Filosofia do Direito

Darwinismo e Direito

 

 

«Quien alcance a comprender al babuino aportará más a la metafísica que el propio Locke.»

                                                                                              CHARLES DARWIN

 

 

Este ano se celebra o bicentenário do nascimento de Charles Darwin, cuja  teoria sobre a origem das espécies (publicada em 1859) integrou ao homem  no mundo animal e transformou para sempre o modo de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Uma admirável, arrebatadora e “perigosa idéia”; “quiçá uma das idéias mais poderosas de toda a história da humanidade” (R. Dawkins).

 

A herança que recebemos de Darwin pode ser mensurada, facilmente, considerando-se a influência atual da teoria da evolução. Que o homem é um animal, uma parte indistinguível da natureza orgânica, edificado de acordo com os mesmos princípios genéticos que qualquer outro ser vivo, não é somente uma evidência científica indiscutível, senão também um lugar comum na literatura científico-natural, social e humanística. Mas Darwin não nos ensinou somente o caminho da compreensão da evolução dos seres vivos. Sua teoria da evolução através da seleção natural serve também para compreender por que nos comportamos de forma moral e o que é a ética. De fato, é precisamente o programa naturalista iniciado por Charles Darwin na segunda metade do séc. XIX com sua teoria da evolução que pode proporcionar-nos argumentos a favor da existência de universais éticos, desses que John Rawls considerava princípios essenciais da justiça.

 

Não obstante, a introdução do saber acerca de nossa natureza biológica no discurso das humanidades e as ciências sociais resultou (e ainda resulta) complexa e incômoda – para não dizer impossível -, na medida em que sua legitimidade se concebe como limitada aos territórios alheios à influência da cultura. Natureza e cultura têm convivido como reinos separados durante séculos, ao amparo dos dualismos legitimadores de suas origens míticas. Daí que ainda surpreenda a muitos o argumento de que resulta inaceitável toda e qualquer ciência social normativa que não tenha em conta o substrato animal da sociedade humana, isto é, de que os homens vivem em sociedade não porque são homens (ou anjos), senão porque são animais.

 

Seja como for, o certo é que desde uma perspectiva mais científica que humanista, filosofamos depois de Darwin. Sabemos que descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. Sabemos que a matéria prima da cultura são representações mentais, pessoais e compartidas e que toda representação é, em última instancia, obra de nosso cérebro (um irrefutável produto da evolução por seleção natural, o resultado vivo de um largo processo filogenético e capaz de viver em um universo não percebido); quer dizer, que nada ocorre, nem nada existe no mundo humano que não tenha sido percebido, filtrado, elaborado e construído pelo cérebro (o que inclui como pensamos, interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-jurídicas). Em realidade, começa a acumular-se evidências, desenvolvidas em campos disciplinares muito variados, sugerindo a existência de um “instinto moral”, uma faculdade moral equipada com propriedades universais da mente humana que restringe o âmbito da variação cultural, que guia inconscientemente nossos juízos de valor e que permite desenvolver uma reduzida gama de sistemas morais concretos.

 

Por primeira vez os avanços das investigações procedentes das ciências da vida e da mente oferecem linhas de convergência capazes de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir da mera especulação metafísica. Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão natural do ser humano, do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

 

Já não somos porta-vozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários e valiosos para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixou seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural: do homem como resultado de tudo aquilo que aprende e memoriza não somente ao longo de sua vida individual (cultura), senão também do que aprendeu, memorizou e herdou em forma de códigos ao largo do processo evolutivo humano (2-3 milhões de anos) e ainda antes disso como mamífero (200 milhões de anos como mínimo).

 

Pois bem, este parece ser o ponto fundamental a partir do qual já não mais parece razoável tentar dissimular ou negar a irremediável necessidade de se estabelecer um diálogo interdisciplinar que nos permita sair dos limites de nossas próprias disciplinas para aprender das ciências vizinhas, ainda que assumindo os riscos e as dificuldades teóricas e metodológicas de qualquer programa de investigação integrador. No nosso caso em particular, um diálogo entre as tendências naturalistas da ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os fundamentos do fenômeno jurídico sejam revisados à luz dos estudos e investigações dirigidos a dar uma explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana – isto é, sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana, que não é uma construção social pós-moderna senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.

