Filosofia do Direito

Breves comentários sobre a crítica da legalidade e a questão da legitimidade e interpretação

Abílio Osmar dos Santos[1]

Resumo: O presente artigo discute os fundamentos da teoria crítica da legalidade do ordenamento jurídico, a partir do cotejo entre legalidade e legitimidade. Para tanto, apresenta os conceitos gerais de cada teoria, e destaca os efeitos de cada uma na concepção discursiva e interpretativa. São identificados problemas na legalidade estrita que assola a discussão jurídica, confundida legalidade com legalismo, pensando que a interpretação do sistema jurídico.

Palavras-chave: Legitimidade; legitimidade; interpretação; teoria discursiva.

Sumário: 1. Introdução; 2. Definições de legalidade e legitimidade; 3. O legalismo como distorção da legalidade; 4. Legitimidade e legitimação; 5. A crítica da legalidade; 6. A questão da interpretação; 7. Teoria discursiva; 8. Verdades Transitórias; 9. Bibliográfica

1. Introdução

Não se pode deixar de anotar que legitimidade, deriva do latim, pode ser entendida com ideia de “segundo as leis”, logo a lógica da legitimidade estabelece sentido direto com lei, não se pode aqui confundir lei, com lei posta, escrita, positivada, nesse sentido seu conceito entrou para ordem de problemas mais clássicos da ciência política.

Muito além da discussão terminológica, legitimidade se mostra um problema de estudo que tem inquietado diversos estudiosos do direito e das ciências políticas.

A ideologia positivista, sobre a qual a legalidade é o principal fundamento de validade das condutas dos indivíduos na sociedade, assim o positivismo analítico, com a ideia de sistematização e criação de aspecto de cientificidade ao direito, busca na legalidade amparar seu conceito sistêmico e abstrato.

Contudo, trabalhar com esse tema pode ser, algo mais do que buscar amparo teórico, pode ser um reflexão contundente sobre a consciência dos homens, num mundo marcado pela angustia, visto que o problema é comum ao Direito e a Política.

Para tanto proponho a seguinte provocação Legitimidade e Legalidade são sinônimos? Um está necessariamente ligado e validado pelo outro?

Nesse sentido anotamos a passagem de Guerra Filho, citando: “Outro reacionário em matéria política, mas de inegável valor intelectual, Bertrand de Jouvenel, escreveu que os múltiplos significados de uma mesma palavra são uma dádiva para o poeta, mas não para o cientista”[2]

Logo, há uma confusão na linguagem dos juristas que utilizam os termos como sinônimos.

Inegável que as leis escritas buscaram assegurar uma presunção de justiça e legitimidade, isso complica ainda mais, pois mistura outro conceito ainda, mais distante entre legalidade e justiça.

Na tradição da igreja romana não pode haver distinção entre legalidade e legitimidade, que por inspiração divina o que é legal, portanto legitimo vez que as leis bíblicas são as verdades reveladas por Deus.

2. Definições de legalidade e legitimidade

Vamos nos socorrer a definição de Antônio Carlos Wolkmer, definindo que “a legalidade reflete fundamentalmente o acatamento a uma estrutura normativa posta, vigente e positiva, e que a legitimidade incide na esfera da consensualidade dos ideais, dos fundamentos, das crenças, dos valores e dos princípios ideológicos”. Sua aplicação envolve, como concepção do direito, “a transposição da simples detenção do poder e a conformidade do justo pela coletividade”.[3]

A legalidade está relacionada à forma, enquanto a legitimidade está relacionada ao conteúdo da norma.

A legalidade, como acatamento a uma ordem normativa oficial, não possui uma qualidade de justa ou injusta. A ideologia legalista, por sua vez, parte da noção de legalidade para distorcê-la e, aí sim, servir como instrumento de injustiça.

3. O legalismo como distorção da legalidade

O legalismo é utilizado por vezes como estratégia autoritária, para impor uma ação estatal justificada apenas na necessidade de cumprimento “da lei”. É o argumento que se esconde na autoridade da lei estatal para ter validade, quando na verdade há interesses que não podem ser expostos, devido à ausência de consenso. Pressupõe-se que, se a tese está fundada numa lei, e as leis (conforme essa ideologia) são verdades absolutas, então a tese nela fundada também é uma verdade absoluta.

