Filosofia do Direito

O conceito de justiça de Marco Túlio Cícero

I – INTRODUÇÃO

O direito romano exerceu grande influência em toda cultura jurídica ocidental, com claros reflexos que se apresentam até os dias de hoje. Em decorrência dessa situação, o presente artigo pretende estudar as noções de justiça apresentadas por Marco Túlio Cícero, talvez o mais notável filósofo romano, em seu derradeiro tratado Dos Deveres.

Para tanto, desenvolveremos breves linhas sobre a biografia do autor estudado. Juntamente com sua trajetória, explanaremos acerca do contexto histórico no qual se encontrou inserido, uma vez que o cenário político e cultural de Roma em sua época foi determinante na concepção de seus ideais.

Trataremos também dos principais elementos da escola estoica, corrente filosófica que baseou e influenciou todo o pensamento de Cícero e inspirou diretamente a obra Dos Deveres.

Finalmente introduziremos a obra analisada para, ato contínuo, explicitarmos os conceitos de justiça dela extraídos.

Ao final do presente trabalho, esperamos apresentar as principais ideias de Cícero no tocante à sua visão sobre a justiça.

II – SOBRE MARCO TÚLIO CÍCERO E O CONTEXTO HISTÓRICO DE SUA OBRA

Marco Túlio Cícero nasceu em Árpino, próximo a Roma, em abastada família que lhe proveu aprimorada educação junto aos maiores oradores e juristas de sua época. Iniciou seus estudos jurídicos aos dezesseis anos e, aos vinte, cumpriu serviço militar na campanha da guerra de Mársica.

Após retornar do serviço militar, iniciou sua carreira de advogado aos vinte e seis anos, tendo logo conquistado o respeito e admiração do povo romano, ao defender Róscio da acusação de parricídio. Temendo represálias de Sila, verdadeiro cometedor do crime, Cícero deixa Roma, mudando-se para a Grécia.

A mudança para a Grécia é digna de importância na trajetória de Cícero, na medida em que denota como ele e os romanos em geral foram concebidos à luz do pensamento grego, ponto de partida das construções sobre Política, Direito e Sociedade em Roma.

Em Atenas, Cícero teve contato com dogmas estoicos e, já aspirando iniciar carreira pública ao retornar a Roma, desenvolveu suas faculdades de eloquência, retórica dialética e gramática; disciplinas que possibilitaram ao filósofo desenvolver habilidades mais elaboradas de argumentação e concatenamento de premissas.

Com a morte de Sila, seu pretenso perseguidor, Cícero retornou a Roma, onde deu início na vida pública, sendo nomeado questor na Sicília. Embora sua missão fosse delicada (aumentar os envios de trigo a Roma), sua popularidade como governador da província chegou ao auge quando obteve êxito na condenação de Verres, antigo pretor da região, que extorquia os cidadãos daquela localidade.

Ato contínuo, Cícero foi nomeado pretor[1], tendo suas decisões lhe conferido a fama de honesto, justo e probo.

Evoluindo na carreira pública, após sua vitória para o cargo de cônsul, Cícero envolveu-se em uma disputa com Catilina, contra o qual haviam suspeitas de conspirar contra a República. Embora tenha obtido êxito no conflito, os amigos de Catilina acusaram Cícero de não ter provido o devido processo para condenação. Diante disso, Cícero resta por se exilar na Ásia Menor.

No exílio, o filósofo consolidou seu entendimento de que o melhor sistema de governo para o Estado seria a República[2], escrevendo, nessa época, seu grande tratado Da República.

Em 57 a.C., recebeu sufrágio e retornou, mais uma vez, a Roma, sendo convidado, em 61 a.C., por Júlio Cesar, a compor o Primeiro Triunvirato. Declinou da proposta por acreditar que a parceria restaria prejudicial à sua defendida forma de governo.

Os anos subsequentes foram especialmente conturbados para o Estado romano, no qual a república se encontrava ameaçada pela instituição iminente da ditadura. A obra Dos Deveres, referência do presente trabalho, foi escrita por Cícero em 44 a. C., posteriormente ao assassinato de Júlio Cesar, momento a partir do qual tomou partido em favor de Otaviano, em detrimento de Marco Antonio, pela sucessão do poder em Roma.

