deverá indicar um juiz titular e um suplente, que não poderão ser recusados ou contestados pelo Ministério Público, acusados ou quaisquer outras entidades. Veda-se, também, qualquer substituição de um membro do Tribunal que não por seu suplente, o qual por sua vez deverá, na medida do possível, assistir a todas as sessões do Tribunal.

 

O artigo quarto desdobra-se em três diretrizes quanto à atividade dos magistrados: (a) é indispensável a presença dos quatro membros do Tribunal – ou suplentes, se for o caso – para constituição de quórum; (b) o membros designarão, entre si, um presidente, que ficará encarregado da condução do julgamento, e determinando que, caso o Tribunal encontre-se sediado em território de uma das potências signatárias, esta deverá assumir a presidência do mesmo; (c) ressalvadas as disposições anteriores, caberá ao presidente o voto de desempate, sendo válidas as sentenças e penas apenas quando pronunciadas pelo voto de pelo menos três dos quatro membros do Tribunal.

 

O artigo décimo terceiro (13º), um pouco mais adiante, incumbe aos membros do Tribunal estabelecer as regras do processo, salientando que estas não poderão incompatibilizar-se com qualquer dispositivo do Estatuto.

 

Ademais, os artigos dezessete (17º) e dezoito (18º) fixam competências e deveres do Tribunal, a saber:

 

Artigo 17 – O Tribunal terá competência para:

a)    convocar as testemunhas no processo, requerer sua presença e seu testemunho, e interrogá-las;

b)    interrogar os acusados;

c)    requerer a produção de documentos e de outros meios de prova;

d)    fazer as testemunhas prestarem juramento;

e)    nomear os mandatários oficiais para cumprirem qualquer missão que for fixada por este Tribunal, e em especial para recolher provas por delegações.

Artigo 18 – O Tribunal deverá:

a)    limitar estritamente o processo a um exame rápido das questões levantadas pela acusação;

b)    tomar as medidas estritas para evitar qualquer ação que leve a um atraso não justificado, e afastar todas as questões e declarações estranhas ao processo de qualquer natureza;

c)    agir sumariamente no que se refere aos perturbadores, infligindo a eles uma justa sanção, inclusive a exclusão de um acusado ou de seu advogado de algumas fases do processo ou de todas as fase posteriores, mas sem que isso impeça de decidir sobre as acusações.[7]

 

Registra-se aqui, também, os membros indicados pelas potências, titulares e suplentes, respectivamente: pelo Reino Unido, Lord GEOFFREY LAWRENCE, membro da Corte Britânica de Apelações – Presidente-eleito do Tribunal Militar Internacional –, e Sir NORMAN BIRKETT, Juiz da Alta Corte da Inglaterra; pelos Estados Unidos, FRANCIS BIDDLE, ex-Procurador-Geral dos Estados Unidos, e JOHN PARKER, Juiz da Corte de Apelações americana; pela República Francesa, DONNEDIEU DE VABRES, professor de Direito na Universidade de Paris, e ROBERT FALCO, Juiz da Corte Suprema da França, e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o General IOLA NIKITCHENKO, Vice-Presidente da Corte Suprema Soviética, e ALEXANDER VOLCHKOV, Juiz da Corte da Comarca de Moscou.[8]

 

 

3.3. Comissão de Instrução e Processo – A Promotoria

 

Dois dispositivos no Estatuto do Tribunal dispõem sobre a estrutura e funções da assim denominada “Comissão de Instrução e de Processo dos Grandes Criminosos de Guerra”, ou, em termos mais familiares, o “Ministério Público” (artigos catorze e quinze).[9]

 

O primeiro artigo, antes de listar as finalidades e objetivos do Ministério Público, dispõe, no “caput”, que cada signatário deverá nomear um Promotor-Chefe para compor a equipe da promotoria. A seguir, institui que estes Promotores-Chefes – um de cada potência – comporão uma Comissão conjunta objetivando: (a) o delineamento do trabalho de cada uma das Promotorias; (b) a designação, em última instância, dos criminosos de guerra a serem levados ao Tribunal; (c) a aprovação do ato de acusação e seus documentos acessórios; (d) submeter o ato de acusação ao Tribunal; e (e) a redação de projeto de regras e procedimentos a serem adotados pelo Tribunal, nos moldes do instruído pelo artigo 13º do mesmo.

 

O mesmo artigo ainda dispõe, em seguida, dos critérios de organização da Comissão, orientando que, caso necessário, designe-se um presidente, e estabelecendo como regra geral para a designação de uma determinada pessoa para ser acusada perante o Tribunal que haja consenso entre pelo menos três dos quatro promotores.