Basear-se em argumentos legalistas para justificar decisões judiciais injustas significa contribuir para subjugar e não dar efetividade à “essência da função judicante”, para submeter-se ideológica e politicamente ao legislador.

A história das instituições jurídicas no Brasil mostra que o pensamento legalista serviu e tem servido para justificar a imposição do poder das oligarquias sobre a imensa maioria do povo, ou seja, o suporte para a conservação do poder e para justificar a utilização da força armada contra as manifestações populares e de libertação nacional.

Assim se caracteriza o discurso legalista vigente, presente em todos os meios da superestrutura ideológica jurídica (monopólios de comunicação, faculdades, tribunais).

4. Legitimidade e legitimação

A legitimidade, por sua vez, ao mesmo tempo em que constitui um caminho de ruptura com o legalismo, pode ser desvirtuada para convergir com o legalismo.

Assim, o termo legitimação encontra um significado diferente de legitimidade. Trata-se de um termo usado pelo tecnicismo na política, compreendendo o processo pelo qual se buscará que uma norma ou ordem oficial, independentemente de seu conteúdo, seja aceita pela população sobre a qual incide, e, em consequência, seja cumprida sem o recurso à força.

Dominação não se apoia apenas na força, na violência e na coação, mas, sobretudo, no consenso acerca da crença nos valores que embasam as imposições e as determinações advindas de “governo”.

Ocorre que a lógica formal contida nesse processo de legitimação, não possui instrumental adequado a esgotar e esclarecer o tema de forma a contento, confundindo tudo com conceito de legalidade.

A legitimação, como processo de organização social, é um processo ideológico para tornar aceitáveis determinados axiomas. Cabe, portanto, resgatar a definição de legitimidade como busca do direito justo, para além do direito estatal.

Observamos, no recente episódio brasileiro, a autocracia do Judiciário e seus “decisionismos”, isto é, a constante atividade inventiva, e, em grande, furtiva da própria realidade regulamentar das disposições normativas.

A culpa seria do texto constitucional e a impossibilidade de se utilizar a técnica de mera subsunção para resolver os problemas da lei, cabendo ao Judiciário não apenas invalidar a norma, mas também completá-la com princípios achando, assim, a melhor solução, ou seja, temos aqui, por parte de Judiciário, uma total carência de legitimidade, aproximando-se no estado de exceção pelo judiciário. Esquiva-se da lei para nos embrenhar nos labirintos do discurso, da retórica e da fundamentação judiciais ainda admirados quanto estamos com a denominada interpretação autêntica enunciada pela teoria pura de Kelsen.

O problema limítrofe é que, ao qualificar uma norma como princípio, ela não perde eficácia, mas ganha subjetividade, passando a ser aplicada na medida e no peso que bem entender o seu julgador.

Se outrora, na ascensão do iluminismo, a legalidade repreendeu a imaginação dos juízes hegemônicos, nomeados pelo rei, como garantia da pessoa contra os abusos impingidos, hoje talvez seja preciso revisitar a teoria.

Caminhamos em um mar de interpretações jurídicas, de infinitas leis que se debatem sob as mais possíveis variantes que lhe conferem os princípios constitucionais como se estes não determinassem, mas apenas orientassem. A produção de legal deve passar pelo Legislador e pelo Executivo, poderes encarregados da representação da vontade democrática e da execução do orçamento, e não ao Judiciário, ao qual incumbe a execução da lei.

A sociedade reclama por previsibilidade que só pode ser obtida a partir do momento em que as leis sejam resposta ao clamor social, pois esta missão é do Legislativo, cabendo ao Executivo expedir o necessário para a mudança social real e prática. Deixar a cabo do Judiciário a tarefa de reconstrução da realidade é conferir a poucos o poder de dispor os rumos culturais, econômicos e ambientais de uma sociedade multicultural, com o risco de clara ofensa à representatividade.