Com a reconciliação de Otaviano e Marco Antonio, que culminou na instituição do Segundo Triunvirato, Cícero passou a ser perseguido por este, que com a anuência daquele. Restou preso, executado e teve sua cabeça e mão direita expostas em frente ao Fórum Romano.

Em vida, Cícero organizou suas ideias em três tratados principais: Da República, Das Leis e Dos Deveres, sendo os dois últimos decorrência do primeiro, na medida em que, ao dissertar sobre seu entendimento acerca da melhor forma de governo (Da República), passou a ponderar sobre as leis que regeriam o Estado (Das Leis) e o devido comportamento do cidadão romano (Dos Deveres).

Cícero detinha pronunciada vaidade, o que é visível pela leitura de Dos Deveres, e cometeu diversos erros políticos no curso de sua trajetória, especialmente o que culminou em sua morte. Todavia, o estudo da biografia e dos atos do filósofo, em todos seus detalhes, considerando o delicado período em que viveu, deixa claro seu inconteste espírito público, honestidade, moral e dotes intelectuais, atributos esses que restam claros na obra analisada.

III – A ESCOLA ESTOICA

Não é possível analisar a obra de Cícero sem tangenciarmos o estoicismo. O autor é profundamente influenciado pela referida escola filosófica, a ponto de determinadas correntes doutrinárias, dentre elas, Maria Helena da Rocha Pereira (2002) inclusive questionar a originalidade de sua obra, tamanha a proximidade dos conceitos apropriados. Independente da questão da originalidade, ponto que não pretendemos adentrar, fato é não se poder estudar o pensamento ciceroniano sem nos dedicarmos a expor o cerne do estoicismo.

A escola foi fundada por Zenão de Gitium (336-264 a.C.), que, por ensinar sob o Pórtico Pintado (Stoa poikíle) recebeu o nome de estoicismo.

No pensamento filosófico dos estoicos, há grande inclinação para se orientar o exercício da razão ao uso prático. Essa razão, que deverá levar as atitudes do homem para a harmonia, desdobra-se em um liame muito próximo à natureza (Mascaro, 2014).

Neste ponto, verifica-se que os estoicos entendiam que a justiça não brotava do simples acordo entre os homens em não se prejudicar reciprocamente, não resultando da conclusão de um acordo entre pessoas, mas é, ao inverso, anterior à própria lei positivada. A justiça seria, portanto, uma virtude que nos dirige segundo a razão natural (vida segundo a natureza). Por essa razão, a noção de justo e injusto seria anterior e superior à lei positiva.

Saber-se guiar bem, pelo uso da reta razão é expressar o pleno conhecimento da natureza e seus desígnios, consolidando o cumprimento dos deveres como hábito, que, por sua vez, é diretamente gerador da virtude. Para tanto, o afastamento das paixões, que desviam a alma do dever, é imperioso. Dessa lição advém o senso de que os estoicos se acostumaram a vencer os prazeres e banalidades, os quais afastam a alma da virtude (Mascaro, 2014).

Como ilustração do desapaixonamento pregado pelos estoicos, Mascaro (2014, p. 95), transcrevendo citação de Cícero da estudada obra Dos Deveres, esclarece:

A elevação de alma que se percebe nos perigos e trabalhos, quando se afasta da justiça e propugna, não pela manutenção do bem comum, mas por sua própria comodidade, é viciosa. Isso nem é próprio da virtude como trai uma ferocidade que repele todos os sentimentos humanos. Os estoicos definem muito bem a coragem ao afirmar ser ela a virtude que luta pela equidade.

Não merece, pois, louvor quem haja alcançado fama de bravura por meios insidiosos e fraudulentos: nada que desdiz da justiça pode ser honesto. (…) Uma alma corajosa e grande distingue-se principalmente por duas características. Uma delas é o desprezo dos bens exteriores, quando tenha sido persuadida de que nada, a não ser o honesto e decoroso, convém ao homem admirar ou perseguir. Não deve ceder a ninguém, a nenhuma tribulação, nem sequer à Fortuna. A outra consiste em praticar, mesmo com o ânimo afetado do modo que mencionei acima, ações grandiosas e sobretudo úteis, como também, veementemente, tarefas árduas, trabalhosas e arriscadas que interessem à vida.

