Filosofia do Direito

A Luta Pelo Direito

A Luta Pelo Direito

 

 

Antonio de Jesus Trovão*

 

Rudolph von Ihering é considerado, com justiça, um extraordinário jurisconsulto, rivalizando certamente, dentro do âmbito filosófico do século XIX, com Savigny.

 

Dele disse Edmond Picard, autor de “O Direito Puro”, Senador, professor da Universidade de Bruxelas e representante da Ordem dos Advogados na Corte de Cassação da Bélgica, que Ihering, extraordinário jurisconsulto, o maior do século XIX, vãmente posou de romanista e que malgrado suas obras consagradas ao estudo aprofundado do Direito Romano (“O Espírito do Direito Romano”), na realidade seu gênio jurídico tirou-o dos limites demasiadamente estreitos desse estudo, para levá-lo a proclamar algumas das verdades jurídicas mais significativas e mais profundas.

 

Assim, toda sua vida Ihering trabalhou no desenvolvimento de sua tese básica, constante de um dos capítulos do “Espírito do Direito Romano”, na qual Ihering, afastando-se das teorias geralmente admitidas, desde Hegel, segundo as quais a substância do Direito consiste na vontade, estabeleceu que os direitos nada mais são do que decorrentes de uma noção de utilidade ou de interesse juridicamente protegido. Daí, Ihering partiu para uma tese nova, mais abrangente, pertinente à finalidade da ordem jurídica, aplicando ao Direito a teoria da evolução.

 

Ihering trabalhou toda sua vida nessa obra, inacabada, na tentativa de provar que o objetivo cria todo o direito e que não existe um só princípio jurídico que não deva sua origem a um objetivo, isto é, a um motivo prático.

 

Mas é com “A Luta pelo Direito”, no original “Der Zweck im Recht“, considerada por Laveleye a “Bíblia da Humanidade Civilizada”, que Ihering desenvolve uma das teses fundamentais do positivismo jurídico e insculpe definitivamente seu nome dentre aqueles que mais contribuíram para a construção do arcabouço jusfilosófico moderno.

 

“A Luta pelo Direito”, antes de ser revista e publicada, foi originariamente resultado de uma conferência proferida por Rudolph von Ihering, na primavera do ano de 1.882, na Sociedade Jurídica de Viena.

 

O próprio autor não a considerava uma tese de pura teoria jurídica, mas uma tese de moral prática, destinada principalmente a despertar nos espíritos essa disposição moral que deve constituir a força suprema do Direito: a manifestação corajosa e firme do sentimento jurídico (prefácio, escrito em 24.12.1888).

 

Acreditava Ihering que o sucesso de sua tese, com as sucessivas reedições de seu trabalho, era devido à convicção dominante no grande público da exatidão da idéia fundamental, que era para ele tão incontestavelmente justa e irrefutável, que consideraria perdido o tempo que porventura gastasse a defendê-la contra aqueles que a combatem.

 

Ihering não considerava nova sua tese. Cita, por isso, Kant: “Aquele que anda de rastos como um verme nunca deverá queixar-se de que foi calcado aos pés“, para finalizar considerando que essa idéia, cerne de seu trabalho, está escrita e enunciada de mil maneiras no coração de todos os indivíduos e de todos os povos enérgicos e que seu único mérito pessoal consiste em tê-la estabelecido sistematicamente e desenvolvido com rigorosa exatidão.

 

Finalmente, antes de iniciar o desenvolvimento de sua tese, Ihering faz um duplo pedido a seus leitores: o primeiro, no sentido de que não procurem desnaturar suas idéias, para criticá-las, porque seu trabalho não significa a defesa da discórdia, dos pleitos, do espírito questionador e demandista, mas apenas repele a indigna tolerância da injustiça, que é o efeito da covardia, da indolência, do amor ao descanso; o segundo, o de que ou o leitor concorde com suas idéias, ou não se limite tão-somente a desaprovar e negar sem ter uma opinião própria, que possa resolver o dilema de qual deve ser a atitude de alguém que tenha seu direito calcado aos pés. Afirma assim Ihering que aquele que puder opor à sua resposta uma outra solução defensável, isto é, conciliável com a manutenção da ordem jurídica e com a idéia da personalidade, tê-lo-á batido.

 

Hoje podemos afirmar que esse duplo pedido foi certamente diversas vezes desatendido, mas é também certo que dificilmente outra solução poderá ser mais apropriada que a brilhantemente exposta pelo ilustre jurisconsulto germânico.

 

Para Ihering, a paz é o fim que o Direito tem em vista e a luta é o meio de que se serve para o conseguir. A vida do Direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes de indivíduos.