 

O objetivo desta nova perspectiva interdisciplinar consiste em demonstrar de que modo os programas de investigação sobre a arquitetura, a dinâmica e as origens filogenéticas da mente humana oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da natureza humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual edifício teórico, ontológico e metodológico da filosofia e da ciência do direito (isto é, para a concepção acerca do homem como causa, princípio e fim do direito, e conseqüentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar e aplicar o direito). Dito de outro modo, se aos dados proporcionados pela neurociência lhe somamos os de biologia evolutiva, de ciência cognitiva, de cognição e comportamento animal, antropologia e psicologia evolucionista, se nos apresenta um novo, rico e coerente quadro capaz de explicar muitos dos aspectos e características da natureza humana e de nossas funções mentais e capacidades superiores, tais como a moral, a arte, a ciência e a linguagem, desde uma ótica naturalista.

 

Apesar disso, a tradição jurídica filosófica e a ciência do direito predominante ainda trabalham com a idéia de que o homem deve ser considerado como um ser exclusivamente cultural, um ser “a parte” que representa a superação qualitativa dos instintos naturais de nossa espécie ou detentor de uma “segunda natureza” responsável da radical singularidade humana. No âmbito do jurídico, a verdade é que quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se ignora – a devida atenção à natureza humana, acusadamente no que se refere à evidência de que somos o resultado direto da forma como o conjunto mente/cérebro (procedente tanto das diferenças genéticas e dos processos de impressão devidos às influências ambientais) processa nossas intuições e emoções morais, nossos juízos morais e nossos vínculos sociais relacionais, e cuja gênese deverá então ser reintegrada na história evolutiva própria de nossa espécie (ou, o que é o mesmo, que a mente, a consciência, os sentimentos, a imaginação, os atos voluntários, o sentido de justiça, a liberdade de ação e a tomada de decisões, assim como todos os nossos processos mentais, nossos processos psíquicos internos, são propriedades emergentes de atividades neuronais em determinadas áreas cerebrais).

 

Aliás, as faculdades de direito parecem estar, na atualidade, submetidas a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista (anti-científica e anti-racionalista) e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada, sobretudo, por um positivismo de “regras e princípios” e/ou um jus naturalismo com sua peculiar ontologia substancialista. Deificando o mundo cultural (como sistema de signos e representações arbitrários que existem independentemente das mentes dos indivíduos) e hipostasiando em excesso sua consistência ontológica à margem de uma natureza humana como objeto de investigação empírica, o modelo jurídico atual (em sua máxima expressão) tende a considerar a cultura como a única natureza humana, caracterizando-se mais como um mosaico de crenças e teorias de índole quase religiosa, metafísica, transcendental, etc. e/ou como um conjunto de idealizações acerca de uma ordem natural, antropológica, histórica, normativa, valorativa ou de faticidade do social na construção/modelação do indivíduo.

 

É nessa paisagem cognitivamente hostil à realidade por parte das faculdades de direito que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu dogmático e hermético sistema de crenças. Uma espécie de “desatenção cega”, que consiste na incapacidade de ver também o que não estamos acostumados a ver ou que não temos de antemão na cabeça, ou um tipo de “prejuízo confirmatório”, que  consiste na circunstância de que recordamos, insistimos e notamos somente os fatos que confirmam nossas crenças e olvidamos aqueles que as desafiam.

 

O problema é que já não mais parece possível e nem tão pouco razoável pretender entender e explicar a cultura humana sem considerar que todo fenômeno cultural é, antes que qualquer outra coisa, um fenômeno psicobiológico. Natureza e cultura não são duas alternativas para a explicação do fenômeno jurídico, senão duas caras de um mesmo e único processo. A reconstrução das claves filogenéticas (e ontogenéticas) de nossos mecanismos mentais de acordo com os princípios da seleção natural e nos contextos ambientais em que tiveram lugar é a condição de possibilidade para uma abordagem empiricamente adequada, coerente e fundamentada da cultura humana. Descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de anos; o mítico “contrato social” já estava inventado muito antes que a espécie humana aparecesse sobre o planeta e nenhuma referência à moral ou ao direito pode silenciar estas raízes.

