Filosofia do Direito

Sentidos da democracia e perplexidades

As discussões sobre as transformações que marcaram a construção da democracia brasileira são permeadas desde a década de setenta, por notáveis dissidências e tensões intelectuais em torno das quais se opuseram distintas interpretações.

A questão que afasta ou aproxima de várias posições, procura saber qual o exato sentido político-normativo assumido pela atuação de diferentes sujeitos e grupos sociais nos diferentes níveis daquela construção. Enquanto alguns, se voltavam para os cálculos e custos dos chamados “atores relevantes” e, ainda, para os limites institucionais na transição, outros se questionavam sobre a performance de atores sociais, tais como os trabalhadores e movimentos sociais sobre e naquele contexto.

Nessa derradeira problematização, surgida ao longo da década de oitenta, surgiram questões que logo se tornariam resumos dentro do debate acadêmico brasileiro.

Somente em teoria, a democracia representativa é simples. Traduzindo-se por ser um regime no qual os cidadãos são governados e, se fazem representar por políticos eleitos por estes, em eleições que devem ser competitivas, limpas e plurais. Infelizmente, a qualidade da representatividade no Brasil atual é baixa, porque nutrimos uma democracia seriamente comprometida pela oligarquização.

Há uma classe política desgastada por casos de corrupção e está criando um espaço de não competição entre eles, voltados à preservação de interesses corporativos comuns da classe política como uma categoria profissional.

Evidencia-se, portanto, desconexão entre as ações tomadas por políticos em Brasília e, a vontade da maioria dos brasileiros, expressa em pesquisas recentes de opinião. Aliás, as queixas sobre a ausência de representatividade não são recentes nem inéditas. Apenas ganharam maior ênfase especialmente a partir de 2013, com os protestos das Jornadas de Junho[1].

Não raro, os políticos atuam com índices baixos de aprovação e, mesmo após a volta da democracia no país em 1985, somente cinco por cento consideram o atual governo ótimo ou bom.

Em 2017 novas pesquisas mensuravam o prestígio das instituições brasileiras e, cerca de 65% dos brasileiros afirmaram não confiam na Presidência da República, enquanto que apenas 2% afirmavam ter confiança nos partidos políticos.

Em 03 de abril de 2020, o Datafolha informou que Bolsonaro tem aprovação de 33% e a reprovação de 39% na gestão da crise do coronavírus. Mas, a aprovação do então Ministério da Saúde liderado por Mandetta era de 76% que representa mais que o dobro da aprovação do atual presidente da república.

Após a demissão do Mandetta, nova pesquisa apontou que 64% dos brasileiros ouvidos pelo Datafolha, afirmaram que o atual Presidente da República agiu mal ao exonerá-lo. Entre os brasileiros que aprovam o desempenho do atual presidente na crise do covid-19, 56% avaliaram que agiu bem na demissão de Mandetta enquanto de 30% entendeu que agiu mal.

Com relação ao fim do isolamento social das pessoas em casa, 55% aprovam, enquanto que apenas 13% reprovam. Na parcela que defende o isolamento social, 47% acreditam que a situação irá piorar, 18%, que ficará igual, e 24%, que irá melhorar.

Há dois estudos internacionais sobre o Estado na democracia do mundo que foram divulgados quase simultaneamente no Reino Unido e na Alemanha indicam uma crescente percepção internacional de reprovação à democracia no Brasil.

Nossa incipiente democracia recebeu nota 6,86 no índice de democracias da Economist, o que faz o sistema ser considerado como uma democracia com falhas[2]. E, novamente, se registraram índices piores em sua avaliação pelo terceiro ano seguido, perdendo 0,04 ponto desde a avaliação do ano de 2017 e mantendo-se nota inferior a sete, o que faz desde 2015.

O estudo é um panorama do status da democracia em todo o mundo, avaliando a situação em 165 estados independentes e dois territórios. Levando em consideração cinco categorias: Processo Eleitoral e Pluralismo, Liberdades Civis, Funcionamento do Governo, Participação Política e Cultura Política. Cada país recebe uma nota por item, para em seguida ser categorizado como “Democracia Completa”, “Democracia com Falhas”, “Regime Híbrido” ou “Regime Autoritário”,

Estudos recentes apontam que o sistema político brasileiro é cada vez menos importante para o povo. E, que questões históricas, a baixa representatividade na política e a falta de confiança em instituições podem e continuam a justificar atual crise da democracia brasileira.