Feitas as explanações dos três parágrafos anteriores, pondere-se aqui a compreensível crítica feita a Cícero no tocante à originalidade de sua obra. Muitos dos conceitos ensinados pelos estoicos, de fato, parecem apenas se repetir sem muito lustro em Dos Deveres ou apenas serem explicitados de outra maneira.

Além disso, a noção de lei natural para os estoicos é determinante para a formulação do conceito de justiça de Cícero. A lei natural, da qual advinha a denominada reta razão, seria eterna, imutável, inserida no coração de todos, não podendo ser contestada, anulada ou não aplicada, nem mesmo pelo Senado.

A suprarreferida noção de lei natural para os estoicos, adotada integralmente por Cícero, embora se comunique com o pensamento de Aristóteles, dele se diferencia. No pensamento aristotélico, o direito natural se verifica na observação da natureza, que nos informa as fontes de possibilidade do justo, que seria, assim, prudencial, construído com base na equidade dada caso a caso, conforme cada especificidade.

Para Cícero, pelo contrário, o direito natural se apresenta como uma razão universal, apresentando-se como um rol de normas válidas para todos, em todo o universo. Muito além do campo da prudência e da equidade aristotélica, o direito natural para Cícero é considerado, repita-se, uma reta razão.

Sobre esse tocante, ensina Mascaro (p. 96):

Tal visão de direito natural dos estoicos, muito pronunciada em Cícero, embora esteja num ambiente intelectual que se comunica com o pensamento filosófico aristotélico, não lhe é idêntica. O direito natural de Aristóteles se fundamenta na observação da natureza, como fonte das possibilidades do justo, que versa sobre a distribuição. No pensamento Aristotélico, o justo é prudencial: a equidade é a construção do justo em cada caso, adaptando-se às circunstâncias específicas. Para Cícero, o direito natural é uma razão universal, e, por isso, comporta, ao contrário de Aristóteles, a sua anunciação tal qual um rol de normas válidas a todos, em todo o universo. Sendo um catálogo de deveres e ações, o justo para Cícero aproxima-se grandemente da moral. Para Aristóteles, o campo do justo é distinto do campo moral, já que o justo trata de proporções, de distribuições. Mais do que um campo da prudência e da equidade, da adaptação a cada caso concreto, o direito natural ciceroniano é considerado uma reta razão.

A forte noção prática de razão adotada pelos estoicos, a qual é fielmente observada por Cícero, implica em uma concepção global do homem, na medida em que, sendo todos por ela governados, todos os cidadãos são cidadãos do mundo, sem espaço para idiossincrasias nacionais. Ou seja, o direito tido por justo é universal a todos os povos, independentemente de fronteiras ou culturas regionais (Mascaro, 2014).

A filosofia grega, dentro da qual o estoicismo se apresenta com proeminente relevância, serviu de base elementar da prática jurídica romana, especialmente quando se estuda o Digesto, cujas definições de direito diretamente a ela nos remete. Neste contexto, Cícero, como profundo propagador dos ideais estoicos, construiu sua concepção de justiça.

IV – A OBRA DOS DEVERES: SÍNTESE ESTRUTURAL

Em suas obras de inspiração patriótica, Cícero exaltava os valores romanos, elogiava o civismo dos homens públicos, destacando a disciplina e o orgulho dos cidadãos pelo país, fundamentais para a manutenção do vasto império romano.

A obra Dos Deveres foi escrita por Cícero com destinação a seu filho, Marco, que se encontrava em Atenas para aperfeiçoar seus estudos em oratória e filosofia. O filósofo pretendeu, pois, completar o ensino a ele ministrado, incutindo-lhe preceitos práticos da moral e da ética.