 

O artigo décimo quinto (15º), por sua vez, complementa a lista de atribuições, listando outras funções do Ministério Público:

 

Artigo 15 – Os membros do Ministério Público, agindo individualmente e em colaboração mútua, terão também as seguintes funções:

a)       busca, reunião e apresentação de todas as provas necessárias antes do processo ou ao longo deste;

b)      preparação do ato de acusação visando à sua aprovação pela Comissão, de acordo com a alínea c do artigo 14;

c)       interrogatório preliminar de todas as testemunhas consideradas necessárias e dos acusados;

d)      exercício das funções do Ministério Público no processo;

e)       designação de representantes para exercer funções que lhes poderiam ser destinadas;

f)        continuidade a qualquer outra atividade que possa parecer necessária visando à preparação e à condução do processo.

Fica entendido que nenhuma testemunha ou acusado detido por um dos Signatários poderá ser retirado de sua guarda sem consentimento. [10]

 

Anexo a este trabalho, seguirá a lista completa de membros do Ministério-Público – por ora, limitaremos a deixar registrados os Promotores-Chefes indicados pelos países signatários: Juiz ROBERT HOUGHWOUTT JACKSON pelos Estados Unidos, Sir HARTLEY SHAWCROSS pelo Reino Unido, General R. A. RUDENKO pela URSS e FRANÇOIS DE MENTHON pela França.[11]

 

No tangente à divisão dos trabalhos, estabeleceram entre si que a promotoria americana ficaria responsável pela acusação do Crime de Conspiração ou Complô para cometer crimes de Guerra; ao passo que aos britânicos incumbiu-se a exposição dos casos relacionados aos Crimes de Planejamento, Preparação, Desencadeamento ou Prosseguimento de Guerra de Agressão. As outras duas acusações previstas no Estatuto – Violação das Leis e Costumes de Guerra e os Crimes contra a Humanidade – foram divididos entre as equipes francesa e russa seguindo o critério geográfico, ou seja: os franceses incumbidos de trabalhar os delitos nazistas na Europa Ocidental e os russos apurando e apresentando os ocorridos na Europa Oriental.[12]

 

Importante destacar que as funções e estrutura do Ministério Público pelos moldes do Estatuto do Tribunal Militar Internacional são consideravelmente diferentes do modelo processual romano-germânico e mais próximas do padrão anglo-saxão. GONÇALVES anota a questão trazendo as ponderações de MARCEL MERLE, que esclarece que o modelo adotado pelos ingleses e americanos despe o magistrado de funções inquisitórias, posicionando-o como um árbitro entre as partes litigantes.[13]

 

 

 

3.4. Processo Eqüitativo – Garantias e Direitos da Defesa

 

Nas exatas palavras dispostas no Estatuto:

 

Artigo 16 – Visando a garantir que os acusados sejam julgados com eqüidade, será adotado o seguinte procedimento:

a)       o ato de acusação comportará os elementos completos, especificando detalhadamente as acusações feitas contra os acusados. Uma cópia do ato de acusação e de todos os documentos anexos traduzidos em uma língua que ele compreenda será remetida ao acusado em um prazo razoável antes do julgamento;

b)      Ao longo de qualquer interrogatório preliminar e do processo de um acusado, este terá o direito de dar todas as explicações relacionadas às acusações feitas contra si;

c)       Os interrogatórios preliminares e o processo dos acusados deverão ser transmitidos em uma língua que o acusado compreenda ou traduzidos para essa língua;

d)      Os acusados terão o direito de sustentar eles próprios sua defesa perante o Tribunal, ou serem assistidos por um advogado;

e)       Os acusados terão o direito de trazer, ao longo do processo, pessoalmente ou através de seu advogado, todas as provas que apóiem sua defesa, e de fazer perguntas a todas as testemunhas de acusação.

 

Em que pesem as garantias acima enumeradas, muitas das quais traçam fundamentos básicos do Devido Processo Legal, alguns argumentos essenciais para a defesa dos acusados são taxativamente vedados pelo próprio Estatuto. Os artigos sétimo e oitavo proíbem expressamente a escusa absolutória em função do cumprimento de ordens hierarquicamente superiores e posturas tomadas quando no desempenho de funções de Estado. Interpretando estes dois dispositivos, o Tribunal obstou à defesa a manipulação de argumentos baseados na conjuntura internacional do conflito.[14]

 

 

3.5. Procedimento e Organização dos Debates

 

Embora já tenhamos por duas ocasiões abordado o artigo 13º – que atribui ao Tribunal, auxiliado pelo Ministério Público, o estabelecimento das regras procedimentais do processo – importante introduzir este tópico relembrando-o, visto que o próprio Estatuto versa, de maneira ampla e pontual, sobre alguns aspectos processuais.

