Filosofia do Direito

A derradeira lição de Zygmunt Bauman

Resumo: O texto se baseia na última obra deixada por Bauman e lançada em 2016 e ainda inédita, no Brasil, onde há a divulgação da ética da responsabilidade com o Outro.

Palavras-Chave: Filosofia. Sociologia. Modernidade Líquida. Estranhos. Refugiados.

 A morte do sociólogo polonês, apesar de seus noventa e um anos, foi inesperada, pois se encontrava em lúcido, produtivo apesar da idade avançada. E, sua crítica a sociedade contemporânea, individualista e relativista, se popularizou através da expressão “modernidade líquida” que ultrapassou os estudos sociológicos, ou mesmo, os meramente acadêmicos[1].

A noção liquidez foi o fio condutor de seu pensamento pautado na observação dos tradicionais parâmetros de sociabilidade que perderam sua estabilidade e, nos conduziu, a um moundo de incerteza, no titanic de amores líquidos e insólitos, onde os padrões e regras antes vigentes perderam sua sagacidade diretiva.

Assim, num discurso de liberdade individual, os conceitos de nação, família, cidadania, liberdade e moral se diluíram em uma sociedade onde não existem pontos de referência que assegurem tanto a identidade individual como a coletiva.

A esfera pública tomou-se de um tom incolor, onde todos os valores estão a serviço de interesses privados e capitaneados pelo mercado.

Enfim, líquido passou a designar um mundo em que todos os parâmetros da vida social se tornaram fluidos, onde tudo é incerto e instável. Onde tudo é refugo e descartável.

Apesar disso, não se pode afirmar que a singular popularidade de Bauman foi fruto do acaso. Pois ele produziu em grande escala a difusãod e seu pensamento, publicando um total de quarenta e quatro livros, praticamente, de um a três livros por ano.

Suas obras, em geral, suscitas, didáticas e diretas abordavam os principais temas da atualidade, sem incorrer na aborrecida linguagem hermética, tão peculiar às publicações científicas.

Bauman, deliberamente, não escrevia para a comunidade acadêmica, mas para o público em geral, produzindo uma rica bibliografia onde são discutidas, em redaçaõ acessível, onde são analisadas as questões e impasses da sociedade em pleno derretimento.

Na sua última obra, intitulada Strangers at our door (estranhos à nossa porta) que foi lançada em maio de 2016, abordou um dos grandes problemas internacionais da atualidade: a crise migratória de refugiados, em especial, na Europa.

Trouxe uma análise crítica e plura sobre o intricado tema. E, identificou, nas sociedades europeias que receberam grande número de migrantes, o desenvolvimento de uma moral panic[2], marcada pela disseminação da difusa sensação de que o equilíbrio social está ameaçado.

Bauman valeu-se do conceito do pânico moral[3], presente na obra do sociólogo Stanley Cohen (1942-2013), especialmente em Folk devils and moral panics: The creation of the Mods and Rockers de 1972[4].

Para Bauman, os europeus veem os refugiados não somente como estrangeiros, mas como estranhos. Assim, o expressivo número de imigrantes desalojados, pobres famintos e com matrizes culturais muito diversas da europeia e tem gerado nos países de destino uma sensação de estranheza e um temor difuso.

A Europa estaria sob a crescente sensação de ameaça aos seus referenciais culturais, aos seus padrões civilizatórias de cristandade ocidental e às respectivas identidades culturais.

Os refugiados, em sua grande maioria, muçulmanos, além de gerar encargos socioeconômicos,são percebidos também como uma ameaça ao modus vivendi europeu. O grande contigente de migrantes estaria comprometendo a vigência da crença europeia de uma homogeneidade nacinal.

Assim, Bauman denunciou a persistência cultural do pensamento constitucionalista de Carl Schmitt[5] contidona noção de que povo é conceituado como uma comunidade de destino e que se diferencia dos demais povos exatamente por sua homogeneidade política interna.

Esse é o fundamento da acepção étnica-cultural de cidadão, defendido por Schmitt e que está presente no inconsciente coletivo europeu, daí, justifica-se a estranheza e as ameaças sentidas e pressentidas diante dos refugiados muçulmanos.

Reforçando esse clima de ameaça, o fundamentalismo terrorista, e particularmente, o islâmico, tem alimentado o discurso de securitização, como forma de combater e reagir contra a invasão muçulmana, encontrando forte repercussão nas pautas de agentes políticos em todo mundo e, da grande mídia.

O avanço do discurso de securitização no contexto político europeu, destaca-se o fortalecimento da extrema direita[6] francesa de Marine Le Pen, que tem na oposição à imigração uma de suas bandeiras mais populares e aceitas.

Assim, Bauman, apontou o referido discurso como estratégia para aliviar a responsabilidade pessoal e coletiva pelo cenário internacional, além de gerar no âmbito nacional a defesa de seus valores culturais e de sua segurança identitária.

