História do Direito

A historicidade dos Direitos

Gisele Leite

José Luiz Messias Sales

Resumo:

Trata-se de texto introdutório à História do Direito, disciplina de crucial importância para que o acadêmico possa adentrar ao multifacetado cenário de estudo e crítica do Direito no mundo e no Brasil.

Palavras-chaves: Direito. História do Direito. Código de Hamurábi. Lei oral. Lei escrita. Filosofia do Direito.

Na obra “Luta pelo Direito” Jhering enunciou in litteris:” O direito é o trabalho sem descanso e não somente o trabalho dos poderes públicos, como também de todo o povo. Se abraçarmos em um momento dado toda a sua história, ele nos apresentará nada menos do que o espetáculo de toda uma nação, desenvolvendo sem cessar, para defender seu direito, tão penosos esforços quanto os que emprega para o desenvolvimento de sua atividade na esfera da produção econômica e intelectual”.

A consciência jurídica mundial se parece muito como uma enorme árvore milenária, cujos os galhos rebentam em densos ramos, e a partir destes, há a floração dos direitos. E, quando a flor do direito esmaece seja por conta do tempo implacável ou da ventania evolucionista e revolucionária, oriunda de carências sociais e as demandas que trazem o adubo necessário para nutrir as raízes poderosas e insaciáveis.

Cada flor de direitos pareceu ser, em sua época, a melhor das coisas que poderia ser outorgada, passamos por diversos momentos, onde a escravidão, a banalização de sofrimentos físicos e psicológicos e, até mesmo, as mais requintadas torturas eram impostas por duros dogmas religiosos ou ideológicos.

Em sua maioria, os déspotas foram inspirados por deuses oniscientes e onipotentes, tal como ocorrera com o Código de Hamurábi ou as previsões do Alcorão, esses direitos refletiram suas épocas e foram, a um só tempo, herméticos e equitativos.

O Código de Hamurabi fora baseado nas Leis de Talião, sendo um conjunto de leis que visavam organizar e controlar a sociedade criada na Mesopotâmia, por volta do século XVIII antes de Cristo, pelo Rei Hamurabi, o responsável por fundar o primeiro e poderosos império babilônico. É um monumento monolítico talhado em rocha de diorito, sobre o qual se dispõem quarenta e seis colunas em escrita cuneiforme acádica, dotadas de duzentas e oitenta e dois leis dispostas em três mil e seiscentas linhas.

A sociedade, nessa época, era dividida em três classes, que sofriam a aplicação do referido código, a saber: awilum (homens livres, proprietários de terras e que não dependiam nem do palácio e nem do templo);muskênum (camada intermediária composta de funcionários públicos que tinham certas regalias no uso de terras); wardum (escravos que podiam ser comprados e vendidos até que conseguissem comprar a sua liberdade).

O objetivo deste código era homogeneizar o reino juridicamente e garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurabi afirma que elaborou o conjunto de leis “para que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver todas as disputas e sanar quaisquer ofensas”.

Com os ciclos do tempo as legislações se seguiram e, foram, se substituindo, ora retrocedendo, ora aperfeiçoando e, ora rumando por caminhos enviesados, percorrendo assim uma verdadeira Via Ápia, marcados por seus precursores e seus respectivos processos de criação legislativa e doutrinária.

Sem dúvida, cogita-se na morte natural das leis e seu progressivo anacronismo. Há um vasto cemitério composto de leis revogadas. Mas, lembremos que o mero desuso, por si só, não pode constituir um modo de revogação das leis.

Por falta de uso, a lei naturalmente se oxida, emperra, sofre erosão e se desgasta, perdendo sua finalidade primordial e se decompõe tão lentamente tal qual a lepra. Muitas vezes as leis padecem de uma sobrevivência puramente teórica, e, por vezes, trazem lampejos de citações eruditas, mas não atendem as necessidades contemporâneos.

O aperfeiçoamento das leis foi capitaneado muitas vezes pelos condutores de povos, sonhadores e, principalmente, por rebeldes, adotando sempre sobre a necessidade um sentido mais social do que propriamente político, conforme já enunciou Nietzsche.