O filósofo, ao pretender complementar e, na medida do possível e ainda que à distância, acompanhar o ensino provido a seu filho, que já se encontrava inserido em Atenas, berço e capital da filosofia, entendeu que seria necessário agregar-lhe princípios romanos relacionados à moral prática e à ética com intuito de torná-lo cidadão útil na reestruturação da sociedade romana.

Cícero procura transmitir a seu filho Marco em Dos Deveres a formação para a vida pública, esperando torná-lo cidadão consciente dos puros e verdadeiros valores romanos, uma vez que considerava a degradação desses conceitos estavam propiciando terreno fértil à instauração da ditadura em Roma.

No entendimento de Cícero, as discussões gregas eram excessivamente amplas no que diz respeito ao estudo da moral, sendo necessária sua intervenção para preenchimento dessa lacuna.

Assim, Dos Deveres pode ser considerado um importante resumo da ética antiga, ou seja, das bases que fizeram a grandeza do povo romano. É, além disso, um manual destinado aos membros da classe governante, que versa sobre os deveres a serem observados para com seus pares na vida privada e com seus concidadãos na vida pública.

Como mencionado alhures, para composição da obra, o autor se baseou nas lições do estoicismo, mais precisamente no tratado Sobre o Dever, do filósofo Panécio de Rodes, o qual, inclusive, é citado nominalmente no livro.

A estrutura da obra é explicitada didaticamente pelo próprio Cícero na seguinte passagem, que sintetiza seu conteúdo principal:

Segundo Panetius, examinam-se três coisas diferentes quando se quer tomar uma resolução prática. A primeira, se o que se apresenta é honesto ou desonesto; sobre isso a mente muitas vezes se confunde. Em segundo lugar, procura-se saber se a resolução aumenta as coisas agradáveis e as comodidades da vida, as riquezas, os recursos, o poder, o crédito, enfim se há vantagens para si e para os outros; esta segunda relação se prende à utilidade. Por último, trata-se de saber se aquilo que se parece útil na aparência, não se opõe ao honesto, quando a honestidade nos retém de um lado e o interesse de outro; nessa incerteza o espírito se encontra nos dois sentidos. Nessa divisão há duas omissões: não se examina somente se há honestidade ou desonestidade, mas de duas coisas honestas qual a mais honesta, assim como de duas coisas úteis, qual a mais útil. Aquilo que Panetius entendia dividir em três partes, comporta cinco. Assim, convém tratar do honesto, mas sob o duplo ponto de vista; depois do útil, também num duplo ponto de vista; enfim, comprovar o honesto e o útil.

A partir das considerações supra, verifica-se que o tratado Dos Deveres é constituído por três livros. No Livro I, o honesto é dividido em quatro virtudes principais, sendo elas: sabedoria, justiça, coragem e temperança. Vejamos as palavras do filósofo:

Há quatro fontes de onde derivam tudo o que é honesto. A honestidade consiste em descobrir a verdade pela perspicácia do espírito, o, ou em manter a sociedade humana dando a cada um o que é seu e observando fielmente as convenções […].

Embora esses quatro elementos da honestidade sejam confundidos e unidos, cada um deles produz certa espécie de deveres: assim ao primeiro, que não é senão a sabedoria e a prudência, pertence a procura da descoberta da verdade, sendo mesmo função particular dessa virtude. […]

O objetivo das outras três é a aquisição e a conservação de tudo o que é necessário à vida, a harmonia da sociedade humana, a grandeza d´alma que mais se destaca desprezando bens e as honras que se pretende para si e para os outros. A ordem, a constância, a moderação e outras virtudes, entram nessa categoria; não se contentam com a especulação pura, exige ação. Observando a medida e introduzindo ordem em todas as coisas da vida, ficaremos fiéis à honestidade e à decência.

