Filosofia do Direito

A Virtude Do Egoísmo (Segunda Parte)

A Virtude Do Egoísmo (Segunda Parte)

 

 

 

Mario Guerreiro *

 

 

Se a eficácia funcional fosse o único critério de validade, não há dúvida de que a inocuidade das prescrições seria uma condição necessária e suficiente para rejeitar totalmente uma teoria ética.

 

Mas, como já mostramos em outro lugar, a soberania absoluta da eficácia funcional pode nos transformar de filósofos em sofistas – o que não quer dizer que a eficácia seja algo desprezível, mas sim que não é tudo o que se deve esperar de um conjunto de princípios éticos. Reconhecemos que o argumento acima precisa receber refinamentos adicionais, mas está aceitável para o ponto que desejamos assentar no presente momento.

 

Dewey desferiu uma terrível crítica à visão altruísta embutida na ética kantiana nos seguintes termos: Kant afirmou que um indivíduo deve procurar seu auto-aperfeiçoamento e a felicidade do outro, mas ele não deve procurar sua própria felicidade. A crítica de Dewey limitou-se a mostrar a incoerência dessa concepção: Como conceber algo que, caso procurado para o outro, é um bem; mas, caso procurado para si mesmo, torna-se um mal? Se a felicidade é um bem – e tal como Aristóteles, Dewey acredita que seja nosso supremo bem – e é algo que devo desejar e até me empenhar para que o outro a alcance, por que razão não deveria desejar e me empenhar para que eu próprio a alcançasse?

 

Quando dizemos para os outros que x é muito bom, mas não mostramos nenhum interesse em obter ou conquistar x, queiramos ou não, deixamos a inevitável impressão de que, na realidade, não acreditamos que x seja bom, pois, supondo que fosse, por que razão não nos interessaríamos em obtê-lo ou conquistá-lo para nós próprios? De modo análogo, quando dizemos para os outros que x é ruim, geramos neles a inevitável expectativa de que costumamos evitar x ou fazer x e, caso tais coisas estejam fora da nossa capacidade de ação – possam acontecer conosco sem que possamos evitá-las – dizer que x é ruim deixa implícito de que se trata de algo que não desejamos para nós próprios.

 

No que diz respeito ao “altruísmo” – neologismo criado por A. Comte com vistas a gerar uma contraposição ao já existente termo “egoísmo” – Dewey distingue dois tipos. (1) Algumas vezes, o que é chamado de “altruísmo” não passa de um “egoísmo disfarçado” (disguised selfishness), e isto ocorre quando A alega estar fazendo algo tendo como finalidade última fazer um bem para B, mas, na realidade, o possível bem feito a B não passa de um meio cuja finalidade última é um bem para o próprio A. Todos nós conhecemos situações que caracterizam inequivocamente tal coisa. Por exemplo: o milionário que pratica atos de filantropia tendo como finalidade última gerar a imagem de que é um homem desprendido e generoso. O político que distribui ambulâncias ou dentaduras para a população carente de recursos, com vistas a produzir uma “boa imagem” e  angariar votos.

 

(2) A isto Dewey contrapõe o que ele entende por um “egoísmo esclarecido” (enlightened selfishness). E isto ocorre quando A faz um bem para B nutrindo a expectativa de reciprocidade ou por considerar friamente que o bem feito ao outro pode resultar em um bem para si próprio. Por exemplo: A trata B com respeito e polidez, porque espera ser tratado do mesmo modo por B. Na realidade, ele está agindo em seu interesse, pois não gostaria de ser tratado com desrespeito e impolidez pelo outro. A faz um favor para B tendo a expectativa de que, quando ele, A, precisar, B fará um favor para ele. Ou ainda: fazendo um frio cálculo da relação custo-benefício, o dono de uma empresa chega à conclusão de que sai mais barato pagar um plano de saúde para seus funcionários do que arcar com os prejuízos monetários decorrentes de muitas faltas e/ou maus desempenhos provocados por problemas de saúde. O dono da empresa ganha com isto, seus funcionários também ganham; na realidade todos ganham e ninguém perde (com a possível exceção de uma possível empresa concorrente em que seu dono não quis fazer ou fez mal o cálculo da relação custo/benefício ou então costuma seguir à risca a ética kantiana).

 

Dewey considera que os indivíduos humanos costumam agir buscando sua auto- realização e seus legítimos interesses, e que é assim mesmo  que eles devem agir, contanto que a busca da sua auto-realização não prejudique a busca da auto-realização dos outros e contanto que seus interesses não sejam escusos, porém legítimos interesses. No entanto, caso aceitemos os termos da ética kantiana, parece que procurar os legítimos interesses do outro é bom, mas procurar nossos legítimos interesses não. Apesar de pensar assim, Dewey não sustenta o ponto de vista de que o ser humano, por natureza, é incapaz de praticar uma ação desinteressada em que ele não ganha nada, a não ser a pura satisfação de ver o outro feliz. O ser humano não só pode praticar como às vezes pratica efetivamente ações desinteressadas. Mas deve (ought) praticá-las?

 

Responder a esta pergunta é que é realmente assumir uma posição em relação à Ética, e reparamos que, supondo que a resposta seja “Sim”, abre-se o espaço para outra indagação: “Supondo que o benefício prestado ao outro não traga nenhum malefício para quem o presta ou supondo que traga e aquele que o presta esteja disposto a se sacrificar pelo outro?

 

Na realidade, Dewey não vislumbra essas duas alternativas significativamente diferentes: ele se limita a dizer que a Ética tem a necessidade de encontrar aquilo que ele mesmo denomina de Princípio Unificador, capaz de conciliar o auto-interesse (self-interest) e a benevolência racional (rational benevolence) e determinar em que ponto deve terminar a busca do auto-interesse e deve começar o interesse pelo bem dos outros. Não há dúvida de que não é nada fácil explicitar qual seja o referido Princípio, mas, considerando sua importância, devemos continuar tentando explicitá-lo, não renunciar a ele em virtude das dificuldades encontradas na sua explicitação. [a respeito desse ponto da ética de Dewey, vide Guerreiro (2001b)].

 

Fizemos essa breve exposição da posição de Dewey sobre a questão do egoísmo e do altruísmo, porque ela é importante para abordar o pensamento de Ayn Rand. Ela não menciona Dewey e nós não sabemos se ela conhecia ou não esse tópico do pensamento do filósofo americano, mas isto não importa. Importa indagar de saída: Que entendia ela precisamente por egoísmo e por que razão devemos considerar que se trata de uma virtude?

 

 

* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
, Mario Guerreiro. A Virtude Do Egoísmo (Segunda Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-virtude-do-egoismo-segunda-parte/ Acesso em: 25 abr. 2024