Filosofia do Direito

Breves reflexões sobre o documentário “A Casa dos Mortos”

Breves reflexões sobre o documentário “A Casa dos Mortos[1]

 O documentário retrata a trajetória de três homens, Jaime, Antônio e Almerindo, internados num manicômio judicial na Bahia.

 A Antropologia e a Arte, não desmerecendo as outras “ciências”, foram sabiamente escolhidas para retratar a “casa dos mortos”, ou seja, a realidade manicomial brasileira. A Antropologia representada pela antropóloga Debora Diniz, autora do documentário, e a Arte representada pelo autor do poema de mesmo título do documentário, o interno Bubu, reincidente em manicômios judiciais.

 A realidade mostrada no documentário pode também ser captada pela simples leitura do poema de Bubu. Antropologia-Arte. Documentário-poema.

 Para Michael Taussig[2], a antropologia está “entre a poesia e o raio-x”. E por isso, o documentário-poema retratou muito bem tudo aquilo que é real mas que não conseguimos ver a olho nu. É necessário um esforço de sensibilidade, aqui dado pela Antropologia-Arte, para ver o invisível.

 As mazelas visíveis e, principalmente, as invisíveis, advindas de um modelo médico-psiquiátrico de tratamento de pessoas com doença mental, foram escancaradas no documentário-poema.

 Muito triste saber que referido modelo ainda é praticado no Brasil, causando tantas mortes em plena vida.

 Como mazelas visíveis, presentes no documentário-poema, citam-se: a falta de limpeza do ambiente – chão com urina, fezes, moscas ao redor; a falta de fiscalização e segurança em relação aos internos – o que facilita os suicídios; a falta de infraestrutura geral do manicômio – falta de móveis e de funcionários; a falta do devido processo legal, como ficou nítido no caso de Almerindo.

 Percebe-se, claramente, que falta quase tudo. A única coisa que parece haver em grande quantidade são os internos, como na cena do refeitório. A imensa fila formada para pegar comida. Quantos internos! Quantos “loucos”!

 Dentre as mazelas invisíveis, citam-se: o despreparo dos funcionários no trato com os internos, muitas vezes desrespeitando-os ou ridicularizando-os, o que demonstra sentimentos de descrença na recuperação da pessoa e de estigma ou valoração negativa da enfermidade; a solidão dos internos, largados ao chão, em silêncio e com olhares perdidos; a consciência da doença e da falência do modelo médico-psiquiátrico, como Bubu; a consciência da própria morte em vida, como Almerindo.

 O documentário-poema soma-se a outras publicações que corroboram a falência do modelo médico-psiquiátrico. Não há função terapêutica. Referido modelo apenas segrega e pune.

 Dados da OIT[3] apontam para o aumento de doenças mentais advindas pelo trabalho. Onde se trancarão tantos “loucos”?

 Primeira cena (“das mortes sem batidas de sino”), retrata Jaime, que foi internado porque cometeu um homicídio enquanto estava “descompassado”. Cumpriu a pena, foi solto, mas deixou de tomar os remédios e usava drogas, vindo a cometer novo homicídio. Voltou para o manicômio. Cometeu mais um outro homicídio, dentro do manicômio, matou um outro interno, que, segundo ele, insinuou que Jaime era “viado”. Dias depois Jaime suicidou-se. Agressividade. Não controle de si. Periculosidade. Quem garante que uma pessoa sem histórico de doença mental também não pode um dia surtar e matar outrem? A verdade é que a sociedade tem medo. Que médico irá assinar um laudo desinternando um paciente, confiando na “cura” de um “louco tão perigoso”?

 Segunda cena (“das overdoses usuais e ditas legais”) retrata Antônio, com várias passagens pelo manicômio. Ele queria usar batom e pintar as unhas e foi ridicularizado por uma funcionária. Muito inteligente e ousado quando ele diz para a funcionária: “eu tenho capacidade para usar batom, por que não?” Privação não só da liberdade, mas também dos direitos da personalidade do interno. Rigidez da disciplina da instituição. Por que não pode usar batom?