 

Todos os direitos da humanidade foram conquistados através da luta e todas as regras básicas de qualquer ordenamento jurídico, diz o autor, devem ter sido, na sua origem, arrancadas àqueles que a elas se opunham e todo o direito, quer o de um povo, quer o de qualquer particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza (ou será perdido).

 

Essa a idéia central da monografia que ora examinamos e que o Autor desenvolve com invulgar brilhantismo e com a copiosa construção de exemplos, tirados às vezes da vida real e outros da literatura (Shakespeare, v.g.).

 

O Direito não é pura teoria, mas também não é a força bruta e por isso a Justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito e na outra a espada de que se serve para defendê-lo. A espada sem a balança será a força bruta, a dissolução do ordenamento jurídico do Estado pelo regime arbitrário cuja palavra seja a própria norma jurídica; a balança sem a espada será a impotência do Direito, a falência das instituições jurídicas, posto que a norma abstratamente considerada, sem suporte no aparelhamento coercitivo do Estado, não poderá ser aplicada e assim também não constitui uma norma jurídica.

 

Por isso, Ihering conceituava a ordem jurídica perfeita como sendo aquela na qual a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança.

 

Cada particular é obrigado a defender seu direito e o direito é um trabalho incessante, não apenas do particular, mas de uma nação inteira. A realização da idéia do direito sobre a terra dependerá, assim, da contribuição de todos e todos têm a obrigação de esmagar em toda parte, onde ela se erga, a cabeça da hidra que se chama arbítrio e ilegalidade. Não podemos apenas fruir os benefícios do direito: somos também obrigados a contribuir para sustentar o poder e a autoridade da lei. Em resumo, cada qual é um lutador nato, pelo direito, no interesse da sociedade.

 

Observa Ihering, em sua conferência, que não se trata, absolutamente, do valor material que o Direito possa representar, mas de seu valor ideal, da energia do sentimento jurídico na sua aplicação especial ao patrimônio e não é a composição do patrimônio, mas a natureza do sentimento jurídico que faz aqui pender a balança.

 

Para comprovar a veracidade de sua atitude mental, afirma Ihering que:

 

a melhor prova nos é fornecida pelo povo inglês: sua riqueza não tem prejudicado seu sentimento jurídico e muitas ocasiões temos tido, no Continente, de nos convencermos da energia com que esse sentimento se afirma, até nas mais simples questões de propriedade, como no exemplo considerado típico do inglês em viagem que resiste a uma velhacaria do dono do hotel ou do cocheiro com tamanha virilidade como se se tratasse de defender o direito da velha Inglaterra, que adia se for preciso a partida e fica muitos mais dias no mesmo sítio despendendo dez vezes mais do que a quantia que se recusa a pagar. O povo ri e não compreende isto; – prouvera a Deus que o compreendesse. Porque em alguns francos que este homem defende, encontra-se na realidade a própria velha Inglaterra; lá longe, no seu país, compreende cada qual o seu direito e ninguém tenta sequer prejudicá-lo assim, tão facilmente”

 

Agora suponhamos, diz Ihering a seu auditório, em Viena, um austríaco da mesma condição e da mesma fortuna, colocado na mesma situação; como procederá ele? E responde que, segundo sua própria experiência a tal respeito, não haverá dez por cento que sigam o exemplo do inglês, porque os outros temerão os dissabores da questão, o escândalo, as falsas interpretações a que podem expor-se, interpretações, aliás, a que um inglês em Inglaterra não deve recear mas que também o não inquietam entre nós.

 

Finalmente, conclui Jhering que no franco que o inglês recusa e que o austríaco paga, há mais do que se crê; há alguma coisa da Inglaterra e da Áustria, há a história secular do seu desenvolvimento político e da sua vida social.

 

Devemos lembrar, neste ponto, que quando a Argentina ocupou militarmente as ilhas Malvinas, ou Falkland, como os ingleses às denominam, a reação britânica foi tão exagerada do ponto da vista do entendimento argentino e, mesmo do nosso, que todos os jornais noticiaram declarações de autoridades, no sentido de que não haveria razão para uma reação de tal magnitude por parte dos britânicos.

 

Mas é evidente que, se os ingleses realmente acreditavam que seu direito havia sido postergado e que uma sua possessão fora injustamente (não discutimos o mérito) ocupada pela Argentina, não poderiam medir esforços para sanar o esbulho, não pelo valor material, militar ou estratégico das referidas ilhas, mas pelo fato de que ficaria a Inglaterra desmoralizada e não mais poderia exigir a quem quer que fosse o respeito a seu direito.