As insatisfações populares ecoam com diferentes brados tais como: Intervenção militar já! Fora todos eles! E, ainda pela volta da monarquia. As vozes que questionam a democracia brasileira ganharam eco e força, não obstante, já termos passado por um regime de exceção há não muito tempo atrás. Pasmem que há até os defensores de um novo AI-5[3].

Apesar que a democracia seja prestigiada como sendo uma das mais relevantes conquistas da humanidade, somente onze por cento dos países são democracias funcionais. Onde o desempenho foi avaliado segundo fatores como liberdade de imprensa, representatividade feminina no parlamento e combate à corrupção.

O índice do Brasil é considerado flawed democracy (democracia falha), estando ao lado de democracias plenas países tais como o Uruguai e num regime híbrido e, ainda, como o venezuelano. A menor pontuação do nossa país é justamente na categoria que mensura o apoio da população à democracia.

No próximo dia 15 de setembro quando comemoraremos o Dia Internacional da Democracia, merece atenção tanto a majoração no número de brasileiros que não respaldam a democracia como também o daqueles que manifestam abertamente a franca preferência por regimes ditatoriais.

Historicamente nosso passado nos condena, pois somos um país forjado na escravidão do indígena e do negro e, a república continuou a seguir a mesma lógica binária de dominador versus dominado. E temos franca preferência aos golpes de Estado.

Assim, sem representatividade e com altíssimos níveis de corrupção, as instituições democráticas caem em total descrédito. Lembremos que numa democracia estável é saudável desconfiar do governo.

Mas, quando a desconfiança é potencializada e atinge as instituições como o Congresso Nacional, os partidos políticos e a justiça, forem muito prolongadas e, ao mesmo tempo, crescente, conforme ocorreu no Brasil nas derradeiras décadas, pode ocorrer a oportunidade nada salutar para uma base social de natureza autoritária ou totalitária.

Infelizmente, estamos avançando contra os direitos sociais e a participação popular, construindo assim uma democracia mais formal e puramente “de fachada” do que realmente efetiva. Para transformar tal democracia é indispensável reforçar os mecanismos de transparência[4] e participação direta da população. E, desde 1988 apenas quatro projetos de iniciativa popular foram aprovados, entre estes, o Ficha Limpa.

São indispensáveis mudanças estruturais e, a reforma política é uma boa oportunidade para refundar as bases democráticas do país. Segundo a opinião de alguns estudiosos, o mais adequado modelo a seguir, seria o distrital misto que atualmente vige na Alemanha. Onde vota-se em um partido e um candidato do distrito.

Desta forma, nesse modelo, há maior aproximação o eleitor do seu candidato e que poderá cobrá-lo mais perto, além de reduzir o valor das campanhas.

As características do caso brasileiro guardam semelhanças com o caso norte-americano[5]. A oposição, após perder a quarta eleição consecutiva, se utilizou da amplitude de mecanismos legais para retirar a então presidente Dilma Rousseff, através do impeachment, fundamentado pela realização das chamadas “pedaladas fiscais”, que significam operações orçamentárias realizadas pelo Tesouro Nacional, não previstas na legislação vigente, que consistem em atrasar o repasse de verbas aos bancos públicos e privados com o fito de aliviar a situação fiscal do governo.

Em verdade, todo processo de impeachment é traumático e politicamente desgastante, devendo apenas ser realizado quando houver motivos notoriamente graves, além detalhadamente comprovados, em ocasiões que haja grande apoio popular e parlamenta.

A possibilidade de novo impeachment é aterradora principalmente porque as normas de tolerância mútua também estão se diluindo na política brasileira, catalisando a radicalização do eleitorado, que demonstra aversão aos meios tradicionais de se fazer política, por conta de escândalos de corrupção e outros delitos.

Tal radicalização deu voz e vez aos candidatos de extrema direita que fizeram e fazem duros ataques aos candidatos da esquerda, nomeando-os como inimigos, e ajudando a dissolver ainda mais a incipiente democracia brasileira.

A obra “Como as democracias morrem” é bastante contemporânea, descrevendo exemplos e detalhes da grande recessão que se abateu sobre os regimes democráticos. Apesar de ter enfocado o caso dos EUA, mesmo assim, pode ser utilizada para entender o processo de subversão democrática contemporâneo inclusive no Brasil.