Essa derradeira obra de Bauman está muito ligada à outra obra, intitulada de “Medo Líquido”, na qual, se ressaltou a contemporânea sesnsação de medo que forma o ser inseguro, que sempre busca a proteção através de meios externos, tais como equipamentos eletrõnicos e políticas públicas repressivas de segurança.

Bauman criticou profundamente a crise imigratória através de uma ótica humanista, onde apontou que a humanidade está em crise e não há nenhuma saída da crie sem a solidariedade humana.

Assim, toda a humanidade deve assumir sua responsabilidade política, social e humanitária para com os refugiados. E, recorrendo ao pensamento de Kant de paz perpétua[7], defendeu  um princípio universal de mútua hospitalidade, cujo imperativo transcende as diferenças culturais e fronteiras territoriais, demandando a construção de uma sociedade eticamente internacionalizada pela solidariedade.

A assunção da responsabilidade diante da tragédia humanitária dos refugiados seria portanto um imperativo ético. Bauman também evidenciou outra filiação filosófica ao francês Emmanuel Lévinas, com sua ética da responsabilidade[8] pelo Outro. Bauman defende que o refugiado seja compreendido, não como um estranho, mas como nosso Outro, pelo qual somos responsáveis.

É verdade que as propostas de Bauman e Lévinas[9] são idealistas e até mesmo utópicas. Mas, a crise da humanidade só nos leva a assunção pessoal e coletiva de responsabilidades.

E, o diálogo é a única alternativa de desconstrução e superação do medo de colapso do modus vivendi contemporâneo, de descobrir no Outro[10] desconhecido, nossa humanidade comum.

Nessa derradeira obra publicada de Bauman, tem-se cogitado existir mais duas incompletas e que possivelmente serão publicadas, provém um diálogo filosófico de Kant[11], Arendt, Agamben, Goffman, Gadamer, Shauer, Solum e Lévinas[12], entre tanto outros pensadores, que trouxeram olhar crítico, plural e inteligente sobre a atualidade.

Afinal, Bauman não se esqueceu que viveu também como refugiado e estrangeiro e desterrado, mas também trouxe o alerta de como a sociedade carente de valores éticos coletivos pode se comportar de maneira discriminatória e desumana.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Strangers at our door. Male, MA: Polity, 2016.
________________ Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

MACHADO, Carla. Pânico Moral: Para uma Revisão do Conceito. Disponível em: http://interacoes-ismt.com/index.php/revista/article/download/125/129. Acesso 09.4.2015.



[1] Duas das características da modernidade líquida são a substituição da ideia de coletividade e de solidariedade pelo individualismo; e a transformação do cidadão em consumidor. Nesse contexto, as relações afetivas se dão por meio de laços momentâneos e volúveis e se tornam superficiais e pouco seguras (amor líquido).

No lugar da vida em comunidade e do contato próximo e pessoal privilegiam-se as chamadas conexões, relações interpessoais que podem ser desfeitas com a mesma facilidade com que são estabelecidas, assim como mercadorias que podem ser adquiridas e descartadas. Exemplo disso seriam os relacionamentos virtuais em redes.

A modernidade líquida, no entanto, não se confunde com a pós-modernidade, conceito do qual Bauman é crítico. De acordo com ele, não há pós-modernidade (no sentido de ruptura ou superação), mas sim uma continuação da modernidade (o núcleo capitalista se mantém) com uma lógica diferente – a fixidez da época anterior é substituída pela volatilidade, sob o domínio do imediato, do individualismo e do consumo.

[2] O que constitui, então, um pânico moral? Cohen define o problema como fenómenos recorrentes aos quais as sociedades parecem periodicamente estar sujeitas, no sentido em que ‘uma condição,episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge para ser definido comouma ameaça aos valores e interesses sociais, a sua natureza é apresentada de uma maneira estilizada e estereotípica pelos mass media; barricadas morais são fortalecidas […]; peritos socialmente acreditadospronunciam os seus diagnósticos e soluções; modos de coping são desenvolvidos ou (mais frequentemente) é procurado refúgio nosjá existentes; a condição desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se menos visível’ .

[3] A mais conhecida obra sobre o pânico moral, a seguir ao livro de Cohen, é, seguramente, Policing the Crisis, na qual Hall e colaboradores (1978) analisam o fenómeno do mugging. Não existe, em português, uma tradução adequada para o termo, que se refere tanto a um tipo de crime – assalto, na rua, com violência ou ameaça de violência – como à sua conotação simbólica. Por esta razão, optei por utilizar a designação na língua original.

[4] É um livro do sociólogo sul-africano Stanley Cohen, publicado em 1972 pela HarperCollins. Foi a primeira grande obra do autor e é uma das obras mais influentes da criminologia britânica. Trabalhando com a obra de Leslie Wilkins “Social Deviance” (“Desvio Social”) e com a emergente perspectiva da teoria da rotulação que que surgia nos EUA através das obras de Howard Becker, principalmente, Cohen teoriza que a mídia atua distorcendo o contexto daqueles que a sociedade considera fora de seus padrões criando a imagem de “demônios populares”, o que resulta em uma reação desproporcional e contraprodutiva dessa mesma sociedade, que chama de pânico moral.