 

Esse o motivo pelo qual se dispuseram os ingleses, no exemplo que estamos aduzindo ao de Ihering, a armar a maior frota naval desde a segunda Guerra Mundial, apenas para recuperar as ilhas Falkland.

 

A mesma não nos parece ser, infelizmente, a concepção dominante no Brasil. Agora mesmo, o Governo Federal baixou norma dispensando o pagamento de todos os débitos fiscais de valor inferior a Cr$12.000,00 (doze mil cruzeiros), tendo sido conseqüentemente arquivados cerca de 350.000 processos, o que apresentou considerável economia para o Fisco.

 

O Procurador-Geral da Fazenda Nacional, Cid Heráclito Queiroz, justificou a medida dizendo que o total dos tributos que assim foram dispensados é inferior a 1,5% do total dos créditos tributários existentes e que a economia processual, estimada em cerca de sete milhões de atos e documentos, havia sido considerada para essa decisão.

 

Ora, é indubitável que essa atitude, por parte do Governo, simplesmente dispensando o pagamento dos tributos pela consideração primária de que sua cobrança não seria de interesse imediato para o Estado, não pode ser defendida, de forma alguma, em face da doutrina de Ihering, porque se hoje o Estado não exige o cumprimento das obrigações jurídicas, por parte de cada contribuinte, dispensando-os graciosamente sob essa absurda alegação, amanhã não terá também qualquer autoridade moral para exigir o pagamento dos tributos por parte de todo e qualquer contribuinte e todos poderão, talvez, deixar de pagar seus tributos em dia, na esperança de que, mais cedo ou mais tarde, o Estado será obrigado a desistir de gastar dinheiro tentando cobrar esses tributos e resolverá, finalmente, dispensar o pagamento de todos esses débitos.

 

As idéias de Ihering são, como vemos, da maior atualidade, porque ferem exatamente o cerne da questão jurídico-filosófica, e da opção que a respeito delas demonstrarmos dependerá a feição de nosso ordenamento jurídico.

  

A luta pelo direito é, para Ihering, um dever do interessado para consigo próprio e nós aduziríamos que também no âmbito das ações do Governo a luta pelo direito e o respeito às normas jurídicas são fundamentais, posto que se o Estado, como no exemplo proposto, não defende seu direito (e que pertence, em última análise, a cada um de nós, a cada um daqueles que pagaram seus impostos em dia e que foram indiretamente prejudicados pela medida), também verá que o mesmo lhe será negado e calcado aos pés de outrem.

 

A luta pela existência, lei suprema de toda a criação animada, manifesta-se em toda criatura sob a forma de instinto da conservação, mas o homem sem o direito desce ao nível do animal, segundo Ihering, porque o homem não tem somente sua vida física, mas conjuntamente sua existência moral, que dependerá da defesa do direito. No seu direito, o homem possui e defende a condição da sua existência moral.

 

Em relação ao Estado, afirma ainda Ihering que a manutenção da ordem jurídica não é senão uma luta incessante contra a anarquia que o ataca, considerando incontestada essa verdade no tocante à realização do direito por parte do Estado, dispensando, conseqüentemente, mais ampla demonstração.

 

Quanto ao nascimento ou à origem do Direito, Ihering contesta a opinião que, segundo ele, gozava, pelo menos na ciência romanista, de um crédito geral, e cujos principais partidários eram Savigny e Puchta, de acordo com a qual a formação do direito faz-se tão sutilmente, tão livre de dificuldades como a formação da linguagem; não exige esforço, nem luta, nem sequer elucubrações – é a força tranqüilamente ativa da verdade que sem esforço violento, lenta, mas seguramente, segue seu curso; é o poder da convicção à qual se submetem as almas e que elas exprimem pelos seus atos.

 

Essa era a concepção que Ihering tinha a respeito da origem do direito, quando saiu da Universidade e sob a influência dessa doutrina ficou, durante vários anos. Em sua conferência, ele se pergunta: é ela verdadeira?

 

E prossegue examinando sua tese e comprovando brilhantemente a doutrina do interesse, sustentando que o direito em seu movimento histórico apresenta-nos um quadro de elucubrações, de combates, de lutas, numa palavra, de penosos esforços.

 

Para Ihering, muitas vezes não é fácil alterar uma determinada norma jurídica, porque com o decorrer do tempo os interesses de milhares de indivíduos e de classes inteiras prendem-se ao direito existente de maneira tal, que este não poderá nunca ser abolido sem os irritar fortemente. Discutir a disposição ou a instituição do direito é declarar guerra a todos estes interesses, é arrancar um pólipo que está preso por mil braços. Pela ação natural do instinto de conservação, toda tentativa deste gênero provoca a mais viva resistência dos interesses ameaçados. Daí uma luta na qual, como em todas as lutas, não é o peso das razões, mas o poder relativo das forças postas em presença que faz pender a balança e que produz freqüentemente resultado igual ao do paralelogramo das forças, isto é, um desvio da linha direita no sentido da diagonal.