As evidências histórica-políticas que estão no horizonte democrático brasileiro frustram a expectativa de intelectuais e de populares. E, no decorrer da primeira década do século XXI, há uma taxativa impossibilidade de existir cidadania consciente. Tendo a construção democrática a uma inevitável privatização tanto das misérias presentes como a expansão globalizada do capital, contando com silêncio da política que endossa e atestam a incerta e instável cidadania.

As novas tendências visíveis e risíveis com bases no neoliberalismo trazendo práticas e projetos para a confirmação da mundialização do capital e abarcam três processos paralelos porém interrelacionados a privatização entendida como desestatização, com apologia do Estado mínimo[6], e a retirar de empresas e serviços públicos nacionais; a desregulamentação jurídica e também cotidiana do trabalho, e o Contrato Verde-Amarelo[7] é um exemplo, mas que fora revogado; a abertura mais ampla e irresponsável ao capital estrangeiro.

Assim, o Estado deixa definitivamente de ser a referência ou o catalisador de um projeto de integração nacional, pois defende-se abertamente a desnecessidade do público.

A diagnose de nossa atual democracia a coloca na UTI, no respirador, mas, não significa que possa se restabelecer sobre as bases e durante a grave crise pandêmica de covid-19. O que o futuro nos reserva? Depende de muitos fatores, principalmente da maior conscientização da cidadania brasileira para apoiar os legítimos valores da democracia.

Referências:

BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora UnB, 1998.

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma distinção política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 3ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 1995.

CARDOSO, F. H. 1993. “Regime político e mudança social: a transição para a democracia”. A construção da democracia: estudos sobre política. São Paulo: Siciliano.      

CARDOSO, R. L. 1983. “Movimentos sociais urbanos: balanço crítico”. In: SORJ, B.; TAVARES, M. H. Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense.

DAGNINO, E. 2002. “Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades”. In: Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.

FILGUEIRAS, Fernando. Além da transparência: accountability e política da publicidade. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452011000300004 Acesso em 25.4.2020.

NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

PERRUSO, M. 2009. Em busca do “novo”: intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. São Paulo: Annablume.

SZWAKO, José. Os sentidos da democracia: crítica, aposta e perplexidade

na produção no cenedic. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452009000300012 Acesso em 25.4.2020.



[1] Os protestos no Brasil em 2013, também conhecidos como Manifestações dos 20 (vinte) centavos, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, não raramente chamada de Nova Revolta do Vintém foram várias manifestações populares por todo o país que inicialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente nas principais capitais. São as maiores mobilizações no país desde as manifestações pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello em 1992, e chegaram a contar com até 84% de simpatia da população.

[2] Daniel Ziblatt e Steven Levitsky são professores de ciência política da Universidade de Harvard. E autores da obra “Como as democracias morrem” O foco da pesquisa de Levitsky é na América Latina e em países em desenvolvimento, enquanto Ziblatt estuda a Europa do século XIX. Diante da recente eleição de Donald Trump, os dois professores uniram seus conhecimentos para realizar, no livro Como as democracias morrem, uma análise sobre o enfraquecimento das democracias ao redor do mundo na atualidade, comparando-os com casos passado. Ziblatt e Levitsky focam seus estudos na história da democracia norte-americana, descrevendo sua formação, momentos de crise e como o sistema de freios e contrapesos da Constituição dos Estados Unidos, bem como as regras não escritas, serviram para defender a manutenção da democracia mais antiga do mundo moderno, agora possivelmente ameaçada por um presidente de fora do establishment político que apresenta traços autoritários.

[3] O Ato Institucional Número Cinco (AI-5) foi o quinto de dezessete grandes decretos emitidos pela ditadura militar nos anos que se seguiram ao golpe de estado de 1964 no Brasil. Os atos institucionais foram a maior forma de legislação durante o regime militar, dado que, em nome do “Comando Supremo da Revolução” (liderança do regime), derrubaram até a Constituição da Nação, e foram aplicadas sem a possibilidade de revisão judicial. O AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais, foi emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968. Isso resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e também na suspensão de quaisquer garantias constitucionais que eventualmente resultaram na institucionalização da tortura, comumente usada como instrumento pelo Estado. Evidentemente, o decreto veio na esteira de ações e declarações de um grupo, conhecido dentro dos militares como linha-dura (atualmente presente nos ministérios brasileiros), que não queria devolver o poder aos civis. Em outras palavras, era mais um pretexto para implementar medidas recomendadas pelos militares desde julho de 1968. Ele foi o instrumento que faltava para a ditadura, focada na figura do presidente, acabar com os direitos políticos de dissidentes e intervir nos municípios e estados. Sua primeira medida foi o fechamento do Congresso Nacional até 21 de outubro de 1969.