5. A crítica da legalidade

Uma legalidade que se instaura como universalidade, mas que tal não é termina por ser ainda privilégio, de alguns e contra o senso de justiça de muitos. Nesse sentido, destaque-se que as contradições sociais, o constrangimento e as misérias históricas é que servem de norte para o reconhecimento das misérias da filosofia, da teoria da legitimidade do direito.

Como afirma Alysson Mascaro “talvez somente a miséria compreenda a injustiça, posto que a abundância amaina os ímpetos da alteridade”[4]. A opressão se vê na própria humanidade, que na abundância dos que vivem em direito e leis de um lado, e na injustiça da carência das necessidades, com os sem leis, de outro lado. A verdade dos poderes institucionais da legalidade e do direito é verdade da injustiça, legal ou não, chancelada pelo próprio direito.

Pensar o romper da legitimidade da legalidade é compreender, quando não é discurso de aparência concordância de igualdade formal e universal mas sim a realidade da exploração assentada em bases supra individuais, assim destaca-se que a universalidade da legalidade é a mascara de sua parcialidade e privilégio.

A lei garante um mundo cujas formas de se relacionar se dá na aparência de uma equivalência social, a assim a igualdade legal é levada a sua esfera máxima, não levando em conta, a injustiça real, a coerção econômica, a desigualdade que se mantêm e a brutal diferença que o sistema social mantém e agrava, extraindo assim que a igualdade jurídica não é a igualdade real, a legalidade não é a justiça.

O capitalismo, assim, é o modo econômico que fará da igualdade e da liberdade sustentos da circulação econômica livre entre iguais, instalando a legalidade como mediação que estabelece igualdade formal.

A legalidade ainda padece de má concepção teórica, que reduz o problema a questão técnica, a legalidade se mistura de maneira promíscua as intervenções diretas dos interesses econômicos organizados no Estado e em que a função jurídica acaba relegada ao plano de respaldo de demandas dos mais variados grupos de pressão organizado, afetando diretamente qualquer mínimo quociente de soberania real ou de afirmação de diretrizes jurídicas democráticas, urgem ser plenamente revistos e dimensionados, tendo em vista a utilização ideológica e simbólica de conceitos aparentemente neutros em questões de grave fundo de injustiça e opressão.

Na realidade atual, a questão da legalidade vem revelando gravames ainda maiores. Sob arranjo de modelo neoliberal, permeados pelo capital transnacional e pelo novo imperialismo que se pode ver no capitalismo central, vai-se revelando uma indiscutível destruição dos limites juridicamente formais dos Estados nacionais, sua perda de autonomia em face das demandas do capital, cujo poder econômico de alguns dos seus conglomerados empresariais em muitos casos.

Não bastasse, a perda de referenciais tradicionais das lutas de grupos de crítica ou pressão e a destruição de formas de burguesia nacionais sustentadoras de Estado de direito nacionais transformam substancialmente a questão da legalidade.

A ideia de legalidade, mais do que uma justificativa ideológica ou filosófica é um conceito tradicional e arraigado nos quadros da teoria política ou da análise do Estado. O jurista, em geral, enxerga a legalidade como ferramenta de construção institucional, mas, no plano da análise de ciência política, há de se fazer a conexão social, histórica e ideológica desta ferramenta jurídica, tida, pelo jurista comum, como neutra.

Sintetiza Alysson Mascaro[5] “nesta noite em que repousam os sonhos de transformação social, o cobertor da legalidade pode até ser para todos, mas a cama ainda é só para alguns”.

6. A questão da interpretação

A compreensão não se confunde com uma “comunhão misteriosa de almas”[6], pela qual algo praticamente divino permitiria alcançar o íntimo do autor. Ademais, a tarefa hermenêutica, aqui se valendo do pensamento de Gadamer, consoante a pretensão de objetividade científica dada pelo método, desprezando-se a historicidade e a consciência histórica do homem. A leitura de um texto ultrapassa as intenções do autor, já que o diferente o contexto altera e inclusive amplia os sentidos originalmente pensados pelo escritor.

A interpretação nunca se dissocia de seu componente histórico e cultural. Não há o conhecimento da “coisa em si”, mas sua mediação com a tradição e com os preconceitos do autor, logo é impossível uma interpretação autentica.