Emile Durkheim ainda nos esclareceu que a necessidade é fato social que modificam os sistemas da vida e a economia dos povos, através da renovação dos direitos. O que justifica afirmar que o Direito é uma ciência social aplicada.

A contextualização do Direito dentro do espaço social é bem retratada pelo brocardo jurídico Ubi societas, ibi jus, ou seja, onde houver a sociedade, ali haverá o Direito. E, o homem como animal social, como homos societas e, gera o Direito como fruto desta própria convivência com o outro.

Ciências Sociais é um ramo das ciências, distinto das humanidades, que estuda os aspectos sociais do mundo humano, ou seja, a vida social de indivíduos e grupos humanos. Isso inclui antropologia, sociologia, ciência política, estudos da comunicação, marketing, administração, arqueologia, geografia humana, história, ciência da religião, contabilidade, economia, direito (grifo nosso), psicologia social, filosofia social, e serviço social.

Durkheim escrupulosamente rotulou o fato social como coisa. E, sem nos inclinar pelo materialismo histórico de Marx e nem para o positivismo de Comte[1], reconhecemos a preponderância da sociedade na instituição dos direitos e na plenitude das liberdades.

E, sem dúvida, vige a séria responsabilidade do indivíduo na sequência social. Portanto, o direito sempre foi o espelho das épocas. O direito foi inspirado nas necessidades de cada tempo, não fora benigno e nem draconianos, em verdade, foram o espírito de Sólon bem como a alma de Dracon[2], traduzindo, enfim, o merecimento de suas eras.

A força dos direitos nunca procedeu do individualismo, pois o homem sempre representou um fio do tecido social, ou mera lasca da linha de cumieira das civilizações.

Os legisladores não fizeram outra coisa senão olhar argutamente para sua sociedade e, pintá-la reproduzindo-a. É verdade, porém, que tais retratos jurídicos revela seus estilos, mas as fisionomias estampadas, eram as mesmas presentes no seu ambiente[3].

Ao exaltar a concepção revolucionária do direito feita por Jhering, Leopoldo Alas, descreveu in litteris: “o direito, como tudo o mais, avança a passos contados, é inútil que o homem se afane: não terá mais direito do que o correspondente ao estado de desenvolvimento social em que vive e esse desenvolvimento, esse progresso depende de leis universais alheias à vontade do homem – do determinismo universal”. (In: ALAS, Leopoldo. Prólogo – A luta pelo Direito, de Jhering. Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1950).

Nesse sentido foi que Maurice Merleau-Ponty[4] afirmou que o mundo não é o que penso, mas o que vivencio. isto nos faz admitir com algum grau de certeza que o pensado tem conformidade ontológica com o vivenciado.

Corroborando essa perspectiva, podemos reverenciar Michel Foucault que lecionou: todo tipo de discurso é uma tentativa do locutor de exercer poder sobre os outros. E, a lei é um discurso que ideologiza, condiciona e, às vezes, até aliena. (In: CHAUÍ, Marilena de Souza. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, São Paulo: Martin Fontes, 2002).

Nosso estudo dos direitos antigos, somos encaminhados pelas vagas dos séculos, os despojos, as quilhas, os bojos, mausoléus de todas as nacionalidades, de todos os feitios, singrando todos os mares e amalgamando civilizações, culturais, hábitos e valores humanos.

Mesmo nas mais recentes construções legislativas encontramos vívidas o traço das primeiras construções. E, Kelsen citando Diógenes de Apolônia, in litteris: “Antes, todas essas coisas são mudanças de uma e a mesma questão fundamental, e elas assumem tão rapidamente isso, assim que se formam e depois retornam à mesma questão fundamental.”.

A cosmogonia dos direitos apresenta, portanto, uma base de substância que serviu empiricamente nas diferentes elaborações jurídicas, a exemplo, de certos elementos químicos que servem para operar diferentes reações.

Assim, no momento em que o homem sentiu a existência do direito, começou a converter em leis as necessidades sociais. E a sensação do justo e do equitativo se infiltrava pelas frinchas e seu espírito. Uma noção inusitada do procedimento humano se distendia para dentro do seu ser, promanada do desconhecido e do mistério da criação.

