Filosofia do Direito

A Virtude do Egoísmo (Primeira Parte)

A Virtude do Egoísmo (Primeira Parte)

 

 

Mario Guerreiro*

 

 

Ayn Rand [provavelmente um pseudônimo de uma mulher cujo nome confessamos ignorar] nasceu na Rússia czarista em 1905; assistiu os últimos anos do Império e a Revolução de 1917. Concluiu seu curso de graduação em Filosofia na Universidade de São Petersburgo no mesmo ano da morte de Lenin (1924). Dois anos depois, já em pleno regime estalinista, fugiu para os Estados Unidos onde se naturalizou cidadã americana e onde permaneceu até sua morte em 1982.

 

Na América, desenvolveu durante muito tempo as atividades de romancista, dramaturga e roteirista de cinema. Produziu ao menos dois romances de grande sucesso: The Fountainhead (1943) e Quem é John Galt? (1957) e uma peça de teatro que se transformou em um clássico da Broadway: Noite de 16 de Janeiro.

 

Lá pela década de 60, voltou-se para a Filosofia e criou o que ela mesma chamou de “Filosofia Objetivista” – nome que nos parece adequado, se considerarmos que senso de objetividade, clareza de expressão e firmeza de propósitos foram suas marcas registradas [vide a este respeito Peikoff (1991)]. Neste novo domínio de atividade escreveu alguns livros voltados basicamente para a Epistemologia, para a Filosofia Política e para a Ética.

 

Em uma época como a nossa em que os filósofos passaram a ser identificados com professores de Filosofia, Ayn Rand – não tendo sido professora de nenhuma universidade e tendo produzido suas obras fora do circuito acadêmico – correu o sério risco de ser rotulada com o mesmo rótulo que os filósofos acadêmicos costumam colar em autores como Voltaire, Lichtenberg, Montaigne, etc.: “ensaístas” que se expressam em uma “linguagem jornalística” e que, por isto mesmo devem gozar de um status de prestígio inferior ao do excelso galardão de “filósofo” ou aquele que só se expressa em uma “linguagem acadêmica”; não escreve ensaios, porém papers dentro dos requisitos formais impostos pela prosa oficial da Academia.

 

Não há dúvida de que a atividade de Rand no papel de ficcionista tinha um marcante papel proselitista. Assim como Voltaire se serviu de seus contos e ensaios para criticar asperamente o regime absolutista e os costumes de seu tempo – fazendo óbvio proselitismo dos ideais do Iluminismo [vide a este respeito Guerreiro, (1997 b)] – Ayn Rand se serviu de seus romances, peça e roteiros para criticar asperamente o regime comunista – fazendo óbvio proselitismo da visão de mundo liberal, na sua acepção mais radical que os americanos costumam chamar de libertarianism em contraposição ao que entendem como liberalism ou welfare liberalism (liberalismo do bem-estar) [Vide a este respeito Kleinberg, 1991, pp.51-76)]. No entanto, é imprescindível acrescentar que, por volta da década de 60, Rand trocou a linguagem da ficção pela da prosa ensaística e publicou alguns textos que merecem a qualificação de “filosóficos”.

 

O critério empregado aqui é simples e direto: devemos qualificar como texto filosófico todo aquele em que o autor se expressa mediante uma terminologia filosófica, mostra-se preocupado em fazer distinções conceituais e em construir argumentos filosóficos. Ora, como os referidos textos de Rand satisfazem essas três exigências básicas, não vemos como não considerá-los textos filosóficos. Teríamos de reformular ou ampliar o critério apresentado, caso quiséssemos acolher como textos filosóficos poemas épicos como a Odisséia de Homero ou Assim Falou Zaratustra de Nietzsche – textos em que, supondo que haja argumentos filosóficos, eles estão revestidos de uma linguagem tipicamente literária: a da caracterização de personagens, a da narração de episódios e parábolas, e a distribuição de aforismos e epigramas ao longo da narrativa.

 

Basta uma breve apreciação do estilo dos referidos textos de Rand, para que nos demos conta de que eles dispensam a reformulação ou a ampliação do supramencionado critério, para que possam se considerados textos filosóficos, sem que se tenha de encaixá-los à força no modelo brevemente resumido. Sua linguagem é cristalinamente clara, seus conceitos são cuidadosamente elaborados e seus argumentos são dignos de séria consideração – o que não pressupõe que, somente por isto, sejamos logicamente compelidos a concordar com eles. No entanto, não estamos interessados aqui na “Filosofia Objetivista” como um todo, mas sim na “Ética Objetivista”. Entre 1961 e 1964, Rand escreveu uma série de artigos e os publicou sob a forma de livro, juntamente com artigos de um de seus discípulos americanos: Nathaniel Branden. Tomaremos como referência a quarta edição ampliada de The Virtue of Selfishness [A Virtude do Egoísmo (1991)].

