História do Direito

A origem e o desenvolvimento da família.

 

 

Antes de nos embrenharmos numa análise dos aspectos jurídicos da família, crucial é seu exame sob o ponto de vista sociológico, indispensável à sua plena compreensão. Isso porque o Direito, como ciência social que é, está sempre a regular fatos sociais pré-existentes, aí incluídas as relações familiares.

 

Nesse passo, embora o processo de surgimento da família como a concebemos atualmente tenha durado um longe período, não o podemos demonstrar em sua totalidade baseando-nos em testemunhos diretos documentados de qualquer forma. Por esse motivo, muitos autores basearam seus estudos acerca da família, sobretudo, na observação dos chamados “primitivos naturais”, que ainda no século XIX e XX mantinham um padrão de vida rudimentar.

 

Friedrich Engels1, aderindo às teorias de Morgam e MacLennan, identificou na família primitiva um estágio inicial de promiscuidade, de modo que ela não se assentava em relações individuais. Assim, todas as mulheres pertenciam a todos os homens do grupo familiar, e as relações sexuais ocorriam entre todos os membros que o integravam. Dada essa promiscuidade, a ninguém era possível identificar o pai, mas apenas a mãe, com a qual a prole criava um vínculo, o que não se dava da mesma forma com o pai, em razão de seu desconhecimento. Desse vínculo da prole exclusivamente com a mãe decorria que a família tinha no início um caráter matriarcal, pois os filhos ficavam junto à mãe e por ela eram alimentados e educados.

 

Há, no entanto, ressalvas a essa teoria, como faz o jurista Caio Mário, asseverando que não é de todo imune a críticas, uma vez que se sustenta em “afirmações generalizadas”, baseadas em fatos isolados, que “afrontam os mais vivos impulsos da natureza humana”2.

 

É que esse raciocínio se apóia numa concepção evolucionista da cultura, porquanto parte do pressuposto de que todas as culturas tinham no início características mesmas, e com o tempo algumas evoluíram e se tornaram parecidas com o que é atualmente a cultura ocidental, enquanto outras – as que não evoluíram – mantiveram o padrão de vida rudimentar. É altamente questionável julgar um povo como culturalmente primitivo, já que a transformação das culturas não ocorre de forma linear, não havendo que se comparar seu grau de evolução. Não se pode afirmar com certeza que o núcleo familiar nesses povos chamados “primitivos naturais” sempre foi assentado em relações promíscuas, e que a promiscuidade não foi resultado de um processo de transformação de sua cultura. Em outras palavras, não se pode atribuir o caráter não-promíscuo do modo de agrupamento familiar ocidental à evolução da cultura, e nem a promiscuidade dos chamados “primitivos naturais” ao seu atraso.

 

Por outro lado, continua Caio Mário, o que podemos afirmar com firmeza, baseando-nos em registros históricos, é o caráter predominantemente monogâmico e patriarcal da família. Em seus dizeres:

 

“Mais racional seria aceitar como originária a idéia da família ‘monogâmica’, defendida por Ziegler, Starck, Darwin, Westermarck . (…) Fato certo e comprovado, este, sim, pelos registros históricos, pelos monumentos literários, pelos fragmentos jurídicos, é que a família ocidental viveu largo período sob a forma patriarcal. Assim reconheceram as civilizações mediterrâneas. Assim a divulgou a documentação bíblica. E nós, herdeiros intelectuais da civilização romana, encontramo-la documentada nas pesquisas históricas de Mommsenn e Fustel de Coulanges, ou referida nos depoimentos de Aulo Gélio e Tuto Lívio…”3

 

É possível também relacionar a gênese da família com o domínio da produção dos meios de existência pelo ser humano, numa visão eminentemente materialista.

 

Engels, citando Lewis Henry Morgan, preconiza:

 

“a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grande épocas de progresso da humanidade coincidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência”4 .

 

Certamente, o domínio da produção dos meios de existência propiciou ao homem residência fixa, imprescindível para o fortalecimento dos vínculos familiares, além do que a produção constituiu, no início, a própria finalidade do agrupamento familiar.

 

Silvio de Salvo Venosa ressalta que “a família monogâmica converte-se, portanto, em um fator econômico de produção, pois esta se restringe quase exclusivamente ao interior dos lares, nos quais existem pequenas oficinas”5. Percebe-se aqui o alinhamento do autor com a concepção materialista alhures mencionada.

 

Nesse estágio, o núcleo familiar era fundamental na organização da produção. A família era uma entidade hierarquizada que se fundava no poder do pater, o qual era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz, possuindo poder quase absoluto sobre a mulher, os filhos e os escravos. Na antiguidade grega e romana e mesmo durante a Idade Média o afeto estava longe de ser o elo de ligação entre os familiares.