A palavra oral já não bastava para justificar os seus atos. E, as fórmulas pactuais não circundavam de garantias as relações econômicas e políticas. E, o testemunho falhava como expressão da verdade, já desvirtuado pelo medo ou interesse.

Fez-se imperiosa a composição da lei escrita, mantenedora da legitimidade que perpetua os princípios do Direito[5]. Assim, do direito que começava a viver entre os homens, proveniente dos deuses, por dádivas divinas, através de profetas-estadistas[6] e de soberanos tocados da luz dos primeiros esclarecimentos jurídicos.

Ao contarmos a história do direito, contamos a história sobre as pessoas e sua convivência. E, surgem novos paradigmas e novos horizontes, onde não existe a verdade absoluta, nem tampouco a única. Há verdades que consistem na aceitação do meio imposto pela norma e pelas regras sociais, porém, dotada de várias facetas diante das mudanças trazidas pelo tempo, pois, afinal, passamos da pré-história para a história antiga.

E, desta, para a Idade Média e, em seguida, para a Idade Moderna[7] que fora o centro das atenções, na sequência a Idade Contemporânea que resumiu o pensamento subjetivo do homem e da multiplicidade das relações, e, finalmente, a Idade Pós-moderna, revelando-se cada vez mais o receio e intensa fluidez das relações humanas.

Paul Ricoeur afirmava que a história é versátil porque não mantém um único sentido, mas sim, uma dimensão de sentido, tendo em vista as suas transformações constantes. Traz em seu bojo o sentido confuso e misturado.

Na realidade, pensar o direito, é principalmente, pensar na própria existência do homem e nas relações intersubjetivas que esta proporcional. Sendo mais que razoável, dentro do que chamamos de história do direito, observar que há três vertentes, quando cogitamos do direito em si e sua especificidade dentro da temática temporal; a teológica, moral e axiológica.

A maturação semântica que envolve o direito traz a análise sobre a concepção de justiça e equidade.

Referências:

ALAS, Leopoldo. Prólogo – A luta pelo Direito, de Jhering. Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1950.

ALTAVILA, Jayme de. Origem do Direito dos Povos. São Paulo: Ícone, 1989.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty, São Paulo: Martin Fontes, 2002.

PANZA, Luiz Osório Moraes. Direito e historicidade – A evolução do pensamento jurídico através das escolas hermenêuticas. Disponível em:  http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/145/265 Acesso em 20.02.2020.

_____________________ Direito e historicidade: a evolução do pensamento jurídico através das escolas hermenêuticas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 51, p. 101-120, jan./mar. 2013.

JHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Tradução Persiano da Fonseca. Rio de Janeiro: Ed. Vecchi, 1950.

KELSEN, Has. La idea del Derecho Natural y outros ensayos. Buenos Aires: Editorial Losada 1946.

LEITE, Gisele. A crise da modernidade e o Direito atual. Disponível em:  https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/a-crise-da-modernidade-e-o-direito-atual Acesso em 20.02.2020.

RICOUER, Paul. História e verdade. Tradução: F. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense, 1968.



[1] O positivismo de Augusto Comte tem como premissa a oposição da ciência, da razão, do empirismo ao mitológico e ao metafísico. O evidente fundamento da era moderna que busca a razão, como fundamento do que é real e na experiência ancora o fundamento da verdade…

[2] Dracon ou Draconte foi legislador ateniense do século VII antes de Cristo. Era de origem aristocrática e em 621 a.C., recebera os poderes extraordinários para pôr fim ao conflito social provocado pelo Golpe de Estado de Cilón e o exílio de Megacles. Incumbido pelos atenienses de preparar um código de leis escrito, pois, até então eram somente orais. Então, firmou um rígido codex de leis fulcradas em normas tradicionais e arbitradas por juízes. Foi o primeiro a fazer as leis para os atenienses. E, suas leis duraram até a época de Sólon, que reteve do código de Drácon apenas as leis relativas ao homicídio. As leis draconianas têm um importante papel na história do Direito, mas não são o primeiro código de leis escrita, como havia sido proposto antes. O primeiro código de leis grego foi o de Zaleuco de Locros. E uma de suas características era a previsão de penas pecuniárias.