[5] Schmitt é hoje lembrado não só como um “jurista maldito” (sobretudo em razão do seu engajamento na causa nacional-socialista), e como um adversário da democracia liberal, chegando a ser chamado por um de seus críticos, o jurista alemão Günter Frankenberg, de “coveiro do liberalismo” e “Cassandra de Plettenberg do direito público”,mas também como um “clássico do pensamento político” (Herfried Münkler). As mais importantes influências sobre o seu pensamento provieram de filósofos políticos, tais como Thomas Hobbes, Niccolò Machiavelli, Jean-Jacques Rousseau, Juan Donoso Cortés, Georges Sorel, Vilfredo Pareto e Joseph de Maistre.

[6] Vivemos um momento histórico de retomada do conservadorismo moral e político no Brasil e de avanço dos pensamentos ideológicos de direita e extrema direita. Através de um pretenso desejo por democracia e narrativas de clamor à nação, ao bem comum e aos valores tradicionais, esses pensamentos se alastram nas diversas arenas políticas, mas é interessante pensar que as questões de diversidade sexual e de gênero são uma das agendas privilegiadas para o ataque do conservadorismo.

Ao mesmo tempo, os sujeitos políticos de gênero e sexualidade dissidentes elaboram suas lutas sociais em um cenário complexo e contraditório que tende à simplificação e que desconsidera a história e os direitos adquiridos.

[7] À paz perpétua foi escrito em 1795 e, desde então, o mundo passou por grandes mudanças. O poder econômico tornou-se um valor e um ideal para a sociedade, os bens materiais e o consumo constituem priori- dades, que não deixam espaço para os princípios e preocupações éticos e morais que estruturaram a obra de Kant.

A nova realidade do mundo pede estratégias diferentes para atingir a paz perpétua. No entanto, não se pode esquecer que ainda são as pessoas que constituem as nações e a sociedade, isto é, ainda é necessário consi- derar a necessidade de investir no desenvolvimento humano, na educa- ção, para que as novas leis, acordos e ligas realmente funcionem.

[8] Ética da responsabilidade é a moral de grupo, das decisões tomadas pelo governante para o bem-estar geral, ainda que pareçam erradas aos olhos da moral individual. Uma parte do hodierno cenário político do Brasil assombra e indigna a população, dadas as denúncias e constatações de malversação da máquina pública.

Max Weber estabeleceu, em princípios do século XX, a distinção entre Ética da Convicção e Ética da Responsabilidade. Para Weber, quanto maior o grau de inserção de determinado político na arena política, maior é o afastamento de suas convicções pessoais e a adoção de comportamentos orientados pelas circunstâncias. Este afastamento das crenças e suposições pessoais e a adoção de medidas, muitas vezes contraditórias, são determinados pela ética da convicção e pela ética da responsabilidade.

[9] Emmanuel Levinas (1905-1995) é um filósofo francês, de origem lituana, naturalizado francês em 1930. Recebeu educação na infância judaica tradicional, focado principalmente na Torá. Mais tarde, fora introduzido no Talmud por Mr. Chouchani.

A sua filosifa está concentrada na questão ética e metafísica dos outros, caracterizado infinita como impossível no total, em seguida, como o além de ser, como o bem platônio, ou a ideia cartesiana de infinito que o pensamento pode conter. Foi um dos primeiros a introduzir em França o pensamento de Husserl e de Heidegger.

[10] Aproveito para evocar a poesia de Mário de Sá-Carneiro quando mencionou o Outro:

“Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.” (…)

[11] Uma idéia central na concepção de Kant é de que a paz não é um es- tado natural e que, por isso, precisa ser instituída por meio de um contra- to entre os povos. Na verdade, é o mesmo entendimento da paz que está no âmago do trabalho atual da Organização das Nações Unidas, que também foi constituída com o fim de trazer a paz.

Para os educadores, a leitura do livro À paz perpétua representa uma oportunidade para refletir sobre a guerra entre dois ou mais Estados, sua origem e caminhos para a paz. Percebe-se no pensamento de Kant a pre- ocupação em mostrar a conexão entre a eclosão de uma luta armada e as atitudes comuns e cotidianas dos cidadãos e de seus governantes. Serve também para pensar em como, talvez, gerenciar conflitos na ou através dela, a Educação.

[12] Em Levinas não diz respeito somente à dimensão da responsabilidade por outro ser humano – dimensão ética –, mas também à dimensão da “alteridade”. Alteridade é diferença e, nas relações, diz-se que é a capacidade de colocar-se no lugar do outro, ou, nas palavras de Frei Beto, é “ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem. A nossa tendência é colonizar o outro, a partir do princípio de que eu sei e ensino para ele – ‘ele não sabe; eu sei melhor e sei mais do que ele’”. É sobre esse “colonizar o outro” que podemos pensar.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. A derradeira lição de Zygmunt Bauman. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-derradeira-licao-de-zygmunt-bauman/ Acesso em: 16 abr. 2024