Filosofia do Direito

H. Hart e A Filosofia do Direito (Primeira Parte)

 

 

Por volta da década de 60, o pensamento angloamericano estava dominado pelas concepções do empirismo lógico propugnado pelo Círculo de Viena. Fundado por M. Schlick em 1929, esse movimento se desfez lá pela década de 30 (Barone,1977). Na Inglaterra, o grande expositor das idéias do movimento vienense foi A.J.Ayer, cujo livro Language, Truth and Logic (1936) exerceu uma poderosa influência sobre o pensamento angloamericano. Com a ameaça do nazismo, alguns membros do Círculo imigraram para os Estados Unidos e fundaram o movimento da ciência unificada, que passou a editar a International Encyclopaedia of Unified Science. Entre os membros do comitê organizador figuravam três destacados membros do Wiener Kreis: Otto Neurath, Rudolf Carnap e Philipp Frank.

 

Pode-se dizer que há uma continuidade das idéias básicas do Círculo de Viena no movimento que o sucedeu nos Estados Unidos. Em ambos, a questão básica era a da fundamentação e da integração do conhecimento científico. Visando a tal finalidade, eles deram importantes contribuições para a lógica formal, para a epistemologia e para a metodologia. No entanto, os ramos do conhecimento filosófico envolvidos fundamentalmente com valores – a ética, a axiologia e a filosofia do direito – ficaram para um plano secundário. Isto não quer dizer que os membros do Círculo de Viena e os da Ciência Unificada fossem totalmente indiferentes ao comportamento humano em um sentido amplo, e tanto é assim que O. Neurath se preocupou com os fundamentos das ciências sociais, como evidencia seu livro Empirische Soziologie (1931), ao passo que o próprio fundador do Wiener Kreis, M. Schlick, se preocupou com os fundamentos da ética, como evidencia seu livro Fragen der Ethik (1931).

 

Apesar da penetrante obra produzida por este último, a concepção que prevaleceu no domínio anglo-americano foi a de que a ética não tinha um caráter cognitivo, porém emotivo. A .J. Ayer (1936) já havia delineado as linhas gerais dessa visão emotivista, mas C. Stevenson (1944) foi quem a desenvolveu. E é preciso assinalar que a referida visão chocava-se frontal-mente com ao menos duas correntes de pensamento bem mais antigas no domínio anglo-americano: o intuicionismo sustentado por G. Moore (1903), na Inglaterra e a ética pragmática sustentada por J. Dewey (1908) nos Estados Unidos. Apesar das diferenças entre ambos os enfoques, tanto o primeiro como o segundo sustentavam um importante ponto em comum: o de que a ética tinha um caráter cognitivo.

 

No que diz respeito à filosofia do direito, não resta dúvida de que H. Kelsen (1934), embora não tenha sido membro do Wiener Kreis, foi influenciado por determinadas concepções deste mesmo, porém, basicamente, no que diz respeito ao aspecto metodológico. A influência exercida por ele sobre o pensamento anglo-americano, no entanto, só se mostrou bem mais tarde quando imigrou para os Estados Unidos, e foi muito menos penetrante e abrangente do que a exercida por J. Bentham (1770) e  J. Austin (1832). Dos finais do século XIX, até a década de 60 do nosso século, diversos juristas publicaram obras importantes tanto a Inglaterra como nos Estados Unidos, mas tais obras estavam mais voltadas para questões de jurisprudência do que propriamente para questões de filosofia do direito. H.L.A. Hart marcou uma nova era com a publicação de The Concept of Law (1961).

 

De 1952 a 1968, Hart foi Professor de Jurisprudência na Universidade de Oxford. Durante este período ele publicou seus artigos mais importantes e entrou em contato com a filosofia analítica de Oxford em que se destacavam G. Ryle, P .F. Strawson e J.L. Austin [não confundir com J. Austin, o jurista do século XIX]. Tal como em Cambridge, onde tinham trabalhado B. Russell, G. Moore e L. Wittgenstein, os referidos filósofos oxfordianos concediam grande ênfase à análise da linguagem; mais especificamente estavam preocupados em esclarecer determinados conceitos filosóficos considerados fundamentais. A grande contribuição de Hart consistiu em empregar os métodos de análise desenvolvidos por eles em um domínio não abordado por eles: os conceitos fundamentais da linguagem jurídica.

 

De saída, ele se deu conta de que os escritos dos filósofos do direito estavam relacionados com definições de alguns conceitos-chave tais como: “direito”, “direitos”, “pessoas jurídicas”, etc. Muitas discussões filosóficas giravam em torno do caráter adequado dessas e de outras definições. Hart considerou que tais polêmicas quase sempre se mostravam estéreis por dois motivos: O tipo tradicional de definição “por gênero próximo e diferença específica” – proveniente de Aristóteles e da tradição escolástica – mostrava-se desapropriado para investigações filosóficas voltadas para noções de grande generalidade e abstração. O definiens de tais definições se mostrava tão problemático quanto o definiendum. Talvez se pudesse definir “direitos” em termos de “prerrogativas” e “Direito” em termos de “regras”, mas tanto o primeiro como o segundo definiens, eles próprios, demandavam esclarecimentos: Que é uma “prerrogativa”? Que é uma “regra”?. No que diz respeito a esta última noção, sua relevância abrange não só o domínio das questões de caráter substantivo como também metodológico. Como sabemos, E. Durkheim intitulou sua obra mais importante de Regras do Método Sociológico e L. Wittgenstein fez um esforço gigantesco para responder uma indagação aparentemente simples, porém extremamente complexa e delicada: “Que é seguir uma regra?”.