O que acontece de fato não é interpretação, mas uma compreensão individual e limitada aos limites de cada leitor, portanto difícil ponderar uma escala valorativa do que é melhor, o leitor ao interpretar já encampou sua presença (entendida aqui como estar com).

De acordo com Gardamer[7] “todo conhecimento que o homem tem do mundo é mediado linguisticamente”, com isso temos um exato sentido que o texto e linguagem não é e não pode ser algo imutável e seguro, ou seja, a interpretação não será invariável, logo trazendo a discussão para a interpretação de texto jurídico, o julgador atribuirá sentido de acordo com seu horizonte e repertório.

É ver e entender como Heidegger[8] elabora seu próprio conceito de tempo a partir de uma interpretação peculiar da presença humana (Dasein), tendo em vista, também, a elaboração de uma ontologia fundamental. A tematização heideggeriana revela que o tempo não é nem objetivo, nem subjetivo.

Sua tematização do tempo é uma tematização ontológica, razão pela qual está relacionada com a questão pelo sentido do ser. Tendo a hermenêutica fenomenológica como método de investigação, Heidegger mostra que o tempo é cada vez e sempre enquanto modos próprios ou impróprios de temporalização. Na elaboração do conceito de tempo é preciso ver e entender como ele fundamenta e descreve a temporalidade originária, a ocupação cotidiana do tempo e a origem do conceito vulgar de tempo.

Logo o julgador interpreta, de acordo com seu tempo, sua presença (Dasein), tal interpretação gera uma compreensão vulgar e periférica do objeto observado, não garantindo segurança alguma de resultado, considerando o tempo e local onde se insere o julgador, temos que esse é incapaz de agir com imparcialidade total do objeto compreendido, pois sua simples presença já dá um sentido próprio.

Não poderíamos deixar de observar que o julgador, não é neutro (essa sendo encarada como qualidade subjetiva de sabão em pó), ele aplica sua presença com carga ideológica, constituindo inseguro o resultado se irá chegar ao interpretar o texto normativo, podendo agir de forma arbitraria.

O problema da arbitrariedade sempre foi discutível, na critica ao positivismo analítico isso fica evidente, pois lá a não reticencia em afirmar a possibilidade de julgador agir com forma discricionária e até mesmo contra a norma posta.

Alexy[9] tentar restringir isso, porém esbarra numa questão prática por mais mecanismos e metodologias que o julgador deva ter no seu sistema proposto, há uma dificuldade e implicação prática, o modelo é pensado de forma abstrata, com metodologia própria da ciência naturais, no campo que comporta da idealização e a abstração.

Nesse contexto, na questão da interpretação do sistema normativo, gera um desconforto a noção de segurança imaginada pela legalidade, vez que o texto normativo é linguagem, logo o sentido da linguagem nunca será exato.

Como bem ilustra Márcio Pugliesi[10] “apenas para comentar lembramos que o canto do galo é representado em inglês por kukadoo; em japonês por kikiriki; em mexicano por kukurrukuku e, em português, por cocorococó.”

E ainda arremata, “por outro lado, a palavra é supostamente intencional, isto é, usada com a intenção de comunicar-se, de exprimir um sentido, logo a interpretação nunca será exata.”[11]

Para além da legalidade, pensado como seguro, nada mais é que entregar ao julgador a condição de interprete do direito, trazendo uma questão de intepretação ideológica que pode exprimir conceitos de mando e dominação a seu bel-prazer.

Por trás de um texto de norma jurídica há um bem que merece proteção. A noção de bem jurídico varia, mas é sempre algo que a lei tenta proteger, mesmo que não caiba em definições precisas.

Quem enuncia um dever ser procura defender algo, enuncia uma vontade a favor de um estado de coisas. A situação preferida possui bens que a situação preterida não possui, os quais são os protegidos pelo enunciado da norma.

A forma como esse bem se revela é não raramente ocultada pela técnica de interpretação jurídica, que transforma a interpretação mais trabalhosa em algo operacional, lembre-se que impossível o julgador se livrar de seu horizonte, logo por vezes abandona o texto legal e passar agir no campo político impondo suas vontades e desejos, agindo num estado de exceção e discricionariedade plena, ao argumento tolo, que esta agindo de forma racional para justificar seu ato político de decidir.