Ao construir tais noções, Cícero aborda também a conservação da sociedade humana (VII), a grandeza da alma (VIII), o valor do civil e do militar (XII), a tutela governamental (XXV), o pudor e do decoro na vida pública (XXVII), os deveres segunda as idades dos indivíduos, o dever do cidadão (XXXVI), a conversação (XXXVII), a habitação (XXXVIII), entre tantos outros assuntos pormenorizados pelo autor. Basicamente, o principal dever representa respeitar a honestidade fundada nas ditas quatro virtudes essenciais expostas pelo filósofo

Já no Livro II, Cícero aborda as noções de utilidade, sustentando sua indissociabilidade da honestidade, na medida em que o útil, ao se tornar nocivo a determinada pessoa, deixará de ser honesto. Discorre, neste passo, sobre a natureza das coisas úteis (III), a conquista do favor popular (IX), o poder da justiça (XI), a origem do poder (XII), efeitos da corrupção do indivíduo (XV), liberalidades (XVI), lei agrária (XIX e XX), virtudes do homem público (XXII), etc.

No derradeiro Livro III, relaciona o principal assunto do Livro I (honestidade) com o do Livro II (utilidade). Neste sentido, sustenta que o conflito entre o útil e as quatro divisões do honesto é apenas aparente, concluindo que a honestidade deve sempre prevalecer sobre o útil. Para tanto, exibe as dificuldades na separação entre útil e honesto (III), os casos de prevalência nesse confronto (XII), as consequências do juízo de honestidade com aparência de útil (XXI), a oposição dos prazeres às virtudes (XXXIV).

Para o que interessa ao presente trabalho, verifica-se que Cícero expõe suas noções de justiça principalmente no Livro I, quando a classifica como sendo uma das virtudes do honesto. No Livro III, quando relacionada o honesto, e, portanto, a virtude da justiça, ao útil, igualmente desenha seus conceitos a respeito.

Interessante verificar a forma pela qual Cícero encerra a obra, lembrando-nos a quem ela se destina e mostrando-nos, mais uma vez, seu grande orgulho para com sua produção intelectual: “Adeus meu filho, e esteja persuadido que eu o amo ternamente; espero que você gostará ainda mais de mim, apreciando meus trabalhos e minhas lições” (Cícero, 1965, p. 181).

V – A NOÇÃO DE JUSTIÇA CICERONIANA

Cícero aborda a concepção de justiça nos três tratados por ele produzidos, todavia, aprofunda-se no tema ao escrever Dos Deveres, quando, ao proferir lições sobre ética prática, ensina e aconselha com base no útil e honesto.

Já na inauguração do Livro I da obra Dos Deveres, o autor separa os conceitos de “força” e de “natureza” do que considera “honesto”, dividindo-o em quatro características virtuosas, quais sejam, justiça, sabedoria, coragem e moderação, apresentando os deveres afetos a cada uma delas.

A divisão do honesto em virtudes, na qual a justiça se encontra inserida e ladeada pelas demais, em parte se distancia das lições de Platão, que a caracterizava como algo ordenador, rígido, estático e inflexível, que dividia as pessoas em classes diferentes (Pereira, 2002).

Se os gregos tratavam as virtudes sob o caráter da unicidade e indivisibilidade e os estoicos, especialmente Zenão, entendiam estar todas elas contidas em uma virtude suprema (o acordo consigo mesmo), Cícero, por sua vez, não temia tratá-las de forma separada (Pereira, 2002).

Guiado pela ética, entendia Cícero que o homem poderia refletir sobre sua verdadeira natureza, que, por sua vez, revelar-lhe-ia o lugar por ele ocupado na escala dos seres, no cosmo e seu papel que lhe é dado a desempenhar. Esta consciência daria ao homem o sentimento de sua dignidade e sua decorrente obrigação de com ela se conformar. A dita conformação nessa posição é o que Cícero chamada de honesto, na medida em que sua manutenção se revelaria como bem supremo, finalidade última do ser humano.

Essa virtude descrita pelo autor representaria a natureza perfeita, apresentada em grau supremo, a consubstanciação da verdadeira reta razão.

Se o animal se apresenta como ser acabado, que nasce, vive e morre da mesma forma, o homem, por outro lado, pode se construir durante sua existência. Assim, sua virtude se expressaria na conquista de si próprio, no desenvolvimento de sua natureza, na vida segundo a razão, que, inevitavelmente, o levaria para o grande objetivo elevado, qual seja, o honesto.