 

Os artigos dezenove e vinte estabelecem que a corte não seja vinculada a técnicas específicas para a admissão das provas, devendo sim o próprio Tribunal decidir quanto ao valor probatório de tudo quanto lhe for submetido.

 

A este respeito, ainda temos o artigo seguinte:

 

Artigo 21 – O Tribunal não exigirá que seja relatada a prova de fatos de notoriedade pública, mas os reconhecerá sem contestação. Ele considerará também como provas autênticas os documentos e relatórios oficiais dos Governos das Nações Unidas, inclusive aqueles redigidos pelas Comissões estabelecidas nos diversos países aliados pelos inquéritos sobre os crimes de guerra, assim como os autos das audiências e as decisões dos tribunais militares ou outros tribunais de uma das nações constituintes das Nações Unidas.

 

Anota GONÇALVES que ambos os dispositivos dificultaram consideravelmente o trabalho da defesa, visto que os primeiros concediam aos Juízes plenos poderes para a análise da admissibilidade de provas ao passo que o segundo retirava da acusação o ônus da prova sob determinadas circunstâncias.[15]

 

O artigo 24, enfim, estabelece a ordem a ser obedecida nos atos processuais:

 

Artigo 14 – O processo ocorrerá na seguinte ordem:

a)       o ato de acusação será lido na audiência;

b)      o Tribunal perguntará a cada acusado se ele se declara “culpado” ou “inocente”;

c)       o Ministério Público fará uma declaração preliminar;

d)      o Tribunal perguntará à acusação e à defesa que provas elas pretendem submeter ao Tribunal e pronunciar-se-á sobre a admissibilidade dessas provas;

e)       as testemunhas de acusação serão ouvidas e, em seguida, as testemunhas de defesa. Depois disso, qualquer meio de refutação que for admitido pelo Tribunal será apresentado pela acusação ou pela defesa;

f)        o Tribunal poderá fazer qualquer questão que considerar útil, a qualquer testemunha, a qualquer acusado, e em qualquer momento;

g)      a acusação e a defesa poderão interrogar qualquer testemunha e qualquer acusado que preste testemunho;

h)       a defesa atuará;

i)         o Ministério Público sustentará a acusação;

j)         cada acusado poderá fazer uma declaração ao Tribunal;

k)       o Tribunal fará seu julgamento e fixará a pena.

 

Novamente trazemos à tela as considerações de GONÇALVES, ao observar que o ritual segue os ditames processuais do modelo anglo-saxão, o que seria, ao enfoque do autor, outra desvantagem para a defesa, habituada ao modelo romano-germânico.

 

Salienta-se também, quanto a este tópico, que a ordem disposta no artigo refere-se a um julgamento coletivo, cujo procedimento traz primeiro a sustentação de todos os pontos oferecidos pela acusação, seguidos da defesa dos réus, para só então os juízes fazerem seus julgamentos de cada item trabalhado.

 

 

3.6. Funcionamento do Tribunal

 

Dentre os demais aspectos sobre os quais discorre o Estatuto do Tribunal, pouco resta a ser abordado.

 

Destacamos, para fins de registro, três últimos pontos:

 

No artigo 22 temos a definição de Berlim como sede permanente do Tribunal Militar Internacional, com a ressalva de que o primeiro processo deveria ser realizado em Nuremberg.

 

O artigo 25 estabelece que todos os documentos e procedimentos sejam produzidos e conduzidos simultaneamente em pelo menos quatro idiomas: inglês, francês, russo e a língua do acusado.[16]

 

E, por fim, o último artigo, de número 30, dispõe que o custeio das despesas do Tribunal será “imputado pelos signatários aos fundos vinculados ao Conselho de Controle na Alemanha”.

 

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Tendo trabalhado sucintamente o processo de formação do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg os trinta artigos que compuseram seu Estatuto, acredita-se ter sido alcançado que o objetivo delineado nas primeiras páginas deste texto.

 

O episódio acontecido em Nuremberg, apesar de possuir o arcabouço jurídico que dá o tema de análise deste trabalho, foi um julgamento eminentemente político – fato que se constata não apesar pelas circunstancias – em que os vencedores julgam os vencidos – como pelo próprio texto do estatuto, que veda a utilização de determinados argumentos à defesa.