[3] No código de Drácon, por exemplo, a punição para qualquer forma de roubo era a morte. Tanto o furto como o assassinato recebiam a mesma punição: a morte. Essa severidade fez que o adjetivo draconiano (do francês draconien) chegasse à posteridade como sinônimo de desumano, excessivamente rígido ou drástico. Dêmades, político ateniense do século IV a.C., disse que “as leis de Drácon tinham sido escritas com sangue e não com tinta”.

[4] Merleau-Ponty (1908-1961) foi filósofo fenomenólogo francês. Tomando como ponto de partida o estudo da percepção. é levado a reconhecer que o “corpo próprio” não é apenas uma coisa, um objeto potencial de estudo para a ciência, mas também é uma condição permanente da experiência, que é constituinte da abertura perceptiva para o mundo e seu investimento. Ele então enfatiza que há uma consciência e um corpo inerentes que a análise da percepção deve levar em conta. Por assim dizer, a primazia da percepção significa um primado da experiência, na medida em que a percepção tem uma dimensão ativa e constitutiva.

[5] Os princípios são utilizados desde o jusnaturalismo romano, mas ganharam força após as revoluções burguesas do século XVIII e o surgimento do positivismo jurídico. Apesar da prevalência do positivismo jurídico, o jusnaturalismo jamais desapareceu e a utilização dos princípios gerais é um eterno retorno ao direito natural: “(…) a tese jusnaturalista enfatiza que os princípios gerais albergam as supremas verdades do direito, de modo a transcenderem as nacionalidades, sendo comuns aos diversos povos. Ademais, que os princípios gerais correspondem à crença numa ratio juris de caráter universal que, desde os romanos, é patrimônio comum que acompanha a humanidade em seu desenvolvimento e, ainda, que se acha presente na consciência jurídica decorrente da natureza das coisas, tal como esta pode ser apreciada pela razão”. Sendo assim, os princípios gerais do direito são transfronteiriços devido às múltiplas influências em diferentes sistemas jurídicos e distintas escolas jurídicas. Essas fontes teóricas se conflitam em muitos aspectos, mas se complementam na concepção generalista dos princípios.

[6] Para Aristóteles, o que o estadista mais quer produzir é um certo caráter moral nos seus concidadãos, particularmente uma disposição para a virtude e a prática de ações virtuosas. Em Tomás de Aquino, as virtudes e os valores cristãos são inseparáveis da prática política, do buon governo e da figura do rex justus. A cosmovisão do governante inclui felicidade em Deus, homens bons e virtuosos, abnegação cristã (diversa da abnegação republicana), amizade honesta, unidade, paz e comunhão social. O governante pio e virtuoso inspira súditos igualmente pios e virtuosos, pelos quais é amado. A natureza é tomada como modelo para o governo dos homens e o governante tem o papel ordenador análogo ao de Deus. No Brasil, todos os Presidentes do Conselho de Ministro do Império de Pedro Segundo foram considerados estadistas e, também quase todos os presidentes da República Velha. Em verdade, a maioria dos estadistas do mundo, por viverem a frente de seu tempo, foram incompreendidos, como por exemplo Washington Luís que quando desejou construir rodovias, fora taxado de General Estada de Bobagem, mesmo tendo sido um presidente civil.

[7] O Iluminismo em suas principais características, trouxe o desenvolvimento da razão humana, o fenômeno da secularização, a autonomia individual e as alterações ocorridas no mundo do direito. A consequente reconstrução do paradigma do direito natural e a adoção do método demonstrativo. Acarretou também o distanciamento do Direito Romano e a Communis Opinio Doctorum alinhados ao novo postulado racional e ainda a consolidação das codificações. No direito português em razão do Iluminismo conheceu a Lei da Boa Razão e os Estatutos da Universidade de Coimbra que, por meio de estudantes brasileiros muito influenciaram a cultura jurídica brasileira.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele; SALES, José Luiz Messias. A historicidade dos Direitos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/a-historicidade-dos-direitos/ Acesso em: 29 mar. 2024