Tanto os estoicos, como também Platão, maiores influenciadores da doutrina ciceroniana, concebiam a justiça como a capacidade de dar a cada um o que é seu. Cícero, como não poderia ser diferente, absorve tais definições, compreendendo a justiça como uma virtude eminentemente social, como se os homens e a sociedade em si se constituíssem ao redor dela.

Diferentemente de muitos filósofos que o sucederam séculos depois, a noção de sociedade para o homem não tem base em instintos de egoísmo ou utilitarismo, mas sim em sentimentos desinteressados e altruísticos de convivência e coabitação, uma vez que a utilidade comum resulta na obrigação que cada um dos indivíduos deve aos seus concidadãos por natureza. Cícero (1965, p. 76) explica:

E não é verdadeiro o que dizem alguns: que, por causa da necessidade de vida, a natureza, desejando que não pudéssemos conseguir e produzir algumas coisas sem o concurso dos outros, haveria por isso instituído a comunidade e a sociedade dos homens. Se as coisas que dizem respeito à alimentação e ao cultivo, como que por um toque divino, como se diz, nos fossem fornecidas, então o homem de grande engenho, abandonando todos os negócios, colocar-se-ia de corpo e alma no estudo e na ciência. Ora, não assim: a fim de evitar a solidão, ele procuraria um companheiro de estudo, em seguida desejaria ensinar, aprender, ouvir, falar. Logo, todo dever que promova a união dos homens e proteja a sociedade será anteposto ao que protege e promove o conhecimento e a ciência.

Assim sendo, a finalidade da justiça é a promoção do Bem comum, de todo o corpo social por inteiro, não se verificando, portanto, como resultado do egoísmo ou utilitarismo, mas, em verdade, de um fato da natureza.

Ao homem inserido na sociedade, cabia-lhe a obrigação pessoal de ser justo, dever que representava verdadeira obrigação cívica, uma vez que conduzia a comunidade política como um todo à justiça.

Profundamente inspirada nos estoicos, a presente definição de justiça de Cícero deduz outras concepções mais estritas da mesma noção. Neste passo, o autor conecta seu conceito de justiça ao ato de julgar, na medida em que entendia que para sua realização e efetivação, a qualidade moral do julgador seria imprescindível. Sempre ligado à noção de dever enquanto valor, defendia que o julgador sempre deveria perseguir as virtudes dos deveres.

Além disso, também atrelada ao conceito de sociedade, ao se estudar o conceito de justiça de Cícero, não se pode desvencilha-la da noção de liberdade, uma vez que eram consideradas partes de uma virtude, denominada communitas, que poderia ser explicada como o sentimento da comunidade e as obrigações que dele nascem.

Entendia Cícero que a noção de liberdade retirava da justiça sua densidade jurídica, incutindo-lhe o senso de humanitário de altruísmo. Em outras palavras, é a liberdade que subtrai a aridez, a aspereza jurídica do conceito de justiça, atribuindo-lhe afeições humanas pertinentes ao senso de comunidade, de viver junto com outras pessoas.

A liberdade entendida como característica fundamentalmente intrínseca à justiça explica porque Cícero sempre se apresentou como ferrenho defensor do modelo republicano, afinal, apenas em um Estado no qual a liberdade fosse um valor em si, podendo ser expressada e exercida, os ideais de justiça poderiam se figurar presentes e florescer.

Neste passo, Cícero enunciava ainda duas regras elementares da justiça. A primeira, diretamente inspirada nos ideais platônicos, ditava o dever de não prejudicar a ninguém, enquanto a segunda a de usar os bens comuns coletivamente e os particulares privativamente.

Sobre a primeira regra, podemos subverte-la, ou seja, é possível praticar a injustiça, de duas formas, direta e indiretamente. De forma direta, a injustiça poderia ser praticada quando deliberadamente se pratica o mal em face de determinada pessoa. Todavia, ao ser possível repelir, impedir, que o injusto seja praticado a alguém, mas não o fazendo, igualmente em injustiça se estaria incorrendo.