Logo, não há um segurança pretendida por Kelsen, em sua busca pelo rigor cientifico ao direito, pois como bem anota Umberto Eco, todo texto é aberto e seu sentido só é fechado no leitor e em cada leitor.

7. Teoria discursiva

Podem-se considerar os conceitos trazidos por Habermas, desenvolve a chamada Teoria Discursiva do Direito, no destaque a análise da legitimidade das normas jurídicas. Apoiando-se na teoria dos atos da fala de Austin e Searle, expõe que o que a língua profere são atos por meio dos quais se pretende chegar a um entendimento com outro, sobre um determinado conceito.

Como bem anota Márcio Pugliesi[12] “Habermas buscará uma pragmática universal com o objetivo primário de construir uma teoria filosófica da verdade lastreada no consenso”, para tanto supõem a possibilidade de fundar um consenso democrático numa “racionalidade discursiva” a nominando como “universais pragmáticos”. A pretensão de universalidade repousa na escolha prévia de ideologia e sentido, o que condiciona o próprio conceito de língua.

A firma Habermas[13], que a linguagem, assim, teria como característica um sentido performativo, ou seja, quando alguém diz algo, informa o que faz. E esse sentido só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segunda pessoa, abandona a perspectiva do observador e adota a do participante. Isso significa entrar no mundo da vida compartilhado por uma comunidade linguística e querer entender-se com alguém sobre algo no mundo, para chegar a um acordo racionalmente motivado e construído intersubjetivamente.

Com base nessa teoria, concebemos que há uma força normativa inerente à linguagem que, se usada de forma comunicativa, é um meio eficaz de integração social. Trata-se do agir comunicativo, assim entendido como a disposição dos particulares para, a partir do diálogo, se entender e alcançar um consenso sobre algo do mundo. Assim esclarece o autor:

“Tão logo, porém, as forças ilocucionárias das ações de fala assumem um papel coordenador na ação, a própria linguagem passa a ser explorada como fonte primária da integração social. É nisso que consiste o “agir comunicativo”. Neste caso, os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários” (HABERMAS, 1997, p. 36).

A pressuposição de uma situação ideal de diálogo, ainda que não realizável empiricamente, está presente em toda interação mediada pelo discurso. Essa situação é caracterizada pela ausência de qualquer mutilação sistemática da comunicação, onde prevalece sempre à força do melhor argumento e se assegura igualdade de condições para os participantes do discurso, numa forma de vida marcada pelos ideais de liberdade e justiça.

Mas nem sempre os indivíduos buscam o franco entendimento, mas visam, no diálogo, sobrepor-lhe seus interesses e objetivos pessoais. Neste caso, fala-se em agir estratégico, no qual a linguagem é utilizada como simples meio de transmissão de informações, e não como conformadora de atos. É uma ação meramente instrumental, numa racionalidade desconectada do mundo da vida.

Para o autor, sistemas são esferas de ação desconectadas do mundo da vida, no bojo do qual as ações não são orientadas para o entendimento, mas possuem o objetivo de alcançar um determinado fim, usando meios próprios. Trata-se de âmbitos de ação “deslinguistizados”, nos quais a linguagem não é fonte de integração social, mas simples instrumento para transmissão de informações de forma objetivas.

É o direito, pois, que oferecerá a resposta, por ser normatizado e apresentar-se com pretensão à fundamentação sistemática, à interpretação obrigatória e à imposição, não mais por uma questão formal, mas por ser uma ordem posta; sua normatividade deve ser resultante da sua observância e vivência por parte dos atores sociais – deve, pois, ser legítimo. A legitimidade do direito não mais advém de sua submissão a uma moral superior ou a fundamentos éticos, e sim pelo fato de que os afetados pelas normas jurídicas se reconhecem como coautores dessas normas.

Habermas propõe, assim, a substituição do mundo da vida, como estabilizador social, pelo direito legitimamente construído a partir de uma política deliberativa que observe as garantias de participação dos afetados pelas normas na sua construção. Considerando que o mundo da vida não é mais suficiente para desincumbir-se desse papel harmonizador, o direito vem, no bojo de uma sociedade democrática e plural, “permitir o dissenso, a discordância, a problematização, e regular os riscos advindos desses desacordos”.