 

Tais imperfeições, porém, não tornam a experiência inválida, devendo servir, muito mais, de motivação para o incremento das iniciativas futuras.

 

Tanto assim o é que podemos perceber, desde então, em diversas esferas do Direito, destacadamente a Internacional, a utilização de conceitos que possuem suas raízes nos dispositivos criados em Nuremberg, como a caracterização do Crime de Genocídio, desenvolvida pela ONU e adotada pelo Brasil.

 

Se a recente instalação do Tribunal Penal Internacional em Haia representa um grande passo na consolidação de uma justiça de caráter global, não é exagero afirmar que foi em Nuremberg que se deu o primeiro passo.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

EHRENFREUND, Norbert. The Nuremberg Legacy: How the Nazi War Crimes Trial Changed the Course of History. 1ª Edição. ed. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2007.

FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Dos Precedentes à Confirmação de Seus Princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

HARRIS, Whitney. Tiranny on Trial – The Trial of the Major German War Criminals at the end of World War II at Nuremberg, Germany, 1945-1946. Dallas: Southern Metodist University Press, 1954.

INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Trial of the Major War Criminals before the International Military Tribunal, Nuremberg 1945-46. Nuremberg: IMT, v. 1, 1947.

MARRUS, Michael. The Nuremberg War Crimes Trial 1945-46: A Documentary History. Boston: Bedford Books, 1997.

 

 

 

 

* Luiz Felipe Gondin Ramos, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina



[1] MARRUS, M. The Nuremberg War Crimes Trial 1945-46: A Documentary History. Boston: Bedford Books, 1997. p. 20.

[2] GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 70.

[3] Interessante notar, como evidencia GONÇALVES, que a este tempo os Aliados denominavam a si mesmos pelo termo “Nações Unidas”. Tal denominação foi cunhada pelo presidente americano Franklin Delano Roosevelt, e registrada pela primeira vez na “Declaração das Nações Unidas” em janeiro de 1942, intitulando o compromisso de 26 países de continuar combatendo as forças do Eixo.

[4] Acordo de Londres, de 1945. In: INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Trial of the Major War Criminals before the International Military Tribunal, Nuremberg 1945-46. Vol. 1. 42 vols. Nuremberg: IMT, 1947. p. 8.

[5] INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Op. cit. p. 10.

[6] Vide item 1.2.2 do presente trabalho.

[7] Ibidem. p. 14.

[8] FERRO, Ana Luiza Almeida. Tribunal de Nuremberg: dos Precedentes à Confirmação de seus Princípios. Belo Horizonte, MG: Mandamentos, 2002. p. 48.

[9] Quanto ao nome do órgão, convém esclarecer que, pela tradução adequada do Estatuto, o correto é “Comissão de Instrução e Processo”, que funciona de maneira muito mais semelhante aos “General Prosecutors” do direito anglo-americano que o “parquet” francês ou o Ministério Público em nosso ordenamento. Porém, no intuito de adotar nomenclatura mais prática, adotar-se-á neste texto o nome do correspondente brasileiro, ainda que não seja o mais adequado.

[10] INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Op. cit. p. 12.

[11] “O Promotor francês foi primeiro DE MENTHON e depois CHAMPETIER DE RIBES. Ambos se ausentaram muitas vezes de Nuremberg por diversas razões – a França foi representada, na prática, por Charles Dubost, delegado no Tribunal de Aix-en-Provence, e pelos seus colaboradores”. In: LAZARD, Didier. O Processo de Nuremberga, Relato de uma Testemunha; Lisboa: Livraria Morais, 1965, p. 26. apud GONÇALVES. Op. cit. p. 85.

[12] FERRO, Ana Luiza Almeida. Op. cit. p. 52.

[13] MERLE, Marcel. Le Procès de Nuremberg et le Châtiment des Criminels de Guerre. Paris: Pedone, 1949. PP 69 e 70 apud GONÇALVES, Op. cit. PP. 84 e 85.

[14] GONÇALVES, Joanisval Brito. Op. cit. p. 93.

[15] Ibidem.

[16] Muito digno de menção é o trabalho da IBM, que e executou o projeto de tradução simultânea para um total de 14 línguas, num intrincado e inovador sistema que estabeleceu os parâmetros futuros para situações análogas.

Como citar e referenciar este artigo:
RAMOS, Luiz Felipe Gondin. A Caracterização dos “Grandes Criminosos de Guerra” e o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/a-caracterizacao-dos-grandes-criminosos-de-guerra-e-o-estatuto-do-tribunal-militar-internacional-de-nuremberg/ Acesso em: 28 mar. 2024