 

Essa situação permaneceria mais ou menos estável até a Revolução Industrial, quando, dada à nova organização da produção, com a passagem da economia agrária à economia industrial, a família se despe de seu papel econômico, deixando de ser uma unidade de produção e transferindo sua relevância para o campo moral, afetivo, espiritual e de assistência recíproca. Nos dizeres de Caio Mario:

 

“Substituiu-se, à organização autocrática uma orientação democrático-efetiva. O centro de sua constituição deslocou-se do princípio da autoridade para o da compreensão e do amor. As relações de parentesco permutaram o fundamento político do agnatio pela vinculação biológica de consangüinidade (cognatio).(…) Os pais exercem o poder familiar, no interesse da prole menos como direito do que como complexo de deveres.”6

 

A necessidade econômica, o aumento da produção e do consumo, levou a mulher a exercer atividades econômicas fora do lar, “o homem vai para a fábrica e a mulher lança-se ao mercado de trabalho”7. Nesse contexto, o papel econômico que a mulher passou a desempenhar conferiu a ela maior prestígio social.

 

Logo após, vieram as duas grandes Guerras Mundiais do século XX, levando os homens para o front e as mulheres a assumirem mais ainda papéis antes da alçada dos homens.

 

Assim, aos poucos foi se atenuando aquele domínio do homem sobre a família e a condição jurídica da mulher passou por um processo de profundas transformações.

 

Ao longo do século XX a maioria das legislações conferiu às mulheres os mesmo direitos do marido. No Brasil surgiram “novos conceitos desafiadores a incitar o legislador e o jurista, com premissas absolutamente diversas daquelas encontradas no início do século passado em nosso país, quando da promulgação do Código Civil de 1916. Basta dizer, apenas intróito, que esse Código, entrando em vigor no século XX, mas com todas as idéias ancoradas no século anterior, em momento algum preocupou-se com os direitos da filiação havida fora do casamento e com as uniões sem matrimônio, em um Brasil cuja maioria da Casa-Grande, esquecendo da Senzala. Esse, de qualquer forma, era o pensamento do século XX”8.

 

O Direito brasileiro, atentando à nova realidade social, foi gradativamente incorporando as transformações que ocorriam na sociedade, mormente a partir da metade do século XX, levando-se a efeito uma série de mudanças profundas no regime jurídico da família, que culminaram na promulgação da Carta Magna de 1988, que representou inegavelmente a maior revolução no direito privado brasileiro.

 

Silvio de Salvo Venosa assinala que é na Constituição de 1988 que “se encontram princípios expressos acerca do respeito à dignidade da pessoa humana, (art. 1º, III). Nesse campo, situam-se os institutos do direito de família, o mais humano dos direitos, como a proteção à pessoa dos filhos, direitos e deveres entre cônjuges, igualdade de tratamento entre estes etc. Foi essa Carta Magna que também alçou a princípio constitucional da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros (art. 226, §7º).”9

 

No Código Civil de 2002 vieram a se consagrar as mudanças introduzidas no regime jurídico da família pela Constituição de 1988, que não recepcionou diversos dispositivos da Lei civil anterior. “Na hermenêutica do novo Código Civil destacam-se hoje os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interpretativas, aos interesses particulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira ‘constitucionalização’ do Direito Privado”10.

 

Como a sociedade e o direito, por sua própria natureza, se transformam perenemente, novas questões sempre serão postas.  Atualmente não raro há de se enfrentar as questões decorrentes das relações homoafetivas. Já se discutem nos tribunais o alcance dos direitos de pessoas do mesmo sexo que convivem, tendo a elas já sido reconhecidos pela jurisprudência significativos direitos, como à adoção.

 

O século XXI trará profundas transformações em temas que ganham cada vez mais importância. Ao passo que forem reclamados esses direitos, a jurisprudência e a legislação reagirão, acompanhando as transformações da sociedade.

 

 

* Estudante de Direito da Universidade de Ribeirão Preto. Estagiário de Direito da Procuradoria da República no município de Ribeirão Preto

 



Notas:

 

1 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

6ª ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980.

 

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil.

17ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2009. p. 27.

3 Ibidem. p. 27 e 28.

 

4 ENGELS, Friedrich. op. cit. p. 22.

 

5 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família.

7ª ed. São Paulo : Atlas, 2007. p. 3.

6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. op. cit. p. 30.

7 VENOSA, Silvio de Salvo. op. cit. p. 5.

8 Ibidem. p. 6.

9 Ibidem. p. 7.

10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. op. cit. p. 13.

Como citar e referenciar este artigo:
PASCHOALICK, Vitor Pereira. A origem e o desenvolvimento da família.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/a-origem-e-o-desenvolvimento-da-familia/ Acesso em: 19 mar. 2024