Temos, nas palavras de Cícero (1965, p. 35):

Quanto à injustiça, há duas espécies: uma a que é ação dos que injuriam; outra que é omissão quando, podendo impedir, não o fazemos. Atacar injustamente seus semelhantes, por movimento de cólera ou de qualquer outra paixão, é como levar a mão à cara do próximo; não impedir uma injustiça quando tal se pode fazer, é como se abandonar seus pais, seus amigos, sua pátria. Uma injustiça premeditada é sempre fruto do medo, decidindo-se assim pelo temor deixando-se prevenir e sendo por isso vítima de si mesmo. Muitas injustiças são cometidas procurando-se o objeto de nossas ambições; poder-se-á afirmar que a cupidez é o seu principal móvel.

Dentro das ditas hipóteses de injustiça, Cícero as classifica como (i) culposa, e, portanto, menos grave, que consiste em determinada perturbação de ânimo, e (ii) dolosa, praticada de forma deliberada e premeditada, podendo ser praticada por meio de fraude (injustiça da raposa) ou por violência (injustiça do leão). A injustiça havida mediante fraude é a reputada como a mais odiosa por Cícero, na medida em que ligada ao comportamento dos fracos e covardes. Vejamos a literalidade de suas palavras:

Quanto à injustiça, é cometida de duas maneiras: pela violência e pela fraude. Uma pertence a raposa, outra ao leão. Todas as duas são indignas do homem, mas a fraude é a mais odiosa. De todas as injustiças, a mais abominável é a desses homens que, quando enganam, procuram parecer homens de bem.

Em sua obra, Cícero defende que as formas acima mencionadas de prática da injustiça seriam decorrentes de ações movidas pelas paixões do homem e, por essa razão, o autor, no transcorrer dos três livros, ressalta a importância do desapaixonamento para realização plena dos deveres do cidadão.

O desapaixonamento, em outras palavras, reflete uma das virtudes decorrentes do honesto: a moderação e temperança. É preciso, no ideal do filosofo, visando a promoção da justiça, abandonar os sentimentos e condutas extremas, adotando-se a parcimônia como norteadora das condutas. Deve-se procurar, assim, as ações dotadas de serenidade, pois “nada de mais honesto que uma vida frugal, severa, sóbria e temperante” (Cícero, 1965, p. 67)

Escreve Cícero sobre o desapaixonamento:

Livremo-nos de toda a paixão, não só da ambição, do temor, mas também da inquietação, da alegria, da cólera, conservemos essa tranquilidade, essa segurança que nos trazem dignidade e constância. É o amor a essa tranquilidade que levou tantos homens, em todos os tempos, e ainda hoje, a se afastarem dos negócios públicos e procurarem refúgio no retiro.

Dessa ideia decorre o entendimento para Cícero de que o apetite do homem pela glória deve ser moderado, uma vez que, nas palavras do filósofo, “o desejo da glória leva facilmente os maiores nomes à injustiça” (Cícero, 1964, p. 51).

Importante destacar que a noção de estado de natureza e lei natural estão permeadas por todas as ideias e lições do autor. Neste passo, como a natureza não discrimina os bens pertencentes a cada indivíduo, necessário que os homens convencionem entre si, baseados na noção de recíproca de fidelidade, os limites e ditames do que se considerará propriedade privada.

Essa construção é importante na formulação da noção de justiça para o autor, na medida em que é a partir dela que se extrai como seu fundamento os conceitos de boa-fé, sinceridade e fidelidade aos acordos e convenções. Ausente a noção básica de confiança, a justiça perde seu fundamento e inexiste. Sobre justiça e boa-fé, explana Cícero (1965, p. 35):

O fundamento da justiça é a boa-fé, ou seja, a sinceridade nas palavras e a fidelidade nas convenções. Embora isso possa parecer forçado, imitamos os estoicos, que procuravam cuidadosamente a etimologia de cada termo; cremos que a fé vem de fazer, porque se faz o que se diz.

As noções de “promessas” e “acordos”, juntamente com seus correlatos, apresentam-se como as ideias centrais do que Cícero entendeu por bona fides. O homem virtuoso, individualmente digno e conhecedor da integridade de seu caráter leva a boa fé nas relações para adentrar na sociedade, nas leis escritas e nos governos (Black, 2002).