 

Por si só o título da obra é capaz de produzir uma grande perplexidade em muitas pessoas que entrem em contato com a mesma, antes mesmo de folhear suas páginas para verificar de que se trata. Desde a infância, a maioria das pessoas é levada a considerar o egoísmo como um indesejável vício. Por muitas cabeças ainda circula volta e meia aquela prescrição moral proferida gravemente nos ambientes do lar e da escola: “Menino(a) não seja egoísta!”, mesmo quando uma pessoa não recebeu nenhuma educação religiosa. Ao longo de nossas vidas, crescemos, nos tornamos adultos e começamos a envelhecer recebendo centenas ou milhares de fortes estímulos moralizantes reforçando a crença amplamente disseminada na nossa cultura de que não devemos praticar nem aplaudir atitudes de caráter egoísta. De repente, deparamo-nos com uma autora que insinua dispor de um argumento moral destinado a mostrar que, antes de ser um vício como a inveja e a ingratidão, o egoísmo é na realidade uma virtude como a coragem e a sinceridade.

 

Aqueles que, por acaso, leram textos filosóficos tais como o Leviatã de Thomas Hobbes, talvez não experimentem a perplexidade descrita acima, pois o referido filósofo encara o homem como um ser essencialmente egoísta e possessivo por natureza. Situado no estado natural, em que é travada uma guerra de todos contra todos, o homem é um lobo para o homem. Supondo que ele permanecesse nessa condição, correria o sério risco de se autodestruir, tamanhos são seus impulsos egoísticos e possessivos. Porém, com a passagem do estado natural ao estado de direito, o homem vê-se compelido a atenuar suas tendências naturais como condição necessária para usufruir dos benefícios sociais de uma sociedade regulada por leis. Para resumir: o homem é um ser essencialmente egoísta e seu egoísmo só é atenuado pela educação e pela interação com seus semelhantes sob a coerção imposta pela lei, limitando a liberdade de cada um para que possa viger a de todos.

 

Situado em um pólo ao que tudo indica oposto ao do pensamento de Hobbes, deparamo-nos com o de J-J. Rousseau, considerando que o homem é bom e altruísta por natureza, a sociedade é que, ao invés de atenuar seus supostos egoísmo e possessivismo naturais, só concorre para agravá-los. O homem nasce livre e altruísta, a sociedade o acorrenta e faz dele um ser mesquinho e egoísta.

 

Não pretendemos ir além dessa visão extremamente esquemática de ambos os filósofos, pois ela é o suficiente para colocar o ponto que temos em mente. Supondo que concordássemos com a visão hobbesiana de que o homem é egoísta por natureza, nada nos impediria de formular uma ética altruísta. Supondo que concordássemos com a visão rousseauniana de que o homem é altruísta por natureza, nada nos impediria de formular uma ética egoísta. E em ambos os casos, caberia a mesma alegação: De fato, é  assim que o homem é, mas não é assim que ele deve ser. Como já dissemos e reiteramos: a Teoria da Ação humana está voltada para questões tais como: “Como o homem é e como ele age?”, mas a Ética está sempre voltada para questões tais como: “Como o homem deve ser e como ele deve agir?”

 

E tanto é assim que, ao longo da história da Filosofia, encontramos teorias éticas valorando positivamente o altruísmo – Kant e Comte são exemplos clássicos – e teorias éticas valorando positivamente o egoísmo – como são os casos de Spencer, Dewey e Rand. Evidentemente, ambos os tipos de teoria procuram fornecer justificativas para suas respectivas valorações, e de um ponto de vista estritamente filosófico tudo o que importa são as razões ou justificativas apresentadas.

 

Mas o que queremos mostrar é que uma teoria ética não está logicamente compelida a estar de acordo com esta ou aquela visão da ação humana e do modo como o homem se comporta, embora as teorias éticas corram às vezes o risco de, por se afastarem demasiadamente da capacidade humana de por em prática este ou aquele conjunto de prescrições, tornarem-se simplesmente inexeqüíveis. Mas isto constitui uma boa razão para que as rejeitemos?  Se a eficácia funcional fosse o único critério de validade, não há dúvida de que a inocuidade das prescrições seria uma condição necessária e suficiente para rejeitar totalmente uma teoria ética.

 

 

                                    

                                       Referências bibliográficas

 

Guerreiro, M.A.L. (1997b) A Superação da Imaturidade. Inédito

Kleinberg, S. (1991) Politics & Philosophy: The Necessity and Limitations of

                                 Rational Argument. Oxford. Blackwell.

Peikoff, L. (1991) Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand. Nova Iorque.

                              Dutton.

     Rand, A. (1991) A Virtude do Egoísmo. Porto Alegre. Instituto Liberal & Ortiz.

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* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. A Virtude do Egoísmo (Primeira Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-virtude-do-egoismo-primeira-parte/ Acesso em: 25 abr. 2024