Habermas[14] afirma, nesse sentido que “o direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa. Mensagens normativas só conseguem circular em toda a amplidão da sociedade através da linguagem do direito; sem a tradução para o código do direito, que é complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, estes não encontrariam eco nos universos de ação dirigidos por meios”

Mundo da vida e sistemas deve, pois, ter sua linguagem traduzida para o direito, de modo a poder prover temas e argumentos para problematização em discursos de justificação. Pelo devido processo legislativo tais temas serão vertidos em direito legítimo, dentro de uma visão meramente legalista, o que entendemos ser insuficiente.

8. Verdades Transitórias

Tendo em mente que as normas jurídicas, não refletem uma espécie de juízo lógico, que necessariamente não precisa ser verdadeiro ou falso, justo ou injusto, considerando os modelos epistêmicos existentes e não temos no direito alicerçado no ideário da legalidade nenhum tipo de segurança contra as arbitrariedades da vida social.

Assim, a teoria crítica, refeitas a redução tecnicista , também evita a fusão pura e simples do direito no seu contexto social, o que levaria a cair, concepção rasa da legalidade e sua mera reiteração em outros termos. Busca-se travar uma batalha sem trégua contra uma visão lei que se limita a reiterar sua letra sem ir ao campo material da vida social que devia ser seu objeto de preocupação, o direito não pode ser uma questão técnica reservada aos especialistas.

A ideia de possibilidade está no centro da argumentação da teoria crítica, introduzindo a questão da esperança, abrindo espaço ao debate da utopia como gesto de coragem “sonhando de olhos abertos”[15]

Demonstrou-se que não há neutralidade na aplicação do direito, e que a ideologia legalista está impregnada na formação do pensamento jurídico. Conclui-se que é preciso verificar a legitimidade do direito, em vez olhar apenas para sua legalidade.

A ruptura com o legalismo e com a legitimação leva à afirmação de uma nova legitimidade, como parâmetro de aplicação do direito, a legitimidade conforme os interesses e necessidades das classes populares.

Uma legalidade que se instaura como universalidade, mas que tal não é, termina por ser ainda privilégio, contra o qual o capitalismo um dia lutou juridicamente para depois dele também se assenhorar, então não mais na aparência formal mas ainda na realidade.

A miséria, as contradições da vida social são condições insolúveis ao capitalismo, que se apoderam das instituições jurídicas e políticas, com o lucro desenfreado comprar mecanismos técnicos tais como a legalidade, que construiu para sua própria proteção e não da justiça como o pensamento ingênuo defende, aniquilando qualquer respiro transformação e mudança social.

9. Bibliográfica

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WOLKMER, Antônio Carlos. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. In: Revista de Informação Legislativa, n. 124. Brasília, 1994.



[1] Mestrando em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com estudos em MBA em Gestão de Estratégica e Econômica de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP). Advogado.

[2] Bertrand de Jouvenel. Authority: the eficient Imperative. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbelini. Teoria Política do Direito. 2ª ed. São Paulo: RT, 2013. p. 177.

[3] WOLKMER, Antônio Carlos. Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária. In: Revista de Informação Legislativa, n. 124. Brasília, 1994, p. 180.

[4] MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do Direito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo Quartier Latin, 2008. p.15.

[5] MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito e filosofia política: a justiça é possível. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 126

[6] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

[7] Ibi idem

[8] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.

[9] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p. 245

[10] PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito.2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 27

[11] Ibi idem

[12] Ibi idem p. 49

[13] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. P. 67

[14] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. P. 87

[15] BLOCH. Ernst. L’esprit de l’utopie. Paris:Gallimard, 1977.

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Abílio Osmar dos. Breves comentários sobre a crítica da legalidade e a questão da legitimidade e interpretação. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/breves-comentarios-sobre-a-critica-da-legalidade-e-a-questao-da-legitimidade-e-interpretacao/ Acesso em: 18 abr. 2024