 

Diante do entrave gerado pelas definições por gênero próximo e diferença específica, Hart considerou que era mais proveitoso abandonar a idéia de definir um termo isolado e tentar esclarecer seu sentido dentro de um contexto sentencial, ou seja: em vez de definir [um] “direito”, tentar esclarecer o que significa dizer: “A tem o direito x”, “B tem o direito y”, etc. [em que A, B, C, etc. representam titulares de direitos e x, y, z, etc. representam direitos determinados]. Neste caso, o esclarecimento conceitual consiste em substituir a expressão contendo o termo em jogo por uma expressão equivalente que não o contenha. Como isto nem sempre é possível, há a alternativa de tentar especificar as condições dentro das quais a sentença em jogo revela-se verdadeira ou falsa.

 

Ainda que se considere que sentenças expressando regras, comandos ou normas não podem ser – por sua natureza – verdadeiras nem falsas (von Wright, 1967), asserções feitas sobre regras, comandos ou normas podem ser verdadeiras ou falsas, do mesmo modo que asserções feitas sobre personagens de ficção (Guerreiro, 1999). B. Russell ficou conhecido como tendo sido o primeiro filósofo a empregar as chamadas definições contextuais, porém Hart procurou mostrar que J. Bentham, no século XIX, já havia recorrido a esse tipo de definição.

 

(2) O segundo motivo da esterilidade das polêmicas filosóficas é que, para Hart, a preocupação excessiva com definições distorcia a natureza da investigação filosófica. Definições  são instruções para o emprego de expressões, mas aquele que busca definições filosóficas de “Direito” e de outros termos da linguagem jurídica não necessita dessas instruções (Raz, 1986, pp.17-18). “Direito” é um termo corriqueiro, que costumamos empregar adequadamente sem apelar para nenhuma definição, pois esta costuma estar subentendida.

 

O que não significa dizer, segundo pensamos, que essa palavra não seja muitas vezes inadequadamente empregada. Para dar apenas três exemplos: (1) Quando empregada no lugar de “faculdade” em expressões tais como “o direito de desejar”. (2) Quando empregada no lugar de “valores ou aspirações” em expressões tais como “o direito à felicidade” [obs. Na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, Thomas Jefferson não disse que os americanos tinham direito à felicidade, porém “à busca da felicidade” (pursuit of happiness), o que faz grande diferença]. (3) Quando empregada, sem ter como contrapartida nenhum dever, em expressões tais como “direito ao trabalho”. [ Supondo que haja tal direito, quem tem o dever de fornecer empregos? À exceção de Estados totalitários como a ex-União Soviética em que o único fornecedor de empregos era o Estado – e assumia como seu dever fazer tal coisa – desconhecemos o país em que o Estado tenha o referido dever. Trata-se, portanto,  de um pseudodireito, pois viola a regra de que a todo direito tem de corresponder a  um dever].

 

A finalidade da jurisprudência e da filosofia do direito não consiste em fornecer instruções sobre o uso de termos jurídicos, porém investigar as relações existentes entre direito e moral, entre a legislação e a sociedade a que ela se aplica. Entender que se trata de buscar definições é perder de vista a finalidade e o sentido do direito enquanto instituição social. A crítica de Hart em relação à excessiva preocupação com as definições foi justamente o tema principal da sua conferência inaugural feita em Oxford em 1953, que já antecipava as linhas gerais da sua mais importante obra: The Concept of Law (1961). Sua recomendação de definições contextuais é uma evidência de que ele estava voltado para a aplicação dos métodos analíticos à análise conceitual dos termos jurídicos. Gerados em Oxford durante a primeira metade do século XX, os referidos métodos estavam sendo aperfeiçoados no período posterior à Segunda Guerra, justamente quando Hart trabalhava na mencionada universidade. (Raz, 1986, p. 19).

 

Seu discípulo J. Raz considerou que sua pioneira e bem-sucedida tentativa de aplicar os métodos da filosofia analítica ao domínio da filosofia do direito foi muito mais relevante do que sua contribuição efetiva para a resolução de problemas jurídicos de caráter substantivo. Nas faculdades de direito das universidades britânicas e americanas, a jurisprudência tinha um caráter marcadamente técnico e prático, pois estava baseada na experiência forense e nos estudos de casos.

 

Coube a Hart o mérito de deslocar a jurisprudência para o domínio da filosofia do direito e estreitar os vínculos desta última com as disciplinas mais próximas do seu campo de investigação: a ética, a sociologia e a ciência política. Ao mesmo tempo em que Hart introduzia sofisticados métodos de análise conceptual no domínio do pensamento jurídico, mostrava o caráter errôneo da concepção até então vigente de que a filosofia analítica devia se ater à análise da linguagem comum e deixar para a jurisprudência a análise de termos-chave da linguagem jurídica. (Raz, 1986, p.19).

 

Antes de qualquer coisa, para Hart, o direito é uma instituição social a exemplo de outras cuja longa permanência através da história sugere seu caráter fundamental e indispensável. Mas o direito é uma instituição social moldada pela linguagem, um especial tipo de ação lingüística  com características próprias, que a distinguem da ação política e de outras formas de ação humana. Assim sendo, a compreensão da linguagem jurídica e dos seus usos peculiares, longe de ser uma finalidade em si mesma, pode prestar uma significativa contribuição para uma melhor compreensão do direito como instituição social e como fenômeno cultural no sentido antropológico do termo.

 

 

* Mario Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. H. Hart e A Filosofia do Direito (Primeira Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/h-hart-e-a-filosofia-do-direito-primeira-parte/ Acesso em: 25 abr. 2024