[4] A accountability tem sido um tema central na teoria democrática contemporânea. É um conceito próprio a uma teoria política dos Estados liberais, pois pressupõe uma diferenciação entre o público e o privado. O pressuposto é o de que uma ordem política democrática se consolida e legitima mediante a responsabilização dos agentes públicos diante dos cidadãos, tendo em vista uma relação entre governantes e governados balizada no exercício da autoridade por parte dos segundos. Trata-se, sobretudo, de um princípio de legitimação de decisões sobre leis e políticas em um Estado democrático . A questão da accountability é a do exercício da autoridade de acordo com bases legítimas de ação do Estado na sociedade. Dessa maneira, é tarefa das instituições políticas construírem mecanismos de prestação de contas à sociedade, no sentido de reduzir a razão de Estado a uma razão do público e permitir o controle deste sobre aquele In: FILGUEIRAS, Fernando. Além da transparência: accountability e política da publicidade. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452011000300004 Acesso em 25.4.2020.

[5] O retrato atual dos EUA está à espera do colapso. Dominação financeira. Desigualdade. Serviços públicos devastados. Assim se desfaz a democracia que inspirou as elites do Ocidente por cem anos. Vide: HEDGES, Chris. Retrato dos EUA à espera do colapso. Disponível em:  https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/retrato-dos-eua-a-espera-do-colapso/ Acesso em 25.4.2020).

[6] A expressão “estado mínimo” tem sua origem no neoliberalismo, corrente surgida nos anos 1970 e 1980 que procura reviver o capitalismo laissez-faire do liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX O conceito de “Estado mínimo” já era sugerido por Lao-Tsé na China Antiga em seu clássico Tao Te Ching, ao defender que o soberano ideal deveria agir o mínimo possível A concepção da expressão “estado mínimo” na década de 1970 foi uma reação à maciça presença dos estados nas economias de todo o mundo durante a maior parte do século XX Para o filósofo e ex professor da Universidade de Harvard Robert Nozick, Estado Mínimo era: “Minhas conclusões principais sobre o Estado são que o Estado Mínimo, limitado às estreitas funções de proteção contra a violência, o roubo e a fraude, ao cumprimento de contratos, etc., se justifica; que qualquer estado mais abrangente violaria o direito das pessoas de não serem obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica; que o Estado Mínimo é inspirador, assim como correto” (In: NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2015). Para Bobbio, em “Dicionário da Política” o Estado Mínimo é: “…a noção corrente para representar o limite das funções do estado dentro da perspectiva da doutrina liberal” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora UnB, 1998).

[7] O Presidente Jair Bolsonaro revogou na segunda-feira (30 de março de 2020) a Medida Provisória (MP) 905 que criou o programa Verde e Amarelo, um incentivo à contratação formal de jovens de 18 a 29 anos, que nunca haviam tido carteira assinada. Em troca, empresas pagam menos tributos e encargos trabalhistas. Porém, o que foi anunciado na segunda-feira não invalida os contratos de trabalho firmados durante o período de vigência da MP, afirmam advogados consultados pelo G1. Por outro lado, as regras do Verde e Amarelo não podem ser aplicadas às contratações feitas após o dia 20 de abril, até que uma nova MP ou decreto legislativo estabeleça as mesmas normas do programa. (In: SALATI, Paula. MP do contrato Verde e Amarelo foi revogada: como fica a situação dos trabalhadores? Disponível em:  https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/23/mp-do-contrato-verde-e-amarelo-foi-revogada-como-fica-a-situacao-dos-trabalhadores.ghtml). Vide também:  https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/contrato-verde-amarelo

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Sentidos da democracia e perplexidades. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/sentidos-da-democracia-e-perplexidades/ Acesso em: 20 abr. 2024