O que Cícero defende, em verdade, é que a conduta humana seja elevada até o padrão estabelecido pela lei natural, esperando, inclusive, que a lei posta pelo Estado igualmente alcance tal padrão.

Ficam claras as lições sobre boa-fé, sinceridade e fidelidade às convenções quando Cícero exemplifica acerca da justiça e interpretação das leis. Explica o filósofo que o injusto se apresenta também quando, apegando-se excessivamente ao texto escrito, interpreta-se a lei com rigorosidade astuciosa: “muitas vezes se é injusto agarrando-se muito à letra, interpretando a lei com tal finura que ela se torna artificiosa” (Cícero, 1965, p. 38).

Como exemplo de interpretação artificiosa, o autor cita o caso da disputa entre dois exércitos, cuja trégua de trinta dias é avençada entre seus comandantes. Diante do pacto selado, um dos comandantes ataca o adversário durante a noite, sob alegação de que a trégua foi combinada por trinta dias e não por trinta noites. Evidente que, para Cícero, a situação dada avilta a boa-fé, lisura dos pactos e, em última instância, a justiça em si.

Entendemos, assim, que a virtude da justiça para Cícero é diretamente retirada da noção estoica e platônica, que consiste em dar a cada um o que é seu. Além disso, está intimamente ligada à ideia de liberdade, pois, apenas nessa situação de efetivo exercício do altruísmo (contraposto ao egoísmo) pode ser observada a verdadeira justiça perquirida.

VI – CONCLUSÃO

Cícero, em sua vida e obra, apresentou-se como homem realmente honesto e praticante dos preceitos por ele defendidos. Ao instruir seu filho Marco, na obra Dos Deveres, para observância da natureza e honestidade e o advertindo contra pequenos prazeres, paixões e indolência, o filósofo se refere à valores humanos que verificavam em crise na Roma do século I a.C.

Inobstante a preocupação de Cícero se referisse aos valores relativos ao momento histórico em que se encontrava inserido, os princípios propagados em Dos Deveres se mostram perenes e atuais.

Urge, atualmente, a demanda de regras de convívio mútuo, baseadas não apenas na lei escrita, mas também verificadas a partir do conceito de lei natural de Cícero, o que confirmaria uma melhor forma de interação entre os indivíduos na sociedade e solidificaria os ideais de virtude, ética, moral, dignidade.

Desses postulados, Cícero firma a justiça como uma das quatro virtudes do honesto. Na verdade, classifica-a como soberana sobre todas as demais.

Assim, o filósofo eleva a importância da justiça em alto grau e consideração, caracterizando-a como o elemento que mantém a sociedade coesa e cimenta a união entre os homens. Por essa razão, para Cícero, não pode ser outra a obrigação primordial do homem, senão a de praticar a justiça para com o Estado, sociedade, família e consigo próprio.

VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2001.

BLACK, Virgínia. Introdução. In: CÍCERO, Marco Túlio. Do orador e textos vários. Porto: Rés-Editora, 2002.

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e notas Amador Cisneiros. 2ª edição. São Paulo: Edipro, 2011.

CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres. Tradução e notas João Mendes Neto. São Paulo: Saraiva, 1965.

CRETELLA JR., José. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Filosofia Jurídica. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. Vol. II. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

TAVARES, Júlia Meyer Fernandes. A Filosofia da Justiça na obra de Marco Túlio Cícero. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Thiago Bermudes de Freitas Guimarães

Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Advogado.



[1] Como ensina Cretella Júnior (1991, p. 32), os pretores eram os magistrados, responsáveis pela distribuição da justiça.

[2] Cícero, no curso de toda obra Dos Deveres, enfatiza a república como melhor sistema de governo do Estado. Em certa passagem, assevera que “devemos olhar como inimigos àqueles que fazem guerra à república” (1965, p. 60).

Como citar e referenciar este artigo:
GUIMARÃES, Thiago Bermudes de Freitas. O conceito de justiça de Marco Túlio Cícero. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/o-conceito-de-justica-de-marco-tulio-cicero/ Acesso em: 28 mar. 2024