 Terceira e última cena (“das vidas sem câmbios lá fora”) retrata Almerindo, que estaria ali por supostamente ter agredido um menino na rua. O fato imputado a ele foi de lesões corporais leves, fato apenado com detenção. Poderia ter sido aplicado tratamento ambulatorial. A sentença e o laudo que atestou sua incapacidade mental saíram em 1982 e desde então ele estava ali, sem nunca ter sido submetido a novo laudo. Esquecido. Sem familiares, sem amigos. Perguntaram se ele queria que encontrassem uma casa para Almerindo e ele respondeu que não pois Almerindo já havia morrido. Despersonalização. Privação do convívio social.

 O modelo médico-psiquiátrico concebe a doença como um problema existente exclusivamente na pessoa, desconsiderando a responsabilidade de adaptação também do meio ambiente que a recebe. A doença não é vista sob um paradigma social e tampouco psicológico. Sob o prisma estritamente médico-psiquiátrico, então, a doença deve ser “tratada” por médicos e, quando possível, ser “educável” por pedagogos, no sentido de algo que deve ser “contido”, “domesticado”, mantendo-se a pessoa com doença mental “sob controle”; enfim, segregada da sociedade.[4]

 

 Em contraposição, há o modelo social ou psicossocial, que compreende a doença em três dimensões: a estritamente física, orgânica, biológica, isto é, centrada no corpo humano (impairment); a dimensão das consequências da doença nas atividades da pessoa, de onde decorre que uma pessoa com doença pode ser considerada capaz para certa atividade e incapaz para outra, não se descartando a possibilidade de uma doença não gerar incapacidade para qualquer atividade que seja (disability); e, por fim, a dimensão baseada em critério social, mostrando que a pessoa com doença pode, ou não, ter oportunidade de inclusão social, dependendo do meio em que ela se encontra (handicap).[5]

 Adentrando aspectos jurídicos, existe a Lei 10.216 de 2001, “que redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, ou seja, traz um novo paradigma advindo com a reforma psiquiátrica, com o movimento antimanicomial. Paradigma baseado na cidadania e não no assistencialismo. Paradigma do modelo social da doença e da reabilitação psicossocial.

 Entretanto, referida lei é voltada para a elaboração de políticas públicas. No que toca às questões que envolvem pessoas com doença mental em conflito com a lei, é aplicável atualmente o nosso Código Penal – CP, que é um Decreto de 1940.

 As pessoas com doença mental são inimputáveis, segundo o CP. Para elas, aplicam-se as medidas de segurança.

 Um dos grandes desafios para os juristas está no fato de que o conceito jurídico de inimputabilidade não é taxativo-descritivo, mas sim um conceito genérico. O CP apenas utiliza as expressões “agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (…)”. Assim, quem irá “bater o martelo” sobre a insanidade da pessoa não será o juiz, mas sim o médico-psiquiatra.

 Embora o juiz esteja autorizado pela lei a solicitar laudos de outros profissionais da saúde, o que impera é o laudo do médico-psiquiatra. É certo que o juiz pode desconsiderar o laudo de um médico, motivando livremente a sua decisão, mas estará vinculado a um outro laudo, de um outro médico. Os exames de insanidade mental são obrigatórios. É a única prova válida e legítima para se constatar a inimputabilidade da pessoa. Assim, estamos “presos” a um modelo médico-psiquiátrico.

 Seria importante um laudo de uma equipe multiprofissional, mas, no Brasil, não há sequer peritos especialistas em psiquiatria forense.

 Além disso, as dúvidas em torno do conceito de doença mental tornam extremamente complexa a tarefa de elaboração do laudo[6]:

(…) o conceito psiquiátrico de doença mental, embora sirva de base para a formulação do conceito jurídico, nem sempre coincide exatamente com este. Igualmente, não é de se confundir a perturbação da saúde mental, com a doença mental propriamente dita. Nas enfermidades psíquicas, há sempre uma perturbação da saúde mental, mas tais perturbações nem sempre decorrem de uma doença mental, na concepção científica do termo. (…) o termo doença mental, na seara penal, engloba todas as alterações móbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se tanto às psicoses endógenas ou congênitas, como também às neuroses e aos transtornos psicossomáticos. De acordo com a Psiquiatria, são consideradas doenças mentais as chamadas psicoses. (…) A psicose pode ter origem orgânica (disfunções cerebrais) ou funcional (psicológica ou comportamental). São exemplos de psicose: a) esquizofrenia, b) transtorno bipolar de humor, c) paranóia. Também podem ser consideradas doenças mentais o alcoolismo e a toxicomania. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o alcoolismo uma doença física, espiritual e mental. A Psiquiatria hodierna entende que o alcoólatra (patológico) não merece ser tratado como criminoso e deve ser isento de pena. Enquanto doença mental, a embriaguez patológica do agente (psicose alcoólica), caso detectada, constitui causa de exclusão da imputabilidade. Com relação aos dependentes de drogas ilícitas, a Lei nº. 11.343/06, em seu art. 28, deixou de prever pena privativa de liberdade ao usuário de drogas, que deverá ser submetido a medidas educativas. O dependente químico, em razão do vício, tem diminuída sua capacidade de entendimento e de autodeterminação. E caso provada a dependência física e psíquica com relação ao tóxico, poderá ser isento de pena se cometer um crime, sendo submetido à medida de segurança. É necessário, todavia, averiguar o grau de dependência do agente e suas condições subjetivas no momento do crime, pois nem todo usuário de entorpecentes é um irresponsável penal. (…) Ao lado da doença mental, entre as causas que excluem a imputabilidade do agente está o desenvolvimento mental retardado ou incompleto. (…) Em razão da baixa capacidade mental, fica impossibilitado de avaliar racionalmente as situações da vida e, por conseguinte, é inimputável por não possuir o pleno entendimento e discernimento acerca de seus atos. Cita-se como exemplo os oligofrênicos e os portadores da Síndrome de Down. Também estão enquadrados nesta hipótese, aqueles que ainda não amadureceram por falta de tempo, em razão da pouca idade cronológica (menoridade) ou da falta de convivência em sociedade (silvícolas). (…) Há ainda que se falar nos chamados transtornos de personalidade anti-social. (…) Os perturbados mentais ou detentores de personalidades anormais ou desajustadas, não são, propriamente, portadores de doença mental. A Lei os considera semi-imputáveis pela capacidade de entendimento e posição fronteiriça com os enfermos mentais, o que consituti um grande equívoco, pois a realidade tem demostrado que os portadores de personalidades psicopáticas estão por trás da maioria dos crimes considerados bárbaros, com alto grau de violência e perversidade.

Uma vez elaborado o laudo, que irá determinar se a pessoa é imputável, semi-imputável ou inimputável, o juiz irá determinar se ela receberá uma pena ou uma medida de segurança. Concluindo o laudo pela inimputabilidade da pessoa, será determinada a medida de segurança, que levará em conta a pena cominada ao crime por ela cometido. Se o crime for apenado com reclusão, a medida fixada será de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou, na falta deste, em estabelecimento adequado. Se o crime for apenado com detenção, a medida fixada será de tratamento ambulatorial.

Assim, surge outra polêmica: a espécie de medida de segurança que será fixada para a pessoa com doença mental em conflito com a lei dependerá, exclusivamente, da pena cominada ao crime por ela cometido, e não, do grau de sua periculosidade constatada no laudo. A espécie da medida deveria ser fixada pela necessidade do sujeito e não conforme o crime cometido.

Há, também, a polêmica da duração das medidas de segurança. Essas medidas possuem prazo mínimo de duração, que vai de um a três anos. Não há determinação legal de prazo máximo, cessando somente com o desaparecimento da periculosidade da pessoa[7]:

Por periculosidade, entende-se como a forte inclinação do agente inimputável por doença mental de reincidir no crime. É a probabilidade de que volte a delinqüir, em razão da sua perturbação mental, que compromete o entendimento acerca do crime ou ainda a capacidade de controlar o impulso delitivo. A periculosidade é o juízo futuro que se faz acerca do agente inimputável, enquanto a culpabilidade recai somente sobre o fato típico punível praticado, no passado, pelo imputável. (grifo meu)

A crítica que aqui se impõe é a seguinte: como o médico poderá concluir sobre algo futuro? Como ele poderá assegurar a “cura” da pessoa? Como ele poderá assegurar que a pessoa, uma vez “surtada”, nunca mais “surtará”? E se a pessoa “surtar” e não cometer novo delito? Daí porque uma vez constatada doença mental, a pessoa ficará estigmatizada pelo resto da vida. A medida de segurança geralmente é perpétua (senão de direito, de fato, por causa do estigma).