  

O Direito será assim, para Ihering como para Ferdinand Lassalle (“Que é uma Constituição?”- Über Verfassungswesen), a conseqüência direta e inelutável dos fatores reais do Poder, que se manifestam dentro da sociedade , distinguindo ainda  Lassalle o Direito  real, isto é, aquele que se conforma com essa realidade sociológica, do Direito escrito, que pode às vezes estar em desacordo com essa mesma realidade.

 

Para Ihering, somente a força de resistência dos interesses é que pode justificar o fato de que muitas vezes, determinadas instituições jurídicas condenadas pela opinião pública ou pelo sentimento jurídico de um determinado povo, conseguem sobreviver muito tempo, porque o que as mantém em vigor não é à força de inércia da História, mas a força de resistência dos interesses defendendo a sua posse.

 

O cerne da teoria defendida por Ihering no opúsculo que ora examinamos não constitui novidade absoluta: Trasimaco já enunciara a doutrina do interesse, na Antiguidade Clássica, assim como inúmeros outros autores e Ihering teve neste ponto continuadores entusiastas. Mas o mérito de Ihering consistiu na defesa sistemática que desenvolveu de sua tese, bem como do brilhantismo de sua argumentação, que dificilmente poderá ser contestada com sucesso.

 

A Luta pelo direito é assim, para Ihering, o signo característico da vida jurídica, posto que o covarde abandono do direito pode, às vezes, salvar até mesmo a vida daquele que se recusa a defendê-lo, mas trará como conseqüência inelutável à ruína de todo o ordenamento jurídico, a falência do Direito. Assim, se esse covarde abandono ocorre a nível nacional e o arbítrio e a ilegalidade se aventuram audaciosamente a levantar a cabeça, isso é sempre um sinal certo de que aqueles que tinham por missão defender a lei não cumpriram seu dever.

 

Ihering contrapõe assim ao interesse particular o interesse geral, afirmando que quem defende seu direito, defende também na esfera estreita desse direito, todo o Direito, porque o interesse e as conseqüências de seu ato dilatam-se para muito além da sua própria pessoa. O interesse geral a que então se liga não é somente o interesse ideal de defender a autoridade e a majestade da lei, mas é o interesse muito real, muito prático, que em todos se manifesta e todos também compreendem, mesmo aqueles que daquele primeiro interesse não têm o menor conhecimento, de que a ordem estabelecida na sociedade, na qual cada um pela sua parte é interessado, seja assegurada e mantida.

 

Cada qual é, assim, um lutador nato, pelo Direito, no interesse da sociedade.

 

O elemento da luta que Herbart quer eliminar do Direito, afirma Ihering que é, pelo contrário, o mais primordial e aquele que lhe é sempre imanente- a luta é o trabalho eterno do direito. Sem luta não há direito, como sem trabalho não há propriedade.

 

À máxima: ganharás o pão com o suor do teu rosto, corresponde com tanta mais verdade esta outra: só na luta encontrarás o teu direito.

 

Finalizando sua obra, Ihering afirma que desde o momento em que o direito renuncie a apoiar-se na luta, abandona-se a si próprio, porque bem se lhe podem aplicar estas palavras do poeta (Goethe, Fausto):

 

“Tal é a conclusão aceite atualmente:

só deve merecer a liberdade e a vida

Quem para as conservar luta constantemente”.

 

A importância da obra de Ihering é, certamente, incompatível com os limites deste trabalho e com as limitações de seu autor, mas acreditamos ter correspondido razoavelmente ao que de nós se esperava em relação à elaboração deste ensaio curricular, malgrado talvez a falta de método expositivo e de sistematização que possa ser apontada em nosso trabalho, posto que defeito semelhante nada conseguiu subtrair do brilhantismo do de Ihering.

 

 

* Graduação em Administração de Empresas pela Escola Superior de Administração de Negócios (ESAN), Campus de São Paulo (ano de 1995) – pós-graduação em Administração Estratégica pela mesma escola superior. graduado no curso de Direito na Universidade São Francisco – Campus de São Paulo (2006). Servidor público federal, lotado no Judiciário Trabalhista, junto ao Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região (primeira instância). ocupando atualmente o cargo de assistente de diretor.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
TROVÃO, Antonio de Jesus. A Luta Pelo Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-luta-pelo-direito/ Acesso em: 28 mar. 2024