 

A mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar além de toda e qualquer dúvida razoável: o processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo, deram lugar a nossa grande riqueza moral e jurídico-normativa. Com o direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para estabelecer e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, para justificar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer limites aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

 

E nada disso se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância ou de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição da forma de abordar o direito supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a conduta e o sentido do raciocínio prático ético-jurídico.

 

Daí que um naturalismo moderado, comprometido com a consideração da natureza humana como objeto empírico, parece de todo exigível e algo que pode ajudar a superar o atual problema do direito. Dito de outro modo, e admitindo-se que a maneira pela qual deveríamos viver é um tema que não pode separar-se completamente dos fatos, de como são as coisas, toda e qualquer teoria ou discurso jurídico, para que suas propostas sejam reputadas “aceitáveis”, deveria ser formulada a partir de um marco conceitual em que seja possível conciliar e integrar as categorias e modelos formulados pelas investigações naturalistas mais sólidas, dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana.

 

Já é chegada à hora de voltar a definir o que é o ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente de aceitar que o homem não pode ser contemplado somente como um ser cultural carente de instintos naturais, ou seja, de situar ao homem em um contexto e uma perspectiva mais real e mais verdadeiramente humana, desmistificando e liberando-nos de equívocos, crenças e falsas concepções sobre a moral e o direito. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta, estamos firmemente convencidos de que uma consideração adequada da natureza humana pode ajudar-nos a compreender cabalmente a natureza de nossa cultura e a iluminar com novas interpretações os velhos problemas que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito.

 

O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, os juristas continuam atados e que os cegam ante a evidência de que direito não poderá seguir suportando, por muito mais tempo, seus modelos teóricos elaborados sobre construções especulativas da natureza humana.

 

Não devemos (o que pressupõe que não podemos) olvidar que a moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade e que precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas, jurídicas e/ou éticas bem informadas e justas. Já não podemos manejar-nos na filosofia e na ciência do direito do século XXI baseados em uma psicologia humana impossível, com uma idéia de natureza humana procedente do século XVII e nem tão pouco trabalhar com os métodos do século XIX. Somos antes de tudo animais, e tudo o que seja fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano, sua natureza biológica e sua origem evolutiva, é falso.

 

E é precisamente por este motivo que parece justificada a necessidade de deixar de lado nossa relutância tradicional de abrir um espaço de investigação capaz de abordar a cultura e o comportamento social humano desde uma perspectiva naturalista. Queremos dizer, de eliminar do Direito seu ranço meramente especulativo, dotando-lhe dos mecanismos necessários para construir suas teorias, normas e discursos orientados ao logro de valores, princípios e leis mais comprometidos com a tarefa de estabelecer vínculos adequados com as dinâmicas profundamente enraizadas na natureza humana. Depois de tudo, é infinitamente mais razoável, real e factível modificar o ambiente em que se desenvolve a natureza humana do que tentar alterar a própria natureza humana em função do ambiente.

 

O darwinismo, portanto, nos ensina muito sobre a nossa forma de ser. E é provável que o aspecto mais importante de sua mensagem seja aquele que minimiza as barreiras existentes entre natureza e cultura e entre espírito e cérebro. Quando Newton reconheceu que havia chegado muito longe na compreensão de algumas das leis mais importantes da natureza, admitiu que o sucesso se devia ao fato de ele ter se erguido sobre os ombros de gigantes. Mas Newton esqueceu um pequeno e fundamental detalhe: o fato de que os gigantes que o precederam – assim como ele próprio- só (e somente só) conseguiram manter-se em pé porque uma multidão de mulheres e homens de tamanho comum os ajudou a crescer e a se desenvolver, graças a seus genes, seus cuidados e sua inata faculdade/sentimento moral. Poucas filosofias da moral e do direito poderão ignorar este fato. E tê-lo descoberto é um mérito especial das ciências da vida que se ergueram sobre os ombros de Darwin (Camilo José C. Conde).  

 

 

 

* Atahualpa Fernandez, Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 

** Marly Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Darwinismo e Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/darwinismo-e-direito/ Acesso em: 28 mar. 2024