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o assunto, fixando 30 anos como prazo máximo da medida de segurança[8]. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça delimita a duração máxima da medida de segurança ao prazo máximo da pena em abstrato, ou seja, há de se verificar o crime cometido e o máximo da pena para ele cominada[9].

Relevantes esses entendimentos dos nossos Tribunais Superiores, que tentam “desperpetuar” as medidas de segurança, porém, o estigma perpetua a “prisão” da pessoa com doença mental, ainda que em pleno convívio social. Há que se angariar esforços para que o modelo social ou psicossocial torne-se realidade em nosso país. Mais que isso, num esforço multilateral, não só da pessoa com doença mental, dos familiares e dos profissionais, mas também de todas as “ciências” e da sociedade como um todo, no sentido de uma nova compreensão do conceito de saúde/doença.

E para finalizar essas breves reflexões sobre “A Casa dos Mortos”, cita-se o trecho final do poema de Bubu: “a Psiquiatria é a mais atrasada das ciências – parafraseio Jânio de Freitas porque a casa dos mortos, que é a metáfora arquitetônica pela qual designo a Psiquiatria, pede que se fale contra si mesma!”

Referências bibliográficas e sites visitados:

CEZAR, Katia Regina. As pessoas com deficiência intelectual e o direito à inclusão no trabalho. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2138/tde-01082011-090820/pt-br.php> Acesso em: 20/11/2013.

MALCHER, Farah de Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2104, pp. 1-14, 5 abr. 2009. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/12564>.Acesso em: 20/11/2013.

 http://www.fflch.usp.br/da/vagner/diario.html

 http://www.oitbrasil.org.br/content/oit-pede-acao-mundial-urgente-para-combater-doencas-relacionadas-com-o-trabalho

 http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105635

 http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/763647/habeas-corpus-hc-84219-sp



[1] Cf. < http://www.acasadosmortos.org.br/#>. Acesso em: 20/11/2013.

[2] Michael Taussig apud Vagner Gonçalves da Silva. Disponível em: < http://www.fflch.usp.br/da/vagner/diario.html>. Acesso em: 20/11/2013.

[4] Nestas presentes reflexões, equiparam-se os conceitos de doença e deficiência, pois ambos estão sendo considerados como “desvios” sociais ou “desvios” da normalidade.Cf. CEZAR, Katia Regina. As pessoas com deficiência intelectual e o direito à inclusão no trabalho. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2138/tde-01082011-090820/pt-br.php> Acesso em: 20/11/2013.

[5] Idem, ibidem.

[6] MALCHER, Farah de Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2104, pp. 1-14, 5 abr. 2009, p. 4-5. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/12564>.Acesso em: 20/11/2013.

[7] MALCHER, Farah de Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2104, pp. 1-14, 5 abr. 2009, p. 9. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/12564>.Acesso em: 20/11/2013.

[8] “MEDIDA DE SEGURANÇA – PROJEÇÃO NO TEMPO – LIMITE. A interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 84.219-4. Rel. Min. Marco Aurélio. São Paulo, j. 15.02.05, v.u. DJU 23.09.05, p. 16).” Inteiro teor da decisão disponível em:    < http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/763647/habeas-corpus-hc-84219-sp>. Acesso em: 20/11/2013.

[9]  “Assim, o tempo de cumprimento da medida de segurança, na modalidade internação ou tratamento ambulatorial, deve ser limitado ao máximo da pena abstratamente cominada ao delito perpetrado e não pode ser superior a 30 anos”, disse a relatora, considerando que não é possível apenar de forma mais severa o inimputável do que o imputável.” Inteiro teor da decisão disponível em: < http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105635>. Acesso em: 20/11/2013.

Como citar e referenciar este artigo:
CEZAR, Katia Regina. Breves reflexões sobre o documentário “A Casa dos Mortos”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/breves-reflexoes-sobre-o-documentario-a-casa-dos-mortosq/ Acesso em: 25 abr. 2024